Introdução
Reflexos de um simples olhar natural
TEXTO DE GIL MONTALVERNE
PRÓLOGO
Recuando aos tempos da infância recordo a minha predilecção pelos pequenos animais que conseguia trazer para casa e com eles ocupava grande parte dos meus tempos livres. Quando me perguntavam que prenda queria no Natal ou no dia dos anos a resposta era muitas vezes — até porque o dinheiro lá por casa não era muito — um grilo ou um passarito para colocar numa gaiola. Cheguei a ter bicos de lacre na varanda de um quintal da casa onde vivia em Campo de Ourique que saiam e voltavam depois à gaiola, chegando às vezes a demorar mais de um mês. Mas enfim, era uma alegria vê-los voltar. Sabiam que tinham comida e abrigo à sua espera. Recordo também que a primeira fotografia que fiz, usando uma pequena Kodak em forma de cubo — e ainda conservo essa foto mas não, infelizmente, a câmara — é a de um cisne num lago do Jardim da Parada em Campo de Ourique, escolhendo o momento em que se colocara bem ao meio daquele pequeno rectângulo do visor e assim aparece na imagem impressa de 8 por 5 centímetros, em posição de destaque, segundo os meus conhecimentos artísticos de então. Também muitas vezes, quando atravessava aquele jardim a caminho do Liceu Pedro Nunes, ficava parado a ver borboletas, poisadas à beira do caminho, como a bela Almirante vermelho, que nesse tempo ainda voavam em vários locais da cidade de Lisboa. Grilos, aves, borboletas, enfim algumas impressões da minha infância e juventude, demonstram bem a admiração que então já sentia pelos seres vivos que connosco partilham o ambiente que nos rodeia.
Até que um dia alguém me trouxe da África do Sul uma câmara Minolta de 35 mm com a qual comecei a fazer fotografias cada vez mais cuidadas, sobretudo de insectos, tendo entretanto comprado umas lentes de aproximação para fazer a chamada macrofotografia dos seus pequenos detalhes. E deliciava-me a fixar as imagens de vários aspectos, dificilmente observáveis à visão normal ou mesmo desconhecidos de grande parte das pessoas. Fazia então pequenas exposições nas montras da loja Filmarte em Lisboa. Até que um dia algo aconteceu de inesperado. No I Concurso Internacional de Fotografia da Natureza, organizado em 1966 pela Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais, fui contemplado com o 1º e 2º Prémios na Secção de Fotografia Didática, recebendo também as respectivas taças atribuídas pelo Instituto de Meios Audiovisuais de Ensino que se mostrou interessado em adquirir essas duas séries de diapositivos para o seu arquivo de imagens que o Imave — assim se chamava — disponibilizava a diversas escolas e estabelecimentos de ensino no nosso país. E na sequência das entrevistas que tiveram lugar contrataram-me como Fotógrafo da Natureza em regime de part-time. E assim aconteceu até ao dia 25 de Abril, data em que considerei não dever ocupar dois empregos. Já estava entretanto na Emissora Nacional como locutor e realizador, cargo que ocupei durante muitos anos, realizando, entre outros, um programa que foi distinguido por várias entidades ligadas à Conservação do Meio Ambiente e se chamava Terra Viva – Planeta Azul. Os temas ligados à Natureza continuavam portanto a dominar a minha atenção. E esse facto era visível também na Fotografia, colocando as minhas imagens em artigos que escrevia regularmente ou em diversas editoras, como a MacMillan Educational, Hamlyn Books, Albany Books e outras, através da Agência Natural Science Photos em Londres. Sempre presente, portanto, a Natureza, plantas ou animais, a terra, enfim, também o mar em fotografia subaquática, mergulhando com garrafa de oxigénio ao largo da costa continental e igualmente dos territórios africanos, daí nascendo a exposição individual Fauna Submarina de Angola.
Com toda esta actividade seria impossível não reconhecer que a Natureza é de facto uma fonte inesgotável para a possibilidade da existência da Arte Fotográfica.
«TODA A ARTE É UMA CÓPIA DA NATUREZA»
A frase é de Séneca. Na verdade, recuando no tempo verificamos que o homem sempre teve uma ampla ligação com a Natureza. Desde os tempos mais recuados, mesmo quando o seu único refúgio eram as cavernas e depois passando pelas várias etapas das antigas civilizações até à actualidade, os mais diversos elementos da Natureza constituíram sempre um motivo de inspiração para as diversas formas de arte que foi criando. As famosas pinturas rupestres, representando nomeadamente animais entre bisontes, veados ou cavalos, permanecem ainda hoje gravadas nas rochas como vestígios importantes de valor museológico, contribuindo para o estudo da presença do homem nesses locais. Com maior ou menor perfeição e rigor nas suas formas acredita-se que não seriam propriamente esculpidas como criação artística mas sim fazendo parte de um ritual mágico para assegurar o êxito na sua captura. Milhares de anos depois, foram várias as civilizações, nomeadamente a egípcia, que também nos deixaram obras de arte representando muitos dos animais que adoravam como deuses. E as relações entre o Mundo Natural e a Arte foram sendo cada vez mais profundas em todas as áreas. Parece não haver dúvidas de que ao observar tudo o que via à sua volta, o homem dava os primeiros passos na descoberta da arte. É paradigmático e bem conhecido, entre a longa lista de obras de arte inspiradas em temas da Natureza, as do célebre joalheiro Lalique que, inspirado no movimento Arte Nova, criou inúmeras peças representando fauna e flora entre aves como galos ou pavões reais, borboletas e outros insectos reais ou imaginários, orquídeas, etc. Calouste Gulbenkian, seu grande amigo e admirador, coleccionou uma parte importante da sua obra que hoje pode ser admirada numa das salas do Museu Gulbenkian.
Se a pintura e escultura preenchem um enorme legado de obras de arte que retratam a Natureza à nossa volta, era por demais evidente que a Fotografia, como expressão artística que é, resolvesse também seguir o mesmo caminho. Auxiliada nos últimos tempos por tecnologias avançadas que permitem fixar com incrível nitidez tudo o que é captado pelas modernas objectivas, mesmo que, por vezes, modificando a função tempo, ultrapassem aquilo que os nossos olhos conseguem percepcionar, a Fotografia passou também a criar obras de arte na área da Natureza. E são muitos os fotógrafos que por todo o mundo se esforçam por consegui-lo. Mas então o que é necessário para fazer de uma fotografia, reproduzindo algo existente na Natureza, uma obra de arte? A resposta, parece, será simplesmente "nada", visto partirmos do princípio de que toda a Arte é uma cópia da Natureza. Ora se a fotografia apenas a reproduz, nada lhe falta para ser uma obra de arte. E o fotógrafo limitar-se-ia a olhar e a premir o obturador. Click e já está. Sei bem de um fotógrafo que escreveu no catálogo de uma exposição sua que o conjunto dos mecanismos fotográficos com os quais realizara as imagens que o público e a crítica intitulavam de obras de arte tinham substituído a completa falta de habilidade para tudo o que constituísse o mais simples acto de desenhar. Nem meia dúzia de traços num papel era capaz de fazer. Portanto, fotografar era fácil e qualquer pessoa seria capaz de ser uma artista fotográfico. No entanto não seria bem assim. Primeiro porque a fotografia tem regras básicas de equilíbrio na forma e nas cores. Os olhos de quem a contempla necessitam de percorrer um determinado caminho que conduz aos objectivos pretendidos. E ainda se deveria juntar a mensagem que se deseja transmitir aos que a irão contemplar. Poderá ser uma sensação de simples calma ou de tragédia porque afinal a Natureza tanto pode atravessar um momento de suave plenitude num pôr de sol, repleto de várias nuances coloridas que vão percorrendo o espaço temporal, como de lançar a sua fúria de enormes ondas embatendo contra as arribas da costa ou de árvores vergadas ao sabor do vento. Dir-se-á que estes últimos casos não podem representar obras de arte. E então nem sempre qualquer aspecto da Natureza poderá constituir uma obra de arte e o fotógrafo terá de fazer uma escolha do momento certo para utilizar a sua câmara. Mas é por demais evidente que existem belíssimas fotografias de aspectos menos agradáveis da Natureza.
SER OU NÃO SER UM ARTISTA
Podemos concluir que a boa ou má fotografia resulta do momento em que o fotógrafo dispara o obturador para fixar determinado aspecto que atingira a sua sensibilidade. Mas será esta sua característica, sem dúvida pessoal, que pode distingui-lo entre o ser ou não ser um artista? E daí concluir, no caso da primeira hipótese, que fez uma obra de arte retratando determinado aspecto da Natureza, uma paisagem, um animal, uma planta ou uma simples pedra, num ambiente de calma plenitude ou de furiosa tempestade? Como poderemos afirmar que, se for um artista, o assunto fotografado irá transmitir aos que o contemplarem uma mensagem que pode até ser diferente da que o autor recebeu quando contemplou o original? Para sermos mais realistas, a fotografia da Natureza tem hoje ao seu dispor técnicas que permitem efectuar múltiplos disparos numa sequência quase interminável da qual o autor vai depois selecionar um momento que até lhe pode ter passado despercebido. Quantas vezes isso já aconteceu aos melhores fotógrafos desta área? Mas é esse momento precisamente que ele vai escolher para nos mostrar, pois considera ser o que produzirá maior impacto. E afinal, não foi a sua sensibilidade atingida durante a contemplação do real mas sim de algo inesperado, com tanta subtileza e particularidades infinitas, que os milhões de neurónios do seu cérebro não puderam transmitir-lhe. De qualquer modo, o artista fotógrafo escolheu aquele instante fornecido tecnologicamente porque foi esse que lhe absorveu a posteriori a intensidade sensorial que desejava transmitir. Isso já terá muito que ver com a própria definição de Arte. Mas estas são situações excepcionais e nem sempre a Fotografia da Natureza, como obra de Arte, necessita dos artifícios da tecnologia. Claro que não. A Natureza reúne em si própria a perfeição conseguida durante milhões de anos e apesar de existirem algumas pobres almas, que diríamos imperfeitas, isso resulta da sua mentalidade doentia e dos erros civilizacionais da supremacia do poder. Na Natureza não é o mais forte que vence mas sim o mais perfeito, aquele que conseguiu dominar o ambiente e adoptar a melhor forma para continuar em frente. Sobreviver. Portanto bastará olhar à nossa volta para encontrar a perfeição nos sorrisos das flores, nas danças deixadas pelas sombras de algo que esvoaça, insecto ou ave, ou simples vestígio que deixaram ao cruzar o espaço. Olhar, simplesmente olhar. É apenas no processo de quem olha, observa, percepcionando o momento exacto que deve conservar numa imagem, seja ela, como já foi, fixada em vidro ou numa fina película e impressa depois em papel, ou virtual, feita de pequenos pontos a que as novas tecnologias chamam pixéis e que reunidas depois por algo que essas mesmas tecnologias criaram podemos igualmente imprimir ou visualizar num ecrã. Olhamos então a Natureza e a Arte existe nela. Depende de nós, saber fixá-la, dar-lhe um sentido, oferecer-lhe a possibilidade de que a mensagem seja transmitida para memória futura. Tudo acontece a partir do nosso olhar. Ele recria apenas a Arte intrínseca da própria Natureza. E então a fotografia da Natureza reflecte o pensamento do filósofo grego ou, se assim entenderem os mais puristas, modificando um pouco o que foi dito quando nem tampouco se sonhava com algo parecido com esta tecnologia: «A Arte pode existir numa fotografia da Natureza».