A publicação da poesia de António Botto, num volume com mais de oitocentas páginas, merece ser referenciada como iniciativa que marca o panorama editorial em 2018, particularmente no âmbito do património poético da cultura portuguesa.
O poeta Eduardo Pitta organizou esta edição (organização notável), sendo igualmente de sua autoria o texto de introdução, primando pelo rigor de uma abundante pesquisa e análise, pela limpidez e a eficácia da palavra que nos dá a dimensão de António Botto.
Neste trabalho, Eduardo Pitta reúne toda a poesia de Botto publicada em livro entre 1921 e 1959. Canções a abrir, capítulo seguido de outras obras de Botto, nomeadamente Cartas Que Me Foram Devolvidas (poesia em prosa), o livro póstumo Ainda Não Se Escreveu, juntando-se-lhes poemas para o filme Gado Bravo (1934), de António Lopes Ribeiro. De realçar, ainda, a importante Cronologia da Vida e Obra de António Botto, que Pitta realiza com inquestionável conhecimento e minúcia.
Poeta, contista, dramaturgo, António Botto nasceu a 17 de Agosto de 1897, no Casal da Concavada, concelho de Abrantes; morreu (1959), no Rio de Janeiro, aos 62 anos. Em 1965, os restos mortais de Botto foram trasladados para Lisboa; após um ano de burocracias, passaram a repousar no Cemitério do Alto de São João. A 17 de Março (2019) completam-se seis décadas do seu desaparecimento.
O poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade, que considerava Botto «um príncipe do mundo» sublinhou o último adeus de Botto (conforme Pitta inscreve no volume agora editado): «A vida fez tudo para humilhar António Botto (…) e o que se viu foi o poeta morrer colhido por um automóvel, sem sequer a dramaticidade do fim instantâneo: lentamente, no hospital, depois de doze dias de inconsciência. E o necrotério, a autópsia — o pobre António Botto convertido em notícia policial.»
Permitimo-nos destacar, do mesmo modo, o parágrafo que fecha o texto de introdução de Eduardo Pitta:
«Por todas as razões, António Botto não pode ser ignorado. Assim esta edição consiga trazer de volta um poeta há muito desaparecido das livrarias”.
Aqui registamos, também, o poema de Botto que se nos afigura singela (mas significante) autobiografia do poeta.
Maria Augusta Silva
(in Poesia, obra poética de António Botto, reunida
numa publicação da Assírio & Alvim, chancela da Porto Editora
Novembro 2018).
O monumental dragoeiro (Dracaena draco L.) foi afortunadamente escolhido para logótipo do Jardim Botânico da Ajuda. Segundo investigações desenvolvidas há dez anos pelo jornalista Pedro Foyos, no âmbito do seu romance “Botânica das Lágrimas”, este dragoeiro que se ergue no tabuleiro superior do Jardim é um dos raros exemplares sobreviventes da coleção de sete que o rei D. José I deu autorização para serem trazidos da Madeira para Lisboa.
Foi plantado no Jardim Botânico da Ajuda na época da respetiva inauguração. Apesar de algumas sérias vicissitudes já sofridas, este «Rei Draco» terá agora uma idade de aproximadamente 400 anos.
(IMAGEM: CORTESIA EVA MARCELA)
Ao longo dos anos o Jardim Botânico da Ajuda foi testemunha de acontecimentos marcantes da História de Portugal. Criado para a educação dos príncipes, mas também porque era sentida a necessidade de maiores conhecimentos na área da Agricultura, do Comércio e da Economia, foi implantado na Quinta de Cima, numa época, após terramoto, em que a família real vivia no palácio de madeira conhecido por Real Barraca. Com interiores decorados com tudo o que de melhor havia na época, desde o mobiliário à tapeçaria, pintura e ourivesaria, num luxo de uma época ainda sustentado pelas remessas de ouro e de brilhantes do Brasil, a Real Barraca viria a arder, com grande parte do seu interior, em1794 quando já governava D.ª Maria I. Durante cerca de três décadas o Jardim Botânico da Ajuda e a encosta em que se insere terão sido locais de extravagância, em que espetáculos pirotécnicos e cavalhadas se desenvolviam num palco onde não faltavam gaiolas com pássaros exóticos e jaulas com animais ferozes. Pelo menos assim o imagino, a exemplo do que se passava, na época, no palácio de Queluz. O povo e os escravos libertados, as cenas do seu quotidiano observadas de longe pelos aristocratas, completariam o cenário. É num ambiente que nos leve ao passado que se pretende fazer agora uma recriação histórica, com o Marquês de Pombal e outros membros da corte a visitarem o Jardim por altura da sua fundação.
DALILA ESPÍRITO SANTO
Diretora do Jardim Botânico da Ajuda
Os 250 anos da fundação do Jardim Botânico da Ajuda
são tema para uma coleção filatélica emitida pelos CTT e
para a moeda corrente de 2€ já lançada a 25 de julho.
Alexandra Escudeiro, que nos deixou há cinco anos, era um ser imensamente especial. Inesquecível o seu sorriso radiante, sorriso franco e animado em permanência por paixões e descobertas. Paixões de vida, em primeira linha, iniciativas de valorização e divulgação do Jardim Botânico da Sétima Colina de Lisboa. Fora de discussão se haveria um outro tão formoso no sistema solar e circunvizinhanças.
Admirava-a. (Não ouso um vocábulo que seria verdadeiro mas eventualmente equívoco). Tanto que lhe dediquei um capítulo de um dos meus romances, incorporando a partir da terceira edição do livro uma historieta maluca e cumpliciada com o apelido «Escudeiro».
Como jornalista do Diário de Notícias beneficiei das suas sugestões de temas que deram interessantíssimas reportagens, algumas das quais publicadas com enorme destaque porque o diretor de então tinha um “fraquinho” pelos mistérios do mundo natural, circunstância que eu explorava, pois claro…
Nasceu nesse tempo a Tertúlia Naturalista da Sétima Colina, grupo amador (“amador” é o que ama) que tinha por guia a jovem Alexandra Escudeiro, recém-formada na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e inexcedível no labor-amor com que nos desvendava os mistérios do Jardim Botânico. As atividades da Tertúlia contavam muito com o apoio de dois notáveis cientistas: os Professores Fernando Catarino (o “Mangas”, para os íntimos) e Galopim de Carvalho, sim, o dos dinossáurios, de quem se dizia que tinha escondido em casa um jovem dinossáurio que ele passeava à trela larga pelo Jardim da Estrela, quando o recinto, nas noites cálidas, estava mais despovoado de humanos. Afirmou-me o Professor, certa vez, que tal história não passava de uma lenda. Fiquei desiludido mas, por cortesia, condescendi meneando a cabeça. Hoje penso que terá sido preferível assumir a realidade como lenda, pois a realidade é sempre perecível, enquanto as lendas são eternas. E que boa-fortuna ouvir a pergunta que me fazem os mais jovens: «Sabes se o Professor Galopim continua a passear, à noite, no Jardim da Estrela, um dinossauriozinho?» Confirmo, obviamente: «Sim-sim, desde que não chova…».
Histórias, lendas, mitos, não faltavam no Jardim da Sétima Colina. Cada planta, um tesouro de sonhos. Alexandra sorria-lhes e logo elas lhe sorriam também, cúmplices. E eu, sem tradutor nem intérprete, furtivamente olhava para todas e rendia-me à mimética da conversa, expressando, silencioso e feliz, gratidão por a família vegetal me aceitar.
Sempre que visito este Jardim não dispenso dois dedos dessa conversa silenciosa com uma certa árvore brasileira. Tem brasão imperial, mas tagarela como nenhuma outra. Com essa árvore, a Alexandra e eu partilhámos segredos. Nessa época costumava vir ao nosso encontro o fundador do Jardim, Francisco Malagueta (professor catedrático, tratado em público, respeitosamente, por Conde de Ficalho), que passava o tempo todo a trocar correspondência com um amigo de além-mar, o Pedro das Barbas (idem, respeitosamente: Imperador Pedro II).
Essa árvore, conhecida há século e meio por “Árvore do Imperador” (os botânicos dão-lhe agora o arrevesado nome de Chrysophyllum imperiale), é, porventura, a mais histórica árvore em Portugal. O mesmo não sucedeu na sua pátria brasileira: aí foi condenada à morte logo após o derrube da monarquia. Uma razia em consecutivos anos. A árvore centenária que persiste no Jardim da Sétima Colina de Lisboa foi, precisamente, oferta pessoal de Pedro das Barbas. Uma árvore especial, única. Ao ver-me (ela vê-me a considerável distância, sinto-o), sempre recria para os meus olhos (velhos e sentimentais) o sorriso mais belo da Sétima Colina. Só ela, essa árvore, consegue fazê-lo, talvez porque acolheu a Alexandra como parte integrante da sua contextura arbórea, da sua seiva, da alegria silenciosa que as árvores transmitem quando estão felizes.
PEDRO FOYOS
15 AGOSTO 2018
Curiosa imagem captada no espaço da exposição “Incerto Olhar”, na galeria de arte do
castelo de Pirescouxe: um fotógrafo desprevenido é fotografado por outro fotógrafo
Decorreu de forma magnífica a visita guiada à exposição “Incerto Olhar”, de Pedro Foyos, por iniciativa do sector da Cultura da Câmara Municipal de Loures. Quase duas horas de um convívio animado por muitas e pertinentes perguntas, muita curiosidade, muita surpresa sobre como se obtêm determinados efeitos visuais e, sobretudo, todos ficaram a saber o significado de um vocábulo mágico: «imagiografia» (coexistência da fotografia com outras expressões artísticas, designadamente a pintura, o desenho e até a escultura). Pergunta frequente: «… Mas é uma fotografia ou uma pintura?». Resposta: «… É as duas coisas, ou três, ou quatro, mas quase sempre prevalece uma rainha conhecida pelo nome de… fotografia».
Concluindo: esta visita guiada ao “Incerto Olhar”, agora patente no castelo de Pirescouxe, em Santa Iria de Azoia, constituiu um dia imensamente rico para as dezenas de participantes. E o autor, naturalmente, está muito grato.
GALERIA MUNICIPAL DO CASTELO DE PIRESCOUXE
Santa Iria de Azoia
EXPOSIÇÃO
“INCERTO OLHAR”
PATENTE ATÉ 4 DE AGOSTO DE 2018
Entrada gratuita | Terça-feira a sábado | 10h00 – 18h00
Orientação GPS: 2690-414 SANTA IRIA DE AZOIA
ou:
SANTA IRIA DE AZOIA / PRAÇA VISCONDE CASTELO BRANCO
“Um Certo Olhar”? [primitiva designação]. “Incerto Olhar” seria o título certo. Não só incerto, o olhar, mas também imprevisível no início do processo fotográfico, porque na obra artística de Pedro Foyos a fotografia constitui, frequentes vezes, tão só o ponto de partida de uma alquimia de recriação da realidade, um instrumento sugestionador de novas imagens, de renovadas figurações que transgridem os tratados modelares da arte. Desarmante subversão aos cânones imaculáveis por decreto divino. Cometida a heresia, ultrapassado o interdito, iniciada a dissecação, a fotografia tende a perder o antenome “foto” e assim, quase anónima, procura uma identidade artística que estaria por definir. O autor sugere “imagiografia” (com “i”, adverte, porque deriva de imaginação”), vocábulo que transmite também uma mágica ressonância espectral de pesquisas em laboratórios médicos. Todavia, não se crê que tal «incerto olhar gráfico-profano» (definição do autor) alije de todo a nossa íntima amiga “fotografia”: ela permanece teimosamente com insistente esplendor e a justa honraria de matriz fundadora.
As transfigurações da realidade operadas por Pedro Foyos são com frequência paródicas, mas de súbito o autor desassossega-nos angustiosamente com a visão crua “do outro lado”, ou “mesmo ao lado”. Exemplo fortíssimo desse contraste é o grande e perturbador mosaico de seis imagens com o título «Família». Talvez por ímpeto deontológico o autor obrigar-se-á, profissionalmente, como jornalista, a comunicar a realidade sem o deslustre da fantasia. Mas logo retoma o paradigma visionário. O aparente paradoxo compreende-se em personalidades multifacetadas, que navegam em diversíssimas águas, sem risco de mesclas, como é o caso deste jornalista que escreve não só obras historiográficas mas também romances…
Abel de Avelar
MOMENTO DA SESSÃO INAUGURAL REGISTADO POR ARMANDO CARDOSO
"O GRITO", d’après EDVARD MUNCH
"INÍCIO”, d’après Leonardo da Vinci.
Com o poeta Rui Costa assinalamos hoje (21 Março 2018) o Dia Mundial da Poesia. Deixou-nos tragicamente com 39 anos. Breve a vida. Breve a sua obra literária, todavia bastante e vital na intensidade e qualidade do fulgor criativo. Um permanente desafio de livro para livro, uma demanda próxima de uma transcendência que porventura se ocultava num jogo vertiginoso invulgar, tornando-o imortal em cada poema.
BIÓTICA
Eu mexo-me por contágio —
no rasto que sobe dos teus passos
quando a manhã desgovernada chega
ao fim. Cravado, sigo pelos dedos da mão
que se alimenta e entro nos buracos — ouvidos,
nariz, boca — e recolho-me no linho que se estende
até ao cérebro. Outras vezes, é nos olhos que aterro
e despoleto as visões: ele ainda vê a minha imagem até
que se alinhava por trás da sua consciência. Então
pode ser que balouce como um vegan ou que se
tome de um súbito amor pelas camélias. Mais
água-de-fogo — dirá — e o peito a responder-lhe
com um mar do tamanho de um coração a
que falte o fuso. Pedaços de animais,
digo, coisas parecidas com artérias e
pequenas combustões de carne ve-
getal em pedra pura: o mundo é a
mais exacta forma do amor.
Extraído de MIKE TYSON PARA PRINCIPIANTES
— antologia poética / 2017, organizada por André Corrêa de Sá (coordenador da edição), António Aguiar
Costa, Claudia Souto e Margarida Vale de Gato. Edição de Assírio e Alvim, na chancela da Porto Editora.
Uma forma eficaz de avaliar a importância e a influência de determinada obra (um livro, um filme, por exemplo) será a de conceber a hipótese da sua inexistência. O exercício, aplicado ao domínio da ficção científica, revelar-se-ia concludente. Presuma-se: a Lua sem as expedições imaginadas por Verne e Méliès; ou a automação do mundo moderno e a coexistência homo-machina sapiens sem os robots de Isaac Asimov; ou a ideia de espaço infinito sem 2001: Odisseia no Espaço; ou as nossas boas-vindas a seres extraterrestres sem Encontros Imediatos do Terceiro Grau...
… Ou, decisivamente: o mito da criação científica de vida humana sem Frankenstein.
A ficção científica tem a sua pré-história nesta personagem fantástica, criada pela jovem britânica Mary Shelley(1797-1851)e publicada em janeiro de 1818, há precisamente 200 anos. Título inicial: “Frankenstein ou o Moderno Prometeu”
A “cândida” Mary Shelley numa imagem que se presume próxima da época em que inaugurou um fecundo género literário: o da “ficção científica”
A novela é verdadeiramente precursora ao refletir as novas descobertas da ciência e da tecnologia. Sem dúvida a primeira ficção científica de sempre, se excluirmos as abordagens esporádicas de Cyrano de Bergerac e de um outro francês, Jean-Baptiste Cousin de Grainville, que, em 1805, publicou uma obscura história intitulada “Le Dernier Homme”. Pelo contrário, a obra de Shelley possui uma dimensão e consistência apreciáveis, tendo sido escrita sob a influência científica de eminentes sábios da época, com destaque para Luigi Galvani, o famoso anatomista italiano cuja descoberta da eletricidade dinâmica era um tema que continuava a empolgar os cientistas de toda a Europa. Galvani observara que os músculos das pernas de uma rã dissecada se contraíam repentinamente quando uma faísca proveniente de uma máquina de eletricidade estática as atingia, ou quando um bisturi metálico lhes tocava enquanto a máquina estava a funcionar, mesmo não havendo contato direto com as faíscas. Descobriu, então, que os músculos das pernas da rã reagiam, na ausência total de faíscas elétricas, desde que contatassem em simultâneo com dois metais, como o ferro e o latão. Mais tarde, um outro cientista italiano, Alessandro Volta, demonstrou que dois metais diferentes podiam originar uma corrente elétrica. Já não se duvidava, no princípio do século XIX, que a eletricidade tinha alguma conexão misteriosa, mas aparentemente íntima, com a vida. Os cientistas mais ousados começaram a especular sobre a possibilidade de criação científica de vida.
Também a jovem Shelley, conhecedora das investigações de Galvani e de Volta, pensou no assunto. Porém, foi mais longe. Muito mais longe. Concebeu uma criatura enorme, humanoide, criada artificialmente. O tema pareceu-lhe excelente para um romance científico. Figura central do enredo: Vitor Frankenstein, um inquieto anatomista (como Galvani) que decidiu empreender a experiência limite de infundir vida a um corpo inteiro e não apenas a um músculo isolado. A esse plano prodigioso acrescia a ambição de conferir à nova forma de vida um caráter permanente. Jamais seria uma demonstração transitória, de observação laboratorial.
A genialidade de Mary Shelley não se confinou ao pioneirismo do tema. Poderia ter escrito uma banal ficção de terror gótico, recorrente na época. Preferiu ir às raízes filosóficas e metafísicas do mito, o mito prometeico do homem que ousa franquear o território divino e se torna escravo e vítima do ser que criou. Exercício literário de ressonância goethiana, revela a profundidade das mais ancestrais angústias e aspirações humanas sem deixar de constituir, enquanto realização ficcional, uma obra arrebatadora.
Todavia, é diminuto o número de pessoas que leram o livro. Melhor fortuna teve Frankenstein no cinema e na televisão com uma prole de duas centenas de títulos. Infelizmente continua a sofrer estropiações grosseiras que o desterram sem piedade para as profundezas dos horrores abjetos.
Perdurará a inscrição memorável: este é, efetivamente, na história da literatura de ficção científica, o primeiro marco sólido, consistente, incontestado. À margem das inúmeras discussões académicas sobre o que é e não é ficção científica, verifica-se uma assinalável convergência na atribuição dos louros a este livro. Além do pioneirismo temático, merece distinção quanto à qualidade literária.
Pedro Foyos
Janeiro 2018