IAGO VENDRELL




EL VENDRELL

Independência não é um sonho,
é a mais simples verdade.

O poder não está numa folha escrita,
por mais força que a lei lhe conceda.
A autoridade não vem de uma ilha tão estrita
mas do sonoro arquipélago das vozes de um povo.

Independência não é um anseio,
é necessária liberdade.

Um imposto não é o simples querer,
tem na base um forte contrato:
para almejar sobreviver
está dependente de um pacto.

Independência não é cortejo,
é reverente solenidade.

A verdade não está nos teus livros escolares,
nem tão pouco se encontra reflectida
na proibição dos meus gestos populares.
Nessa vã posição a tua voz é oca, à partida.

Independência não é paleio,
é uma pura necessidade.

Saúdo-te, longínqua terra natal,
que me deste tamanha irreverência
para continuamente lutar
contra um absoluto poder central.

Independência não é um lampejo,
é futura eternidade.

Agradeço-te pela minha nacionalidade,
retirada à força das garras de Castela.
Não me esqueço da tua busca de liberdade,
por isso uso o teu nome na minha lapela.

Independência não é uma ilusão,
é a voz da irredutibilidade.

Orgulho-me das tuas humildes origens
que gravam na pedra a tua identidade.
Não me preocupo quando entras em vertigens,
pois não são mais que desejos de futura saudade.

Independência não é um desejo,
é inevitabilidade.

Aclamo-te pela minha liberdade, 
terra imaginária sob um jugo cruel.
Sem nunca te ver, de ti tenho saudade; 
existo porque te revoltaste, El Vendrell.     




PEDRÓGÃO GRANDE

Não quero pensar. 

A notícia agride um momento
de festa, de exaltação da vida.

Não quero pensar
no absurdo disto tudo.

Dezenas de almas encurraladas
(após suposto raio cair em terra seca)
no sítio errado, a horas erradas.

Não quero pensar
na dilacerante dor da desgraça alheia,
no meio do ciclone de fogo tornado mar.

De manhã saio de casa
e sinto tremendo choque.
O violento calor abrasa
até que a vida sufoque.

Não quero pensar
em de brisa fresca ter intuitos,
quando a vontade de muitos
era no fogo não carbonizar.

A minha respiração ofega
sob o peso desta tragédia
impossível de contextualizar.
Labaredas insanas, sem rédea
que o ser humano possa controlar.

Não quero pensar
nos contornos do drama.
A pungente angústia de tanta família
(nessa convulsão de falta de ar)
quando assassina se torna a mobília.

O incómodo formigueiro
grita nos meus dedos
com horror deste calor,
longe do surreal nevoeiro
de fumo denso, e dos penedos
suspensos no instante final.

Não quero pensar
nos carros acidentados, no desnorte
(da aflição de não saber o que fazer),
nos corpos queimados, no odor irreal
dessa fétida aragem quente da morte.

Bastam uns singelos raios solares
para o ardor na pele ser insuportável
sem um mergulho no mar. Como imaginar
o que terão sido os últimos patamares
do atroz sofrimento, na certeza inenarrável?

Não quero pensar
nos momentos de pânico.
Nas expirações a acabar,
sem sentido.

Respiração esbaforida, garganta seca
sem água que possa desatar este nó.
Não existe Pólo Norte, Jerusalém ou Meca
para amparar quem tudo perdeu e fica só. 

Não quero pensar
que esta catástrofe podia ter sido evitada,
nem que a desgraça estava há muito anunciada.

Ainda acorrem bombeiros a apagar labareda
e, na tv, já se procuram culpados por todo o lado.
Culpados somos todos. Mas ninguém será julgado.

Não quero pensar, mas não consigo parar de o fazer:
bem sei que, quando o Verão passar, tudo na mesma vai ficar.

Na praia, a política esquecerá os destroços
(e quem tudo sofreu não dá suficientes votos).

Não quero pensar.

Iago Vendrell, 18-06-17







EDITE ESTEVES



OS COMBOIOS DA ESPERANÇA

As linhas caminham frias
empedradas nos interstícios
onde a madeira escasseia.
São símbolos de futuros
sem fim à vista
ou passados amargos distantes
apagados pela dor que retorna
contundente, sem tréguas
para os que migram pela fé
de um encontro com a paz.

As linhas caminham frias
paralelas ao perto, confluentes
no infinito presente.
São símbolos de partidas
constantes e lentas
sem freios a retardar
a chegada à terra prometida
pela resiliência, pelo sentido
de sobrevivência, pela necessidade
de retomar a vida quotidiana.

As linhas dos comboios
continuam a representar
o que de mais trágico
viveu o ser humano e o gáudio
da utopia que as transformam
nas vias para o consenso,
para a fraternidade e a saúde.

Já levaram no seu bojo
milhares de inocentes para a morte
nos campos de concentração.
Já levaram amantes e famílias inteiras
para aquele destino dourado
com que sonharam anos e anos.

Agora, redundaram em estações
feitas de paredes humanas destroçadas
pela guerra, pelas perseguições,
pelos quilómetros percorridos
de pedras, lama e espinhos,
estações construídas com o medo.

Esperam pelas locomotivas
como quem espera um filho
obrigam-nas a parar sem outro meio
senão a força da fuga ao desespero.

Não querem saber dos guardas
que os cercam de espingardas em riste.
Morrer numa altura destas é-lhes indiferente.

O que lhes importa é partir,
partir para bem longe das bombas,
da fome, da miséria do dia-a-dia.
Partir numa qualquer locomotiva
nas linhas de ferro paralelas
que, lá ao fundo, convergem
para um destino que antevêem
de luz brilhante com uma côdea
de pão e água num refúgio
de pedra e cal tal e qual
a casa que deixaram em ruínas
destruída pelos brutais tiroteios.

Os comboios são neste momento
a sua esperança num futuro
sem muros, sem repúdios,
sem armas apontadas ao coração.

Mas será que os comboios
irão trilhar todos o caminho
para a libertação?
Pelo menos, por agora
chega de acampamentos cegos.
É preciso encorajar os mais afoitos
e conceder-lhes o benefício da dúvida.
Quando chegarem ao seu destino
verão como serão recebidos
se de braços solidários estendidos
se mais uma fileira de carne para canhão.

Cabe à humanidade repensar
o caminho que temos percorrido
neste nosso planeta azul
 e dar mais uma oportunidade
à solidariedade e à tolerância.
A natureza já geme de cansaço
e ela não vive para sempre
a ferro e fogo.
Ou os humanos reconsideram
o seu modus vivendi
ou um tsunami gigantesco
cobrirá de novo a Terra
apenas com oceanos sem solo…

Este o castigo que esperam
os seres que habitam o planeta.
Os que vivem em aparente concórdia
e os migrantes, fugitivos
constantes acossados pelo medo.
O fim será igual para todos, creiam,
Tal como é o nascimento.


Setúbal, 14 de Agosto 2016







EDITE ESTEVES



OS MUROS DA MORTE

Vêm aos milhares
famintos, encharcados, mãos desnudas
abarcando apenas o mais leve das suas posses
e agarrando sôfregas outras iguais,
outras mais velhas, outras novas.

A esperança não lhes traça os olhos
que rateiam luzes indeléveis e frias
inexpressivos de tanto ardor
vazios de sensações já perdidas.

Vêm aos milhares
latejando os corações inconstantes
os pés inchados e disformes
ancas descompassadas num andar desalinhado.

Vêm aos molhos
unidos pela força impactante
de um desígnio de fugas constantes
como uma massa humana
sem identidade nem nome.

São os migrantes de hoje
enxotados pelas guerras a Oriente
numa Europa cortada
por reticências, xenofobia e muros.

Vêm aos milhares
todos aos molhos
homens, mulheres, crianças
novos, velhos, deficientes
acompanhados, sós
carregados com uma só mochila:
a ânsia de paz.

Mas a Europa não responde
unida a uma só voz.

Esta grande nação construída por 28 membros
acusa, neste momento-chave,
a falta de coesão social.

Há quem aceite de braços generosos
acolher os que fogem do mal
mas também há quem feche as portas
e eleve muros inexpugnáveis.
Há mesmo quem os aceite
mas sem nada que os possa salvar.
Há quem tenha a vergonhosa “coragem”
de os despojar do pouco que já trazem.

Repugna-me pensar que a memória
desses indivíduos seja tão curta e gélida.
Repugnam-me os dedos acusadores
de seres contra outros seres desarmados.
Repugna-me a ideia de ver repetidas
as cenas macabras do Holocausto.

Que se desmoronem os muros da morte
sobre a consciência desumana…

É urgente AMAR!

Não entendem que a nossa destruição
começa com a destruição dos outros?!
Quem foge da guerra
só deseja a paz.
E a paz só se alcança
com corações abertos
ao diálogo e à tolerância.

Porquê os muros da morte?!
Porquê?!

Porque é que os homens
ciclicamente têm de voltar as costas
à compreensão?
Que significado tem esta vida
se não for vivida de mãos dadas?

Porquê a violência e a usurpação?
Porquê o abuso e a desconfiança?

Queria tanto que fôssemos todos IRMÃOS!

Palmela, 3 de Fevereiro de 2016, às 3 horas da madrugada







ANTÓNIO ESPERANÇA PEREIRA



Falar de ti

Falar de ti é não ter palavras
É um sentir sem querer sentir
É um amargo poema que não quero escrever
É o inferno tal como dizem existir
É o céu que foste que deixei de ver

Falar de ti é existir sem existir
É um ser impossível de se ser
É um amor que mata sem eu querer
É um tirar presente e porvir
É um nada que abafa meu viver

Falar de ti é pôr-te aqui
É trocar olhares de fogo sem te ter
É morrer a cada vez que te lembrar
É cultivar fantasmas ao falar
É sentir a mágoa de te perder

Falar de ti é lucidamente
Uma perda de tempo que só faz sofrer.



Versão audio
Poema dito por Armando Cardoso







LUÍS SERRA SANTOS



NOITE OUTONAL

...
no interior desta noite cerrada de Outono
quase morna, transparente na sua fome
saboreio com sal pássaros a voar ao longe
...
no limiar do precipício sorvo o mundo plano
estático, num silêncio que me comove
de olhos turvos, abraço o tempo que me deixa
...
a altitude é pouca para o chão que me preenche
não me lembro das últimas palavras
encontro apenas algumas letras, soltas
...
uma estrela pede-me ajuda, para não morrer
digo apenas que não lhe posso dar dinheiro
ofereço todas as letras, menos uma e parto
...
sobre os meus pés esmagados alicerçam-se estacas
de todas as noites percorridas por dentro
de um hálito amargo vindo das entranhas do vento
...
resido fixo num pátio decorado de sombras
amedrontadas pelo peso dos acentos certos
adormeço aconchegado na mentira da luz recta
...
rendo-me, enfim, ao soldado na mudança de turno
que me liberta apático das algemas do sonho
e entrego-me à vida numa noite morna de Outono







ALBANO MARTINS



Agulhas

As dos pinheiros, onde vivem enforcados os dias da infância. As outras, as da costura, caíram em desuso: o vestuário usa-se hoje descosido, roto. Servia, outrora, para cobrir; serve hoje para escancarar a nudez humana.

Agosto 2015

  (Do livro em preparação
  «Pequeno Dicionário Privativo seguido de Um Punhado de Areia").







LISA HENRIQUES



LUNAR

A luz da vida
Os olhos da noite
Sobre os meus
Reflexos

Onde as horas param e nunca se repetem,
Onde a luz caminha e nada de velho permanece,
Onde a beleza desabrocha e se transforma,
Vejo os espelhos da nossa presença
A materialização enquanto imagem de uma alma
Que nos anuncia.

Os passos na areia, as pegadas
Os beijos do sol na areia e nas marés
A onda de luas que circulam
Planetas
Impressões digitais
Distintos
Com últimos redutos da contemplação
As pontas dos dedos onde reside a sensibilidade
E o contacto directo com o cérebro universal

Palavras que oiço
Ou a esperança em estado bruto
Paixão de existir
Partilha dos elementos

Por um extenso caminho
A fruição do pensamento
A sentinela que aguarda a luz do dia
Reféns do que é de tal forma belo
Que não parece real

Por portas travessas
Por recantos e corredores
Bibliotecas ambulantes
Os amores

Recados e recibos
Retratos e avisos
Uma panóplia de sentidos
Que nos confundem
De forma absolutamente deslumbrante

Honras e valentias
Aniversários e evolução
A olhos vistos,
A cada dia
Uma nova revolução

Recados e reclamações
Rixas e investigações
Declaração e Retórica
Vãs resoluções

Ninfas e seres encantados
Frágeis amigos
Que nos conhecem e acompanham
Cada gesto
Flores a florir

O Céu banha a Terra
Pesar pelos que perdemos pelo caminho
Face à Injustiça
Honrar a nossa herança

Um quarto escuro
Um altar gótico
Sombrio
A divindade
Em conjugação
Em consonância
A paz

As vozes que ecoam
As doces palavras
Que comunicam.
Clarifica as ideias
Vibra e respira
Veículos da verdade
Ser enfim
Os sons

O som de um pássaro
Reproduz com exactidão
O teu pensamento mais subconsciente
Esse é o segredo do seu canto

Revelador
Do que nos emociona
A celebração
Algo pronunciado
O adorno

O som estridente
Da consciência
Conhecer a existência
Conhecer se a si
O presente que voa perante
Os nossos olhos
As nuvens que nos esboçam sorrisos

Poderia o Homem esconder as suas intenções
Poderia a vida ocultar-se
Enquanto actores
As vozes redescobrem-se
A cada segundo
Com o fluir dos ondas
Dos momentos próximos

Trajes novos
Chocolate e café
Os sabores que se mantêm fixos
Com os quais nos identificamos

Esquecemos a raiva
A corrente sanguínea
Em movimento permanente
Fruto de uma combinação mágica

O Tempo é como uma corrente
Leve como o primeiro toque entre amantes.

Das sombras
Entre o paladar
E o olhar
Entre a espera e o reencontro.

A Luz do dia
O jornal da nossa vida
Com o conteúdo que escolher

Uma geração inteira
A herança da paixão.
Correr a agarrar o Horizonte

O secreto sonho que cada um
Reserva para si
O secreto encanto de te procurar
Em segredo
Sei do tempo perdido
Sei de um lugar esquecido

Sei de um segredo juvenil
Em que o tatear de uma guitarra
Traz a força do mundo
E nada pode abalar a força desse abraço
Que se perpetua mesmo no silêncio








EDITE ESTEVES



A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DE SER.
SIMPLESMENTE SER

Liguei o piloto automático, sabes?
Aí vamos nós…
Oh que imensidão esta!
O universo azul aqui projecta uma luz intensa
sobre a minha cabeça.
Sinto-lhe o peso
e a leveza insustentável de ser.
Simplesmente ser.

Sei lá o que dizem as estrelas…
Que me importa?
Sei o que sinto
o que me dá ganas de viver
o que me projecta para dentro de um cofre
a rebentar de desejos
o que posso dar de mim mesma.

O resto – raízes, troncos e folhagem – são acessórios
que constroem o dia-a-dia
alinhavado pelas regras
os bonecos da paisagem
de uma sociedade marcada
pelos sins, pelos nãos e pelos nins.

A minha nave é outra.
É um spot iluminado pelo sol
esse astro inesgotável
de calor e de luz.
Uma fonte onde bebo
a fantasia
a criatividade
a sabedoria
a minha moral
e o teu sorriso.

Perdoa! Já me esquecia
que tinha ligado o automático.

Sigam-me nesta viagem ao infinito! Não querem?!
Por mim, já levo milénios de passadas
já voltei, decerto, ao início da vida
já começo a ter a sensação do déjà-vu.

Tudo se desprende.
Tudo se evapora.
A réstia que os meus olhos fixam
não é mais que uma imagem de mim mesma
o reflexo num espelho gigante.

Estou livre! Obrigada!






O SILÊNCIO DO BEM

Ó gente desta terra
gente de bem com raízes
porque fechamos nós os sons
nos estômagos vazios?
Porque esmagamos
os gritos de revolta?
Porque não saltamos
as cercas que nos oprimem?
Porque calamos
as vozes impetuosas?

Tanto tempo sem ser ouvidos
ó gente de bem
só nos corta a memória
de lutas cantadas
em ruas floridas
e braços levantados em vitória

É hora de romper
o silêncio do bem
que o mal anda à solta
ó gente desta terra

Já se ouvem os primeiros versos
da senha revolucionária
batidos ao compasso
dos discursos empoleirados
em decretos sem sentido
e leis prós ricalhaços

É hora de romper
o silêncio dos cordeiros
Basta de sacrifícios
basta de tira-dentes
basta de corrupção
burlas, assaltos e roubos

A violação dos nossos direitos
é mote para voltar
a abrir os olhos e a boca
É hora de chicotear
os vendilhões do templo

Ó gente desta terra
gente de bem, com raízes
valores, identidade, sorrisos
é hora de mostrar
as chagas ao vivo
é hora de levantar o cerco
e cantar bem alto
todas as Grândolas
do nosso contentamento
Se essa é a arma do povo
ó gente, vamos empunhá-la
rasgá-la aos sete ventos.

Palmela, 22 de Fevereiro de 2013





LEONARDO FERREIRA



MONÓLOGO DO POETA ÉBRIO

No passeio
meus olhos
minha boca
minhas mãos
cruzam-se e levam-me
perspetivas e ruídos.

Vou em frente.
Ou talvez não.
Não sei por onde ir.

Sou esboço de palavra
que se fechou
meus olhos diluem-se sem se saberem.

Vou em frente.
Ou talvez não.
Não sei por onde ir.

Na luz da chuva
trago nos lábios sentidos imperfeitos
do sonho mastigado
e poemas inconcretos.

Vou em frente.
Ou talvez não.
Não sei por onde ir.

Se tropeço distraído o poema interrompe-se
cada vez mais longe de mim.
Ele bem me avisou: fica aqui.
Ficarei, então…
até o poema se lembrar de mim.








SOFIA LEAL



AO LONGO DAS ESTAÇÕES

Se há assim tanta poesia
O mundo inteiro é o princípio
De um comboio que nos transporta
Para os campos do futuro
Onde a luz nos esperta o olhar
As palavras abrem-se como janelas
Numa expressão de vida
E soltam-se pelo orvalho das mãos
Por onde andaste?
Porque esta canção
Tem estado nos meus braços
E há um sonho
Que as tuas pétalas abrem

A pele ergue-se em flecha
Empoleira-se nos longos parapeitos
Que a manhã traz
E sente poisar nos ombros
Os sons do crescimento:
Um oxigénio lento
Que se bebe em inspirações demoradas
Como se de sementes se tratasse
E delas nascesse um céu maior.

Agora é sempre noite
Noite afundando os pensamentos
Secura à volta dos lápis
Palavras extintas
Que se atropelam na boca
Oiço muitas vezes a distância
Aperta-me com força
Existe um tempo devorado por estilhaços
Sangue e feridas
Muitas sombras agonizantes avançando
Serei perseguida?
E as cidades desmoronam-se
Com a minha chegada







EVA SAS



E O QUE É QUE É NADA NESTE MUNDO?

E o que é que é nada neste mundo? Nada.
Tudo é qualquer coisa
Mas para os olhos do homem
Há sim o tanto nada que ele não vê
Nasce então desse nada tudo o que se pensa e não é
E adia-se o mais possível o dia do desengano
Narrando um engano como vida do tamanho desse nada que não se vê
Pobre o animal da ilusão
Que vai construindo a sua verdade
Sonhando com cargos e estatutos
E amores sem Amor e mentiras sentidas
Pobre o animal da ilusão
Que cria a realidade estreita quanto ele mesmo

Tudo é qualquer coisa
Mas para os olhos do homem
Há sim o tanto nada que ele não vê
E é consoante o tamanho do nada que se nos assenta
Que cada homem é o homem que é.






EDITE ESTEVES



UM HINO À LÍNGUA PORTUGUESA

Ao Casal das Letras
nos seus três anos de vida


Três anos
três tempos
três amores e desamores
três audácias
três tremores
três virtudes e desagravos
três vasos
cheios de afectos
grandezas
vontades
bordados
com três fitas de esperança
duas abelhas no favo
um casal
enamorado
ao fim de anos e anos
e uma luta
sem tréguas
contra a fome
de literatos
três anos de cultura
rondas firmes
sem usura
um castelo
inexpugnável
com três torres
de menagem
três sentinelas
de guarda
e um hino
audacioso
à língua portuguesa.



   Palmela, Março de 2014






GIL MONTALVERNE



A Euridice

Sei que voltaste
Sem que te possa tocar.
Sei que caminhas a meu lado
E não te posso ver.
Sinto no ar
O perfume do teu rosto
E quando quero os teus lábios encontrar
Sorvendo a gota do último desgosto
Imagino os teus olhos suplicantes
Temendo a noite que um dia há-de chegar.

Estendo os braços para a frente
E não te alcanço.
Procuro os teus cabelos ondulantes
E prendem-se-me as mãos
Nas grades frias
Que à minha volta encobrem o caminho.
Sinto o calor
De uma carícia leve
Para lá da prisão e da distância
Quero mais uma vez ver no teu rosto
Toda a beleza ingénua da infância.

Quebremos as correntes que nos prendem
E ergamos bem ao alto o nosso amor
Mesmo que a noite venha
E tudo acabe
E nada mais exista senão dor.






MARIA HELENA MARCÃO



Mãe-Mar


FOTOGRAFIA DE JORGE GONÇALVES POR ESPECIAL CORTESIA


Escrevi nas águas do mar
um poema à minha mãe
e as letras renascendo
da agitação das vagas
carregaram minhas mágoas
até às águas profundas.
Contornaram o fundo incerto
de seres marinhos povoado,
subiram a borbulhar
pelos caminhos do mar
até à tona, ao sol
e entre golfadas de sal
juntaram-se à minha dor
indo comigo também
espalhando a todo o mar
que perdi a minha mãe.

   1 dezembro 2013






MÁRIO BERNARDO



... se o tempo ...
Para o Mário Botas

Eu nunca sou quem sou
nem nunca sou quem fui
eu sou sempre quem vou ser
se o tempo me entender

Eu nunca estou onde estou
nem nunca estou onde estive
eu estou sempre onde vou estar
se o tempo me alcançar

Eu nunca vou onde vou
nem nunca vou onde fui
eu vou sempre onde hei-de ir
se o tempo ... me permitir

    Lisboa, 2013







MARIA DO SAMEIRO BARROSO



Quando a luz se cinde

Sei que todos os rouxinóis já morreram
no centro das paisagens amarelas
onde os cães já não uivam, nem os galgos
choram.
Sei que todos os pássaros que me trazem
a névoa são cometas efémeros.
Por isso, nada designo.

Hoje, tudo é triste, como um poema que desaba
numa rua obscura.
Talvez os meteoros ainda pulsem, algures,
na estrada sinuosa do meu sangue.
Sei que todos os rouxinóis já morreram
e que os lobos e os homens apenas desfiam
a sua teia de morte.

Que pode o silêncio quando a luz se cinde?
Que pode o corpo, quando o coração se prende
e se estilhaça?
Que pode a sede, o magma, o vulcão,
quando as faíscas cintilam

apenas para perfilar o nada?






ALBANO MARTINS



Ave

Ave. Sim, tu és
talvez uma rola, talvez
uma andorinha.
Sim, eu sei :
eu sou
talvez um rei,
tu és
talvez uma rainha.






NATÉRCIA FRAGA



A minha Mãe

Estremeço por tua vida
Em cada instante
Como se foras frágil fruto
Em meu ventre aconchegado.

Quanto tempo mais será o teu
Na desbotada consciência
Em que vives
Porém agora afirmativa
Senhora da tua vontade
Presa embora em teu corpo destroçado
Que te não obedece?

Estremeço por ti
Em cada instante
E para junto de ti
Em todos os instantes quereria voar
Aninhar-nos uma na outra
Darmos as mãos
Tua cabeça na minha repousada
Respirando teu silêncio
E tuas palavras sussurradas
Mergulhar em teus olhos líquidos
Infinitamente azuis e ternos
Em meu coração periclitante
Que sabe teu fim virá
Talvez em breve
Mas não o quer.

Mergulhas os teus nos meus olhos
Dizendo-me, perguntando-me… o quê?