Rui Beja Mestre em Estudos Editoriais pela Universidade de Aveiro Antigo presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros e do Círculo de Leitores ![]() ![]() |
PEQUENAS MEMÓRIAS DO CAPITÃO MILICIANO QUE NUNCA QUIS SER ![]() Chegado a Nampula em Fevereiro de 1973, não tardou muito para que me apercebesse do estado de espírito que reinava nas tropas. Os que já por lá estavam há muito, e que se auto-designavam como «apanhados pelo cacimbo», iam riscando num calendário cada dia que passava. Aos que chegavam a Nampula era desde logo dado a ouvir o «Cancioneiro do Niassa», um testemunho considerado subversivo pela polícia política mas cuja circulação os seus agentes não conseguiam controlar, que na versão que gravei e guardo "religiosamente" contempla a seguinte introdução:
"O «Cancioneiro do Niassa» é uma colectânea de fados que tem como assunto central a vida dos militares em serviço nesse distrito do norte de Moçambique durante os últimos anos da década de sessenta. Os autores das letras que as adaptaram às melodias em voga nessa época são desconhecidos, apenas se sabendo que pertenciam aos diversos ramos das forças armadas, nelas ocupando variadas funções e postos. Esta diversidade de origem faz contudo realçar uma variedade temática facilmente detectada através de todas as letras; e é nessa variedade que reside precisamente o maior interesse folclórico e documental do «Cancioneiro» como testemunho de uma época e como tradução do sentir daqueles que a viveram."
O primeiro e o último desses 24 temas, constituem exemplos expressivos do que significa o «Cancioneiro do Niassa»:
Assim, a iniciar o «Cancioneiro» temos o «Fado do Checa». No norte de Moçambique, especialmente no Niassa, «checas» são os que vêm de novo, são os que acabaram de chegar e estão portanto no começo da sua comissão. Neste fado aparece o termo «lerpar» que no Niassa é sinónimo de tudo, desde ficar a perder até morrer, e é empregue como ter de passar "maus bocados":
Seguidamente ouviremos um fado sério: o «Fado Render da Guarda». Ele foi cantado e dedicado pelo fadista ao seu público de sempre, os camaradas, na noite da sua despedida do Niassa. Toda a sua garra de artista está posta neste cantar em que o significado do verso traduz perfeitamente o seu estado de espírito. Ao deixarem o Niassa, no momento do render da guarda, há muitos que certamente se sentem assim:Bem-vindo «checa» p’ra esta guerra que cá te espera Não estejas triste que a guerra é linda só «fazes cera» Vais ter saudades de mulheres brancas, ai que tormento Aqui há pretas mas tem cuidado com os casamentos «Checa» danado p’la tropa muito lixado Não chores óh! desgraçado, não vale a pena chorar «Checa» bem-vindo chegaste a horas eu já vou indo Afinal mal encavado que vieste cá fazer? «Checa» danado vieste para me render Vais «lerpar» muito mas com o aumento vais ficar rico Dá-o às pretas pois assim fazes a tua «psico» Mas tem cuidado «checa» danado sê pouco anjinho Manda-os lixar e faz a tua guerra sozinho «Checa» danado p’la tropa muito lixado Não chores óh! desgraçado, não vale a pena chorar «Checa» bem-vindo chegaste a horas eu já vou indo Afinal mal encavado que vieste cá fazer? «Checa» danado vieste para me render
Vou-me embora
Quarenta anos depois, o «Cancioneiro do Niassa» vale bastante mais pelo interesse documental que os seus autores já antecipavam do que pelo interesse folclórico que então também lhe atribuíram. Todas as questões que se punham na Guerra Colonial em Moçambique, estão espelhadas no «Cancioneiro»: os constrangimentos, as perversões, a corrupção, a incompetência, os sonhos, os desenganos, a sátira, a crítica, o abalar das consciências, os estados de alma, tudo ali está retratado.Hora triste Que a minha voz não resiste A cantar em tom magoado Volto à terra Falta pouco Já’tou num desejo louco Que o meu coração encerra Sinto vontade De acabar com esta guerra Mas domina-me a Saudade Que vou deixar nesta terra E s’inda agora Estava alegre e bem disposto Ao ver que chegou a hora Vou embora com desgosto Vou partir Deixo a malta Hei-de sentir sua falta Apesar de ir p’ra melhor Levo comigo A lembrança E a minh’alma não descansa Deixando o lugar amigo Quero cantar Mas sufoca-me a emoção Sinto a guitarra a chorar A par do meu coração ‘Tou“ já à beira Do render da minha guarda E embora queira e não queira Vou abandonar a farda Militares portugueses e patrulha da Frelimo Em Nampula, em de Setembro de 1974, os tempos eram de incerteza e de ansiedade mas o dia-a-dia corria sem qualquer tipo de incidentes ou distúrbios. Os cérebros da «rebelião branca» e da «retaliação negra» não andavam por ali; pertenciam às elites residentes na então Lourenço Marques e na Beira. Neste entretanto, chegou-me a notícia desejada: a minha comissão iria terminar em princípios de Novembro. Animados pela acalmia existente e pela perspectiva de um rápido regresso, alguns alferes milicianos tomaram a iniciativa de organizar uma excursão à lindíssima baía de Pemba. Seria a primeira vez que militares portugueses, alguns deles acompanhados das suas mulheres, atravessariam o rio Lúrio em viagem lúdica e entrariam naquela que havia sido uma das mais sangrentas zonas de guerra: Cabo Delgado. Convidaram-me para o passeio. Numa manhã de Outubro, partimos no velho autocarro que fora da Mocidade Portuguesa e chegados ao rio Lúrio parámos para tirar as fotos que documentariam uma «travessia histórica». Pouco depois, inesperadamente, fomos mandados parar por uma patrulha da Frelimo. O comandante perguntou ao motorista quem éramos e, depois de informado, disse que pretendia falar com o mais graduado. Desci do autocarro, expliquei ao que íamos, e apercebi-me que não havia razão para preocupações quando a conversa se encaminhou para as vantagens mútuas de a guerra ter acabado. Preparava-me para voltar para o autocarro, quando o meu interlocutor perguntou: oh meu capitão, tem uma máquina fotográfica? Eu tinha a máquina! A foto tirada à patrulha da Frelimo é agora uma relíquia dos meus arquivos. Há quarenta anos, em 11 de Novembro de 1974, regressei finalmente a casa e à família. Parti com a enorme alegria de voltar e com a estranha sensação de que também eu deixava Moçambique com a nostalgia tão bem expressa no «Cancioneiro do Niassa – Fado da Despedida». Regressei com a convicção de que os guerrilheiros moçambicanos não guardavam ódio aos portugueses e que o processo de descolonização e independência retomaria o caminho certo da moderação e da paz. Sempre estive, e continuo convencido, que tudo o que acabou por correr mal não se deve ao povo, branco ou negro, daquele país. Deve-se às pretensas elites, de todas as raças, e mestiços também, que não souberam merecer as gentes de Moçambique. Lisboa, 11 de Novembro de 2014 (40 anos depois) |
Mário de Carvalho Escritor ![]() |
![]()
MANUAL DE ESCRITA PARA PRINCIPIANTES
![]() (PORTO EDITORA) SINOPSE DO NOVO LIVRO PELO AUTOR: Ser escritor. O texto ficcional. Dilemas, enigmas e perplexidades do ofício. No vale das contrariedades. Nada do que parece é. O «assertivismo» é um charlatanismo. A valsa dança-se aos pares: escrita e leitura, autor e leitor, personagem e acção, causalidade e verosimilhança, contar e mostrar, o dentro e o fora, a superfície e o fundo. O bico-de-obra do primeiro livro. Por onde começar? Com que começar? Com quem começar? A manutenção do interesse. Não há regra sem senão; não há bela sem razão. Ou o oposto. Riscos, cautelas e relutâncias. ![]()
E a linguagem? Supondo que um escritor dos nossos dias conseguia reproduzir o português de Fernão Lopes, quem o entenderia? Aliás este é um dos pontos em que facilmente o anacronismo, quer no vocabulário, quer na construção sintáctica, se identifica. Se lermos os romances históricos do século XIX em que se imita (atenção) o falar dos homens medievais, sempre pitorescos e quase sempre furibundos e irrascíveis, somos tomados por uma desagradável sensação de ridículo. Mas também não se pode pôr um cavaleiro a dirigir-se à sua dama nos termos em que se exprimiria um adolescente dos nossos dias.
Acresce que, para tirar este ou aquele efeito, a cronologia e os dados históricos podem não convir, ser mesmo um embaraço. Para não falar da sobrecarga de pormenores que se arrisca a tornar o texto ornamental ou coreográfico. Que fazer, então? Lembrem-se da forma severa com que eram tratados os jovens espartanos, a quem se dava propositadamente uma alimentação escassa: «roubem, mas ai de vós se fordes apanhados». A perícia está em transgredir, sem que isso seja notado. Por quem? Pelo leitor comum: bom leitor, competente, mas não especializado. Um especialista poderá assinalar a transgressão e fá-lo-á, se calhar, com facilidade. Um filólogo, imediatamente reportará certa linguagem a determinada época. Qualquer deles detecta o anacronismo. Mas o escritor de ficção não escreve apenas para eruditos, por maior respeito que eles lhe mereçam. Escreve para leitores que, ainda que informados, não têm à mão a mesma potencialidade de conhecimento. Então, ao historiador, ao linguista, ao coleccionador, ao erudito está vedada a leitura despreocupada dos romances de época? Não estará, decerto. Mas implica, por parte deles, um reforço da suspensão da descrença e, porventura, alguma condescendência. Penso que da banda do escritor a questão se reconduz ao efeito do ilusionismo em que falava Maupassant. Não quebrar o encanto. Fazer de conta, dar a ilusão de realidade, captar a atenção e o interesse, de maneira a não ferir a confiança que em nós o leitor depositou, nem violar a suspensão da incredulidade com que nos honrou: o pacto ficcional. Isto implica que, na medida do possível, as opções do autor que opta por um tema histórico sejam minimamente informadas. E que, quando transgride, saiba — ou pelo menos suspeite — de que está a transgredir e a extrair disso um certo resultado. Em duas palavras: a transgressão da cronologia ou utilização do anacronismo como efeito estético deve dar-se por escolha, como opção do autor. O menos possível por ignorância, e em nenhum caso por desleixo. É importante que o leitor perceba que se pesquisou, que se trabalhou para ele, que se cumpriu, que houve respeito pelo pacto que a escrita implica, e que não é tratado pelo escritor de qualquer maneira. Um eventual desmascaramento do autor pode não estar imediatamente ao seu alcance, mas a intuição — que não raro é feita de experiências de leitura — conta muito. O próprio tempo, considerado em si mesmo (e os efeitos paradoxais que da sua inversão resultam) tem servido de tema a múltiplas histórias. Através das várias épocas tem ressurgido, de diversas formas, o tema do dorminhoco, ou dorminhocos que acordam dezenas ou centenas de anos após adormecerem. Há a velha lenda dos sete cristãos de Éfeso que se refugiaram numa caverna e dormiram cinquenta anos, protegidos por um cão. Manuel Bernardes em Pão Partido em Pequeninos, conta, com intenções piedosas, a história dum frade que se deixou dormir ao embalo do canto de um passarinho e quando regressou ao convento estava tudo diferente e já ninguém o conheceu, até que o superior procurou e descobriu o seu nome nos registos mais antigos, de trezentos anos antes. Mas a mais célebre história de dorminhocos é a de Rip Van Winkle, inspirada num conto dum folclore alemão, da autoria do escritor romântico norte-americano Washington Irving. O homem mais preguiçoso duma aldeia da América colonial, Rip, era um grande caçador. Perde-se, um dia, entre as montanhas e depara com os marinheiros do holandês Hudson, desbravador daqueles territórios, primeiro salto no tempo, para o passado. Dão-lhe de beber, ele adormece e quando regressa, o território já não é uma colónia inglesa e o retrato do Rei George sobre a porta da estalagem foi substituído pelo de um tal General Washington. Tinham decorrido vinte anos sobre a soneca. Rip Van Winkle, reintegrou-se, e ficou como uma espécie de emblema de todos estes dorminhocos e dos que estão para vir. Todos conhecem a viagem no tempo de H.G.Wells (The Time Machine) e a majestosa máquina que o Viajante no Tempo usa e que resplandece de elegância belle-époque no filme de George Pal. Também é muito conhecida a fantasia cómica de Mark Twain Um Americano na Corte do Rei Artur (A Connecticut Yankee in the Court of King Arthur) que envolve um americano comum do século XIX no mundo da Távola Redonda como Mark Twain o concebeu. Mas o texto que de forma mais inquietante, a meu ver, trata os paradoxos da viagem no tempo é «Como Um Ruído de Trovão» (A Sound of Thunder) pequena história de Ray Bradbury que relata um safari comercial para caça de um tiranossáurio, que se sabia de antemão (agência especializada) que iria necessariamente morrer uns instantes depois. Contra as instruções cautelosas dos guias, um dos caçadores pisa uma planta e esmaga uma borboleta. Regressam a um futuro que se encontra fortemente modificado por esse descuido. Este conto inspirou uma célebre metáfora de divulgação científica que é muito mencionada. |
José Maria Rodrigues da Silva Juiz Conselheiro Jubilado e escritor ![]() |
A HISTÓRIA DO HOMEM QUE VIVEU MUITAS VIDAS AUTOR APRESENTA O SEU NOVO ROMANCE ![]() A praia da Costa da Caparica une «O Princípio» e o «O Fim» do novo trabalho literário de José Maria Rodrigues da Silva, um autor que sem andar nas luzes da ribalta não deixa de ter uma obra assinalável no domínio da ficção e do ensaio, passando igualmente pela poesia e teatro. O livro que surge agora nas bancas, A História do Homem que Viveu Muitas Vidas (capa de Sandra Lino) é um romance surpreendente, notável no modo como articula o desdobramento de uma personagem singular e a teia romanesca que segue uma narrativa na primeira pessoa, límpida na intensidade do seu contar, fascinante nas reflexões que nos deixa em torno da vida e morte, do corpóreo e do espiritual, do enamoramento, da memória, das emoções, do poder do olhar, da religiosidade, da relação com o tempo ou do tempo como ilusão, da busca interior por caminhos de serenidade. Convidámos o autor a falar-nos desta sua nova ficção, que tanto oferece de belo e sensível à palavra, à sabedoria do imaginário, à ciência (à genética em particular) e à capacidade de nos interrogarmos, sempre e sempre, sobre o (des)conhecimento do Ser, quem somos e por que somos. ![]()
O romance conta a história dramática, por vezes pungente de João Paulo Cabral, um geneticista português, de religião budista que aos 26 anos, após uma doença grave, apercebe-se que deixou de envelhecer, ou melhor, que passou a envelhecer tão lentamente que os outros não notavam. Nesse tempo, por volta do ano 1900, a sociedade não aceitava a diferença. Daí que passados cerca de trinta anos, tendo a sua anormalidade tornado notória, se tenha visto obrigado a partir para Paris e, mais tarde, de Paris para Nova Iorque. Por isso o romance, que é narrado na primeira pessoa, tem por narradores os vários “eus” que João Paulo assumiu na sua longa vida: Jean Paul Claudel em Paris, John Paul Cabral em Nova Iorque, John Paul em Alderwood depois de se ter apaixonado e casado com Gladys Davenport, John Paul intermediado por Lilian Meredith no Canadá e de novo na América do Norte, John Paul e John Paul Cabral. O primeiro capítulo — "O princípio" — passa-se na praia da Costa da Caparica que, ao tempo, pelo seu areal a perder de vista lembrava o dia da criação do mundo. O último capítulo — "O fim" — passa-se também na praia da Costa da Caparica onde João Paulo conhece Joana, uma espécie de sósia da sua primeira mulher, que sabe mais tarde ser sua tetraneta e com quem faz amor sem saber o que os ligava. Desiludido, morre — ou reencarna numa flor-de-lótus — por querer desesperadamente ter um fim como as mulheres que amou e os filhos que teve. Na Columbia University, onde trabalhou como geneticista, John Paul submeteu-se a vários testes, tendo-se verificado que apresentava índices elevadíssimos de telomerase e das demais proteínas que participam na reparação genética. Encontrar-se-á aí uma explicação científica para o que lhe aconteceu na vida, se nos abstivermos de procurar a resposta na reencarnação budista. Não pudemos deixar de envelhecer mas pudemos envelhecer bem e mais lentamente. Hoje os geneticistas e os neuro-fisiologistas já não atribuem o envelhecimento ao desgaste, mas à insuficiência da reparação genética. Há tempos ouvi na TV o Prof. Sobrinho Simões, a quem se pedia que desse uma causa genérica do cancro, responder dever-se a uma falência dos mecanismos de reparação genética. |
![]() João Lobo Antunes ![]() Manuel Lobo Antunes ![]() Miguel Lobo Antunes ![]() Nuno Lobo Antunes |
HOMENAGEM AO PROFESSOR JOÃO ALFREDO LOBO ANTUNES NOS DEZ ANOS DA SUA MORTE FILHOS EVOCAM O PAI QUE FOI TAMBÉM FIGURA NOTÁVEL DA MEDICINA PORTUGUESA ![]() Uma das últimas fotografias do Professor João Alfredo Lobo Antunes cedida pelo filho João
A história da medicina portuguesa da segunda metade do século XX não poderá escrever-se sem sublimar na primeira linha o nome do Professor João Alfredo Lobo Antunes, eminente neuropatologista que pertenceu a uma idade de ouro das neurociências em Portugal. A figura do médico, do professor catedrático de neurologia, do investigador e autor de uma extensa bibliografia dividida por estudos científicos, conferências e lições, destacou-se a nível internacional. Mas era discreto. Privilegiou a busca de conhecimento, apegado ao seu microscópio, aos livros, à cultura que em si era sólida e infinita. Pertenceu à equipa de Egas Moniz, trabalhou com Miller Guerra, António Flores, Almeida Lima, Corino Andrade, Jorge Horta, nomes maiores da arte médica do nosso país.
Na sua casa de Benfica, rodeada de árvores e de memórias, ouvimos-lhe histórias deslumbrantes, algumas delas inopinadas em absoluto porque nada tinham que ver com medicina, antes e tão-só, singelamente, com… patinagem! Sim, porque o Professor João Alfredo Lobo Antunes foi também campeão nacional de patinagem! CINCO FILHOS, QUATRO EVOCAÇÕES No momento em que se completam dez anos sobre a morte deste vulto da nossa medicina, pedimos aos filhos de João Alfredo e de Maria Margarida, companheira de uma vida, que nos confiassem as suas memórias do pai. (Infortunadamente faleceu há cerca de seis meses o filho Pedro, arquiteto). Lamentamos que não esteja presente nesta homenagem o filho António Lobo Antunes. Com gratidão e júbilo pela imensa riqueza dos textos, os jornalistas autores deste sítio de cultura e de partilha apresentam a seguir as evocações de um neurocirurgião (João Lobo Antunes), de um diplomata (Manuel Lobo Antunes), de um jurista (Miguel Lobo Antunes), e de um neuropediatra (Nuno Lobo Antunes). Tivemos oportunidade de conhecer pessoalmente o Professor João Alfredo Lobo Antunes e sua esposa, Maria Margarida. Um desses encontros foi deveras emotivo e dele deixamos testemunho no espaço consagrado aos nossos Grandes Portugueses (secção "Registos"). MAS / PF João Lobo Antunes NEUROCIRURGIÃO Na nossa casa respirava-se medicina…
Das dezenas de ensaios que escrevi ao longo dos anos, dois foram dedicados a meu Pai. Um, "A História de um Velho", era "um longo salmo de amorosa inconfidência". O outro, "Lo Mio Maestro" ─ título extraído do "Inferno" de Dante ─ , tratava da minha razão de ser médico e da influência paterna nessa escolha, influência que, de certo modo neguei, pois a decisão fora autónoma, original e de assumida racionalidade. A questão, no entanto, é outra quanto à absorção do modelo ou do estilo. Nisto não desminto a adopção de um conceito aristocrático de profissão e do extraordinário rigor científico e escolar, pois ele não admitia uma imprecisão na linguagem, uma varridela descuidada nas fontes da consulta ou uma citação que não fosse a transcrição fiel do original.
Dos seis filhos, três foram médicos. De facto, na nossa casa respirava-se medicina, sem alguma vez se mencionarem as virtudes da profissão ou as benesses da sua prática. A recordação que tenho é que ser médico apenas garantia a subsistência austera da família ─ uma mulher e sete homens ─ , numa casa em que todos os homens estudavam e a mãe, quando não cozia, lia. A medicina seria então para uma profissão de estudo, estudada por livros grossos, escritos em pelo menos cinco línguas. Era, igualmente, uma profissão de escrita, um ofício que obrigava a longas horas de redacção – era uma tese de doutoramento que levou mais de vinte anos a concluir! O Pai impunha com irada severidade um ambiente de absoluta tranquilidade. É possível que esta disciplina tivesse moldado de forma decisiva e perene os meus hábitos de estudo, e inspirado uma regra puritana que faz com que ainda hoje me custe a aceitar que há tempo de recreio. Na secretária pousava um microscópio com que meu Pai analisava os tumores que eram extraídos pelos neurocirurgiões, primeiro em Santa Marta e depois em Santa Maria. Esta era a arte mágica da descoberta do invisível e da revelação de uma estética enigmática – um "tumor lindíssimo!" exclamava às vezes. Desse tempo guardo ainda a memória da extraordinária doçura com que tratava os filhos doentes – a febre era medida encostando a nossa face à sua, áspera da barba. Aquela doçura — que desaparecia no quotidiano — renascia quando a partir dos meus 10 anos eu o acompanhava aos sábados de manhã ao Hospital de Santa Marta, onde passávamos horas na câmara escura a fazer microfotografia com uma máquina com um fole que parecia um dragão chinês. Por vezes toda a manhã era dedicada a uma única imagem, porque ele era um perfeccionista obsessivo. Com o mesmo afecto analisou comigo e corrigiu impiedosamente, passo a passo, a minha tese de doutoramento. Ele viveu sempre da palavra exacta na linguagem (vituperava os "francesismos"), encantado pela riqueza do vocabulário e seduzido pela originalidade do sinónimo. Meu Pai foi o exemplo acabado do praticante de uma especialidade híbrida – a neuropsiquiatria – praticada pelos neurologistas do seu tempo. A sua enorme cultura permitia-lhe falar com qualquer pessoa naquele idioma único que força o olhar, olhos nos olhos. A sua sensibilidade artística temperava as emoções do encontro singular da clínica e, não raramente, suspeito, a sua consulta teria um tom de elegante sedução. Vê-lo observar um doente, usando as mãos como instrumento de interrogação do corpo doente, mão seguidora fiel dos preceitos semiológicos da neurologia francesa do princípio do século, era assistir a uma coreografia única de uma admirável delicadeza. Mas para lá do encanto na clínica, ele era um morfologista, um sistematizador das imagens microscópicas das doenças do sistema nervoso. Era uma ordenação estética e desta ele deduzia o comportamento, mau ou bom, daquilo que lia nas lâminas microscópicas. Por minha parte, segui um caminho independente e a partida para Nova Iorque foi um passo indispensável nessa libertação. De facto, a relação de sangue não elimina o conflito que invariavelmente lateja na relação entre mestre e aprendiz. Mas o saldo desta relação foi claramente a favor da herança de um património de valores e da preservação de uma tradição oficinal que cumpria, na sua essência, os mais puros preceitos hipocráticos. ![]() Manuel Lobo Antunes DIPLOMATA. EMBAIXADOR DE PORTUGAL EM ITÁLIA O meu Pai João Alfredo
O maior problema que tenho com o meu Pai é não conseguir esquecê-lo para matar definitivamente as saudades que tenho dele.
Ao meu Pai devo muito do que sou, e os meus filhos herdarão por isso muito dele. E eu gosto que assim seja, porque penso que é bom para eles, como foi bom para mim. Como sou o mais novo dos descendentes, ele era já considerado na altura em que nasci um pouco "entradote". Daí tirei uma vantagem: em geral a maior disponibilidade dos velhos com as crianças; mas também um inconveniente: acusam-no de me ter mimado demais. "Estragou-me", a vida não é exactamente como ele ma desenhava, afinal tem dificuldades e desgostos.
Nunca recusou o que lhe pedi. Até um projector de Super 8 a troco de um "Bom" num ponto de Física (disciplina a que era péssimo aluno, nunca entendi como funciona o nónio ou a craveira) quando eu tive a mania, adolescente, que queria ser empresário de espectáculos. Ou um gira-discos "Elac" comprado na loja "Estereosom", ali na Av. 5 de Outubro onde ele próprio se fornecia de aparelhagem "hi-fi", quando o convenci que o meu amor pela música era sincero. Com ele, no apertado banco de trás de um Lancia Fulvia GT verde (HF-33-34!), sonho de toda a sua vida, visitei o país de norte a sul enquanto ultrapassávamos todos os Datsun 1600 SSS que encontrávamos na estrada. E aprendi. O meu Pai foi o melhor professor que tive. Continua a ser. Só eu sei o quanto lhe agradeço. ![]() Miguel Lobo Antunes JURISTA «O amor pelas coisas belas»
Já passara há muito dos oitenta. Mas com a cabeça inteira. Um dia perguntei-lhe, ao jantar, o que gostaria de deixar aos filhos. Pensou um bocadinho (ele diria "um pedacinho") e respondeu "O amor pelas coisas belas".
Também aí ele conseguiu o que queria. Todos nós fomos tocados pelo seu amor contagiante pelas coisas belas. Lia-nos o Eça ou o Ramalho, recitava poemas de cor à competição com o António, fazia-nos ouvir música clássica, jazz, fado, mas também Pink Floyd, Santana, ou Patachou, Piaff, Brel, Barbara… Aos dois mais velhos deu aulas de pintura, com guache e aguarela. A mim mostrava-me livros com os grandes da pintura e da escultura. E de todos falava à mesa. Se fosse possível entrar dentro de mim, porventura chegaria à conclusão que o que mais me marcou foi o entusiasmo que ele punha a falar das coisas belas. ![]() Nuno Lobo Antunes NEUROPEDIATRA A mais importante das lições
A morte de um pai faz pensar na vida. Durante anos foi a nossa referência. Ditou ações e incutiu julgamentos. O seu cheiro era a essência da masculinidade. Os seus gostos, em matéria de arte, inquestionáveis, porque era implacável na correção de um texto e na colocação das vírgulas. Quando o vi, imóvel em leito de pedra, a catacumba do hospital transformou-se no Mosteiro da Batalha, e estranhei que no mármore não estivesse gravado, em numeração romana, o ano da sua morte.
Tarefa difícil julgar os homens e a sua influência. Decerto não repartiu, de forma igual, o seu legado, porque era avaro na tolerância, e enviesado na avaliação de pessoas e atos. A sua vida teve pouca repercussão pública. Foi admirado pela geração de estudantes que com ele aprendeu a colher os sinais da doença, e conseguiu obter dos contemporâneos uma reverência cautelosa, e uma enorme tolerância para os seus defeitos, o que lhe permitiu viver a vida como quis, livre de incómodos e obrigações sociais. Era um amante da forma, e no rigor procurava a segurança que a exatidão transmite. Por tanto procurar a perfeição, pouco produziu, porque a exigência máxima impede obra menor, mas torna estéril a vontade de criar. Admirou profundamente os frutos da inteligência e da sensibilidade. Nunca lhe vi tanto sentimento como quando explicava o teorema de Pitágoras, ou descrevia a impressão causada pelo Cristo de Velasquez. A vida é tempo entre parêntesis, e é preciso cuidar do que lá inscrevemos. O meu pai não permitiu que lhe roubassem a pena e outros escrevessem o guião. Foi ele o narrador da sua história, e essa é, para mim, a mais importante das lições. |
Baptista-Bastos Jornalista e escritor ![]() |
JOSÉ ANTUNES - O REPÓRTER ESQUECIDO Revejo-lhe o sorriso claro, o sentido religioso da vida, a beleza sem mácula de gostar dos outros, a capacidade de compreender a grandeza dos desventurados, essa reserva no sofrimento e essa total deposição de glória. José Antunes, meu camarada, meu parceiro de andejos por montes e vales, no varejo da reportagem, no garimpo do oiro da notícia. E ouço-o: "Vamos a isto, amigo Bastos!, vamos a isto!" Sempre me tratou assim, amigo, num laço de afecto que durou até ao fim da sua vida. "Como é que está o amigo Bastos?", perguntou à mulher, sabedor de que eu fora internado, pela mesma ocasião em que, a ele próprio, a cirurgia tentava extrair um tumor no cérebro. Dias trágicos, dramáticos ou radiosos, esses, em que, no Diário Popular, oferecemos tudo o que havia a oferecer. Ele com a máquina fotográfica sempre pronta a disparar; eu com o coração sem rugas a procurar descobrir o que se escondia, nos outros, para lá do meu olhar. Percorro, agora, os jornais, as revistas e as televisões que recuperam muitas e muitas imagens obtidas pelo meu amigo, há quarenta anos, na festa de Abril. Nem uma leva o nome do autor, num anonimato obsceno, que tem muito que ver não só com ignorância, mas também com inveja e com o desprendimento ético do meu amigo. Durante esses dias tumultuosos e febris o Zé Antunes fotografou tudo o que era imprescindível fotografar. Uma tarde, revelou-me que tinham "desaparecido", do laboratório do jornal, três rolos de negativos por ele considerados "históricos." Disse-o sem lamúria nem queixume, acentuando, apenas, que desconfiava de quem fora o usurpador. Um mestre no fixar do instante mágico; um artista que apreciava a incomparável ternura humana, e detestava a brutalidade da fome, da miséria e do infortúnio marcante nas classes pobres de onde ele e eu provínhamos. Era, acaso, essa origem que nos aproximava, dois feitios opostos, ele calmo, sereno e conciliador; eu, brigão, agitado, mas também cheio de compaixão pelos outros. O Pedro Foyos, da mesma, já rara, estirpe antiga, chegou a organizar um livro de fotos do amigo comum. Mas o grande acervo de imagens talvez a família ainda o retenha: um modo diferente, mas muito belo, de olhar a cidade e de a cidade falar como quem olha e fala da coisa amada. Anda por aí um bulício de aplausos e uma cerimónia de entrega de louros imerecidos, a quem somente tem sabido sobreviver às contingências do momento. O Zé Antunes foi um dos maiores repórteres fotográficos deste país; um jornalista cujo génio se escondia numa modéstia elegante. Mergulhou no tempo que lhe coube viver com a consciência de quem quer dizer dos outros a natureza da sua pessoal grandiosidade. Com uma máquina fotográfica que, nas mãos dele, possuía alma e coração. |
José Jorge Letria Escritor. Presidente da Sociedade Portuguesa de Autores ![]() |
![]()
O DIA EM QUE OS CAPITÃES FIZERAM PORTUGAL FELIZ ![]() FOTOGRAFIA DE FERNANDO FARINHA Autor representado na Fototeca dos Aliados / Área Reportagem http://www.casaldasletras.com/Fototeca.html
Foi uma noite larga como um rio,
tão larga como o coração de um povo ou o voo de um albatroz sobre o sono das ilhas. Foi uma noite a desaguar numa foz de pétalas onde todas as vozes se juntaram, altivo coro, para dizer que nunca é tarde para a felicidade sentar à nossa mesa a herança de luz que a torna tão desejada, doce e rara. Até o silêncio se fardou de capitão para abrir a porta de armas a um cântico vindo do ventre fértil desta pátria com uma arca de palavras nascidas da lavra do nosso amor a tudo o que nasce valente e livre. Que idade tínhamos nessa madrugada que tudo prometia ser, deixando o medo refém de uma vida inteira de servidão e vénia ? Tínhamos a idade dos filhos que já tínhamos e dos que vinham a caminho, sem mácula, para que nunca mais se fechassem as portas que a coragem abrira à bênção do vento e do riso. Que idade tínhamos nós nessa noite, mãe de todas as noites que as feridas da guerra e do exílio cobriram com os panos ásperos do sal das lágrimas ? Tínhamos a idade de ser irmãos daqueles a quem, com a bravura das ondas, chamámos camaradas, na fraternidade de sangue que aduba os canteiros da paz. Que idade tínhamos nós nessas horas tecidas com o fio da incerteza que sufoca, que engrandece ? Passaram quarenta anos, tantos anos, por nós, pelos retratos, pela gaveta funda das lembranças, pelos olhos das mulheres e dos filhos, dos amigos que o tempo teimou em levar, traiçoeiro e sem aviso, só para nos castigar com o fel da imerecida ausência como se houvesse um preço a pagar por termos conseguido tornar, em Abril, Portugal feliz. Passaram tantos anos pelas páginas do livro que, por amor, escrevemos, enamorados de uma ideia, de um sonho, de uma maré indomável, porque éramos jovens e queríamos que a juventude não morresse no mato das ilusões desfeitas. Passaram tantos anos sobre as cicatrizes do chicote, da tortura, da ameaça, da injúria e nós permanecemos de pé, na reserva da tropa mas não na reserva deste pacto selado com o futuro. E mesmo cansados, nunca fomos tão jovens como hoje para proclamar, guerreiros da colheita adiada, que nos podem tirar quase tudo, menos o direito de, livres, dizermos que Portugal não se rende, desde Alcáçovas ao Largo do Carmo, desde o Terreiro do Paço às celas abertas de Caxias. E esses foram, que ninguém o esqueça, os dias únicos da glória de Portugal, notícia que nos devolveu o fulgor e a magia após tantos anos de dorso vergado nessa feira cabisbaixa de que falava o O'Neill e que reclamava o Portugal futuro do poema de Ruy Belo. Já passaram tantos anos e tão poucos, já fomos tantos e tão poucos, mas cada vez seremos mais, entrincheirados no quartel desta memória que renasce connosco sempre que dela fazemos estandarte desfraldado ao vento daquilo que ainda nos falta viver. E que ninguém se atreva a dizer-nos que a História, afinal, ficou por cumprir. Militares e civis, fomos nós que a escrevemos com as letras de seiva, sangue e espuma com que se escreve tudo aquilo que conta, tudo aquilo que fica, tudo aquilo que resiste. Já passaram tantos anos, mas foi ainda ontem, no manso clarear da madrugada, que mudámos o destino de uma terra e de um povo, como se disséssemos: "Todo o poder que queremos é a liberdade e a alegria de uma pátria livre. Nada mais". No livro desta história está um capítulo em falta e há-de ser escrito por quem não esquece nem desiste. E que ninguém apague a luz enquanto houver lá fora gente à espera dos muitos nomes, vozes e rostos que este nosso Abril ainda um dia há-de ter. ABRIL 2014 (Do livro inédito Zeca Afonso e Outros Poemas para Lembrar Abril) |
António Osório Poeta e advogado ![]() |
3 POEMAS PARA O 3º ANIVERSÁRIO DO CASAL DAS LETRAS A FLOR NATIVA Tantas vezes, dormíamos abraçados. Sonhando fazíamos um novo filho. Terá como os irmãos o direito de ver a maravilhosa Serra da Arrábida. E as suas flores, as próprias, que reaparecem todos os anos : As Orquídeas. ![]() AS CIDADES Vejo-te em Lisboa e Florença. Faziam-te feliz, mais bela. Roma e Setúbal surgiam perto, inesquecíveis. Em Roma ficámos num quarto ao lado do Coliseu. Se este ainda existe, porque razão tu foste desterrada para tão longe ? Pede ao David, a inigualável estátua, que te salve e te ponha depois a seu lado : Eu irei logo ver-te. ![]() OS DOIS JASMINS À porta da nossa casa pus dois jasmins. As flores brancas, magníficas, chamam-te. Das mais belas que pude encontrar. Passou uma semana e o Tempo destroçou-as, inteiras, sobre o chão. Dias depois, encheram-se de novo de flores, como se nada tivesse ocorrido. Flores cantantes, esplêndidas, celebrando a ressurreição. |
José Viale Moutinho Jornalista e escritor ![]() |
![]() UM QUESTIONÁRIO RENOVADAMENTE PROUSTIANO O 25 DE ABRIL DE 1974 É A MINHA MEMÓRIA MAIS LONGÍNQUA Trocaria de bom grado o seu primeiro nome?
Houve uma altura da minha adolescência em que pensei que poderia chamar-me Gastão. Porém, nestes tempos de crise, verifico o disparate em ter um nome tão dispendioso, por isso congratulo-me por ser José.. Quantidade de velas no seu último aniversário? Desde os dez anos que acabei com as fatias de bolo sabendo a cera! Aliás, desde há muito que comemoro o aniversário sem a participação da pastelaria. Tatuagens? Não, mas já sei que há quem faça batota, usando umas que se podem apagar! Piercings? Não, mas acho graça. Já foi a África? Não, mas vivo ao largo, na Ilha da Madeira. Chegam cá os ventos e vão lá comprar areia. Já chorou por alguém? Sim, mas demorei muito a soltar as lágrimas. Praia ou campo? Ilha, que tem ambos por perto. Peixe ou carne? Lampreia, ciclóstomo — que não é carne nem peixe. Cerveja ou champanhe? Conforme a companhia. Metade cheio ou metade vazio? O copo é o mesmo. Lençóis de cama lisos ou estampados? O de cima estampado e o de baixo liso. Uma obra de arte gravada na memória? A Cozinha dos Gordos, de Brueghel. Música preferida? Variações de Goldberg umas vezes e o Coro dos Escravos outras. Filme preferido? O Couraçado de Pontemkin. Flor preferida? Miosótis. Qual o animal que lhe merece mais simpatia? O gato. Melhor refrigerante para os dias de calor? Café quente ou água fresca. Qual dos seus amigos vive mais longe? O telemóvel não deixa os amigos viverem suficientemente longe. Quantas vezes deixa tocar o telefone antes de atender? As necessárias até eu o alcançar. Qual a imagem do seu telemóvel? Fui ver: um entardecer no Caniçal. Pior do mundo humano? O ódio. E o melhor? O humor. Acredita na vida extraterrestre? Tal como os extraterrestres não acreditam em nós! Um feito de que se orgulhe? Não ter feito tanta asneira quando as podia ter feito sem ninguém saber! Última coisa que faz antes de dormir? Tiro os óculos. Qual o primeiro pensamento ao acordar? Ora cá estamos com tempo para mais uma horita de sono! O que tem debaixo da cama? Uma caixa com livros por ler. O que nunca tira? Nada, nunca tiro nada a ninguém. Sou uma pessoa séria, hem? Que dom da natureza desejaria possuir? Já me bastam todos os que tenho. Não ambiciono ser mais do que sou. Tem um lema de vida? Passo o tempo a reescrevê-lo e a rir-me. Que palavra pronuncia diariamente com maior frequência? Desde que a crise se instalou: «raisparta». Que livro está a ler? Estou a reler, na minha idade relê-se bastante. Releio Quando os Lobos Uivam, do muito grande Aquilino Ribeiro. Um herói de ficção? Prefiro os anti-heróis na ficção. Na verdade, os heróis ficcionados são fáceis de escrever. E na vida real? Na vida real? Bem, raramente têm nome, não conheci muitos. Mas existem, embora fragmentados. Se fossem completos, seriam de ficção. Mas posso apontar três nomes muito próximos: Óscar Lopes, Armando Castro e Álvaro Cunhal. Figura histórica preferida? Os revolucionários clandestinos. Uma saudade? O meu Pai, a personalidade mais deliciosamente voltairiana que conheci. Uma memória longínqua? O 25 de Abril de 1974 é a minha memória mais longínqua. Um sonho de adolescente? Ser escritor — e que isso servisse para alguma coisa à sociedade. O maior deslumbramento? A manhã do dia 25 de Abril de 1974. Uma característica sua? A imaginação. Decepções que teve na vida? Certas pessoas que procuro esquecer. Ah, e o chamado Acordo Ortográfico, com o qual discordo. Qual foi o dia mais importante da sua vida? Ter nascido, suponho. A paz é uma utopia? Está bem claro! Um mito que gostaria se tornasse real? A Paz. A mentira mais atroz? A vida além da morte. Qual o seu primeiro impulso perante a violência? Agarrar o violento pelos colarinhos e ... Vota sempre por ideais ou já deu prevalência à utilidade conjuntural? Voto sempre por ideais. Até que os dedos me doam! Lugares onde morou? Funchal, Espinho, Almendra, Porto. Porém, também devo ter morado em lugares que nem faço ideia! Lugares onde esteve e voltaria? México. Programas de TV a que assistia quando criança? Assistia a tudo porque a TV era uma novidade a preto e branco! Programas a que assiste hoje? Noticiários, filmes, séries policiais, Canal História, Assembleia da República, debates. Lugar em que desejaria estar agora? À mesa da Taberna do Carregal, no Porto. Tenho fome. Como gostaria de morrer? Em alternativa à imortalidade de qualidade, durante o sono. Regressando, quem gostaria de ser? Ainda não saí daqui. Não trocava ter sido eu. Espero que tenha ainda tempo para... Tenho um caderno de projetos enorme! Deixe uma pergunta para quem vier a seguir… Qual o grande encanto da vida? |
Maria do Rosário Pedreira Escritora e editora ![]() |
JORNALISTA E ESCRITOR Recentemente, dei com um cartoon numa revista francesa que é esclarecedor do que hoje acontece no mundo da edição. Um casal observa, estupefacto, a quantidade de novidades empilhadas numa livraria e comenta: "Ils ne lisent plus, ils écrivent." Nada mais certo. Se, noutros tempos, era preciso um talento raro para se ser escritor, a verdade é que hoje parece que todas as pessoas podem publicar um livro, mesmo aquelas que, não sabendo alinhar duas frases, recorrem a um escritor-fantasma para lhes fazer o miolo e depois assinam descaradamente na capa, na lombada e no frontispício. E, com esta mudança de paradigma, tornaram-se de um dia para o outro autores muitas celebridades que suspeitamos só terem pegado numa caneta para autografar retratos para os fãs e outros menos famosos que viram na publicação de uma obra a oportunidade de se tornarem conhecidos ou quiçá imortais. Nesta conjuntura, é, pois, natural que os jornalistas se achem, mais do que a maioria, no direito de ter um ou mais livros publicados. Desde logo porque o seu ofício é escrever (embora nem todos sejam igualmente competentes), mas também porque o livro lhes permite registar para a posteridade artigos e crónicas que acabaram no lixo com os jornais e constitui a melhor forma de fixar e disponibilizar uma reportagem que, pelo imperativo do número de caracteres, foi amputada — ou menos desenvolvida do que merecia – quando saiu numa revista. Quando isto acontece, os jornalistas não deixam de ser jornalistas por serem autores e as suas obras não diferem muito daquilo que os ocupa no dia-a-dia. Mas há os que vão mais longe e, até porque a sua escrita jornalística já se distinguia por um certo pendor literário, se atrevem a um romance que — então, sim — os eleva ao patamar de escritores. Da primeira vez que publiquei um romance de um jornalista, há uns quinze anos, não havia ainda esta ânsia de publicar; e, além de Baptista Bastos, Assis Pacheco e mais dois ou três escritores que eram profissionais do jornalismo, a situação de um jornalista-romancista era, por assim dizer, excecional. Pensei, por isso, que fossem chover críticas quando o livro saísse, mas, curiosamente, as coisas não se passaram bem assim. Tudo começou porque, na publicação que empregava o jornalista, ninguém mencionou sequer a existência do livro — ou porque sentiram que o elogio podia ser levado à conta de parcial, ou porque, não sendo elogio, o autor era um colega e convinha manter boas relações. E, nos outros jornais, embora o silêncio não fosse tão gritante, as críticas foram poucas e curtas (embora com muitas estrelas), como se de algum modo fosse inadequado estar a gastar espaço com alguém que trabalhava para a concorrência ou os confrades tivessem ficado com uma certa mágoa, para não dizer outra coisa, de não igualarem aquela proeza. Num país de capelinhas como é o nosso, compreende-se que determinado jornal não queira «apadrinhar» o livro de um seu funcionário, até porque, fazendo-o, muita gente dirá que a crítica não tem validade, que é fruto de amiguismo e pouco mais. Mas deve o romancista ser penalizado só porque é também um jornalista que, por acaso, trabalha ali? Existe em Portugal um semanário que, aparentemente, resolve o problema assumindo abertamente que está a falar de quem lá trabalha e, nos balanços anuais dedicados aos livros, isola as obras dos seus jornalistas numa página própria sob o título muito tosco de «Prata da Casa». Não creio, porém, que os visados gostem de se ver ali: em primeiro lugar, porque não são raça à parte e merecem estar ao lado dos outros escritores (quando merecem); em segundo lugar, porque o tratamento que assim lhes é dado difere muito do destaque que esse mesmo jornal já concedeu a um romance escrito por um anterior diretor: nada mais, nada menos do que seis páginas na revista a cores do fim-de-semana! (Pois é, nem tanto ao mar nem tanto à terra.) Também há quem tente tornear a dificuldade contratando o serviço da crítica a um colaborador externo para evitar, uma vez mais, a acusação de parcialidade. É, se calhar, o mais honesto e é, sem dúvida, uma forma de permanecer intocável. Mas não gostaria o agora romancista de ver o seu livro recenseado justamente por todos os críticos que conhece e admira há uma eternidade? E estará certo privá-lo dessa opinião que ele considera só porque é um funcionário daquela publicação? Muita gente defende que tudo seria mais fácil se o jornalista assinasse com pseudónimo a sua obra literária. Alguns, de resto, fazem-no para separarem as águas, embora, comercialmente, a opção possa inibir a compra dos livros por leitores que já apreciavam a escrita do jornalista e, não sabendo nada deste novo autor, acabam por deixar ficar os seus livros na livraria. O pseudónimo, não digo que não, talvez ajudasse, pelo menos, a libertar os confrades do autor que, assim, estariam a escrever apenas sobre o romancista recém-estreado, e não sobre o amigo ou o concorrente. Mas, se de repente alguém divulgasse a verdadeira identidade do escritor, não iriam multiplicar-se as acusações de compadrio e gato escondido com o rabo de fora? Embora sejam demasiados os livros que se publicam, e o cartoon que referi no início tenha todo o cabimento, há hoje jornalistas que são, de facto, excelentes escritores (nem sempre os que mais vendem). Sofrem talvez menos do que esse primeiro que publiquei há uns quinze anos, porque as coisas mudaram muito e se vê de tudo nos nossos jornais, de mais e de menos; mas ainda sofrem — estou certa — pela sua dupla condição. Espero que nunca se deixem abater. |
Galopim de Carvalho Geólogo. Antigo diretor do Museu Nacional de História Natural e Ciência da Universidade de Lisboa ![]() |
VERDADES INCÓMODAS À MARGEM DA MORTE DE MANDELA "MUDAM-SE OS TEMPOS, MUDAM-SE AS VONTADES"
Morreu, aos 95 anos, Madiba, assim lhe chamavam, carinhosa e afectivamente, os que o admiraram, respeitaram e amaram. Estamos de luto, de verdade, todos os que puderam conhecer a vida e a obra desta figura ímpar, bondosa, tolerante, sorridente e bonita, moral e fisicamente.
No dia 11 de Junho de 2008, o deputado António Filipe, do PCP, numa intervenção no Parlamento, por altura da comemoração do 90º aniversário de Mandela, disse para os que não sabiam e lembrou aos interessados em fazer esquecer que, em 1987, há pouco mais de um quarto de século, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou, com 129 votos, um apelo para a libertação incondicional de Nelson Mandela, e que os três países que votaram contra foram os Estados Unidos da América, de Ronald Reagan, a Grã-Bretanha, de Margaret Thatcher, e Portugal, de Cavaco Silva, na altura Primeiro-Ministro. No site da Presidência da República, datada de 5 de Dezembro de 2013, pode ler-se a mensagem de condolências enviada pelo Senhor Professor Cavaco Silva ao seu homólogo Jacob Zuma pela morte de Nelson Mandela, que aponta como "figura maior da África do Sul e da História mundial". Nesta mensagem, o Professor afirma que "Nelson Mandela deixa um extraordinário legado de universalidade que perdurará por gerações". Realça: "O seu exemplo de coragem política, a sua estatura moral e a confiança que depositava na capacidade de reconciliação constituem verdadeiras lições de humanidade". Acrescenta, lembrando que "A dedicação de Nelson Mandela aos valores da democracia, da liberdade e da igualdade invadiu os corações de todos quantos o admiram, na África do Sul ou em outro lugar, incutindo esperança, mesmo diante dos desafios mais difíceis". O Professor afirma, ainda, que "A atribuição do Prémio Nobel da Paz a Nelson Mandela e a sua eleição massiva para a mais elevada Magistratura da África do Sul simbolizaram o merecido reconhecimento de um político de causas e uma vitória para os Direitos Humanos no mundo". Nesta dualidade de posições, flagrantemente antagónicas, duas conclusões se poderão tirar: ou o nosso Presidente mudou radicalmente de opinião ou as palavras que agora subscreve são pura hipocrisia. |
Victor Oliveira Mateus Escritor ![]() |
HELENA EM TROIA, OS ÚLTIMOS MOMENTOS Lembro as noites de sufoco com os pássaros encalhados no topo das torres, com a luz a torcer-se nos meus olhos e o calor, já prenúncio de desastre, descendo em ameaça a rigidez do Parnón para ali se misturar com a passividade das ovelhas, com o desalinho ofensivo das cabras, com o relincho selvagem dos cavalos a saciarem-se, alheios a tudo, nas águas frescas do Eurotas. Lembro a minha perda ainda mal desenhada na erva tenra das margens, enquanto os deuses, em conluios de quem tudo pode, me preparavam armadilhas fortes e sem possível escapatória. Lembro as lautas refeições noite adentro onde o riso dos homens se enredava na vileza partilhada e a gordura lhes escorria pelas barbas, enquanto o cheiro da urina se misturava com o do porco bravo a voltear sobre um fogo intermitente. Lembro os movimentos voluptuosos das dançarinas, mulheres encenando o que não sentiam, para o simultaneamente boçal e frouxo apetite dos homens. Lembro as guturais entoações dos poetas, espécie sempre indecisa entre a inveja e a concupiscência da alma, arvorando entoações de ouro nos míseros recipientes onde recebiam as esmolas. Lembro também os músicos, tão desacompanhados de tudo, os guerreiros — impotentes como todos os guerreiros —, os estrategas, os generais, os nobres… E lembro sobretudo a presença de Hermíone, com os seus nove verões recém concluídos, a acenar-me por entre a rudeza dos convivas e do abandono a que, em breve, a votaria — eu, qual funesta mãe a quem o ventre deveria ter sido mirrado à nascença, para jamais trocar filha por salvação própria em braços de homem raro, homem que me perdoaria um passado só de corpo, de fealdade da mente, de prazeres grosseiros, como grosseiro fora tudo antes dele. Lembro esse mesmo homem a atravessar a cidadela, a entrar no pavilhão entre a falsa ousadia varonil e o engaste de um desnorte verdadeiro a esconder-se por detrás de tudo o que em Heitor era missão e primazia. Vi-o e soube de imediato a que perda estava destinada, a que fim me conduziriam todos os caminhos que se emaranhavam agora do meu promíscuo passado a esse barco que no porto me sabia esperar. E, quando ele finalmente reparou em mim, percebemos ambos que nenhuma saída era já possível; que Apolo, senhor do sol e de todas as luzes, de nós se apropriara como exemplar fulgor do eterno. Páris Alexandre, sussurravam as criadas o seu nome, gritavam-no os homens entre si, ressoavam-no os antigos oráculos, que de mim tanto escondera por temor e cobardia. Nove dias após o primeiro olhar! Nove dias onde as noites floresciam com tanta coisa sufocada e aguardando a mão certeira. Noites a medirem-se por um fascínio em desalinho: faixas decoradas, colares de contas de âmbar, braceletes de folha de ouro, tecidos rasgados, suor, saliva, pingos de sémen e a nossa perda também, mas essa não nos interessava, porque cheirava a ganho e a instantes eternizados, coisa que só a poucos é concedida. Não, não me julguem pelos relatos futuros, por essas inverosímeis epopeias ou pelos preconceitos dos que não ousam! Tróia teria sido igualmente destruída: as terras de Dardano eram apetecíveis, mas pela geografia e pelos celeiros de trigo. Eu fui apenas o pretexto! Os políticos, casta de facínoras com máscara de sorrisos, há muito tinham decidido a nossa perda; na sua ganância não cabe a honra nem estórias como a minha e nos seus melífluos argumentos apenas a abastança se descobre pelo fedor insuportável dos seus ventres sórdidos.Fugi, pois, dos poetas, dos políticos e das estelas à beira dos caminhos! Só a justeza da paixão, a sua lealdade, é verdadeira, só ela poderá um dia dar sentido à pequena e miserável História dos homens. |
Mário Bernardo Médico. Estudante de Belas-Artes ![]() |
"TROIKA" POR GENTE FORMADA
Cheguei a Lisboa, vindo de uma guerra que não era minha, num dia quente de Julho de 1969 e, na noite a seguir, chegaram à terra os astronautas regressados da primeira viagem à lua e eu, que vinha de muito mais perto, demorei mais tempo a chegar porque o velho petroleiro que me transportou se avariou durante uma tempestade a dobrar o cabo das tormentas (porque será que as nossas vidas estão tão cheias de cabos das nossas tormentas?) e daí até Lisboa demorei mais tempo do que o próprio Vasco da Gama quando lá passou e depois, quando já estava no cais, vi que o meu filho tinha crescido muito durante a minha ausência e logo, quase em seguida, voltei para a faculdade, para ser assistente de anatomia, e foi então que conheci o José Guilherme Jordão, que ia ser meu monitor, e o Mário Botas, que ia ser meu aluno nesse meu primeiro ano lectivo, e foi um bom ano porque eu, sendo assistente, assistia, o José Guilherme Jordão, sendo monitor, monitorizava e o Mário Botas, como era aluno, alunava, ou seja, sempre com uma voz calma e um sorriso tranquilo, e tranquilizador, passava as aulas a desenhar, num diálogo com uma figura que ele já via no papel mesmo antes que nós a descortinássemos e, no fim, ficávamos todos encantados com a sua magia diante da imagem final e, por outro lado, o José Guilherme Jordão logo nos evidenciou como a sua vida iria ser um sucesso ao estar apoiado numa inteligência invulgar, numa notável capacidade de trabalho, num trato afável e numa delicadeza notória que a todos encantava e eu logo saltava na garupa do cavalinho do tempo, tendo nas mãos a rédea da imaginação e pensava estar feliz e contente com a convivência com ambos e até sonhava que um dia, já velho, eles seriam nos seus caminhos pessoas realizadas e profissionais ilustres e me iriam visitar para falar desses tempos dos desenhos, de trabalhos e de projectos e logo depois, sonhos desfeitos ao nascer, tudo se começou a desmoronar quando um e outro, em datas diferentes, viram as vidas em risco com ameaças parecidas e, primeiro a partir foi o Mário Botas, menino ainda, com trinta anos que viveu e com outros trinta já passados desde então, mas tendo vivenciado um processo criativo intenso antes de nos deixar e eu e o José Guilherme Jordão vimos a nossa "troika" por gente formada, evidentemente, a ficar reduzida quase no começo do nosso caminho e ele deu então início a uma missão especial, com anos de trabalho intenso, com outras pessoas como ele, a ajudar a construir o notável mundo dos cuidados primários de saúde que nós temos e de cuja existência eu fui, e sou, testemunha privilegiada e um dia, já lá vão dez anos, nunca entendi porquê, ele partiu, deixando saudades a todos os que o conheceram e desde então eu fiquei só, nessa "troika" por gente formada, com a tarefa de transmitir a grandeza desses compagons de route tão precocemente afastados e, ainda, e para lhes dizer aos dois, quando eu lá chegar, que o mundo que deixaram mudou muito e que a universidade que eles conheceram se desdobrou e multiplicou em outras e outras mais outras como as da terceira idade e ainda noutras, com tons rosa e laranja, que só existem durante alguns dias de agosto e por isso lhes chamam as universidades de verão mas que devem ser excelentes porque, sem aulas e sem saberes, sem experiências e sem cultura, formam os jovens que se distinguem nos governos e nas oposições e ainda outras coisas que tenho vindo a apontar para lhes contar, quando estivermos juntos, como a de dizer ao José Guilherme Jordão que tem agora um sobrinho com o seu nome (a quem chamamos Zé Gui) e que dá muitos ares ao tio e vou dizer ao Mário Botas que, também em sua homenagem, sou agora aluno de belas-artes e que quando quero “escandalizar” os meus professores lhes digo que o Mário foi meu aluno (na anatomia, claro, mas isso só digo no fim) e termino lamentando que o mundo, as suas famílias e os seus amigos não tenham desfrutado mais com as suas inteligências, as suas artes, os seus convivios e os seus amores e como o tempo já vai longo digo aos dois em meu nome, e no dos que me estão a ler, um consciente ATÉ JÁ
Texto publicado em parceria com a Revista Postgraduate Medicine |
Pedro Almeida Vieira Escritor e jornalista ![]() |
REQUIEM PELOS EGÍPCIOS Eis-me aqui, «o anjo de Deus, que caminhava à frente do acampamento de Israel». Agora já não. Alei-me. Quer dizer: subi pelos ares, suspendendo-me, deixando Moisés e seu povo antecederem-me no espaço. O tempo quedando-se entre nós, em contínuo. Nuvens escuras sobre mim. Sobre eles, à frente, meu companheiro ergue luzeiros. O Mar de Juncos se abriu. Forte euro pela noite passada lhe apartou as águas. Os filhos de Israel lhe entraram por terra seca. Dois muros aquosos os envolvem, do lado esquerdo, e do lado direito. Truque divino. Moisés e sua vara, erguida ao alto, estendendo a mão sobre o mar, o dividiu. Encenação para comover patrícios, tementes dos egípcios que os precedem. Sou figurante nesta fingida fuga para a «terra que mana leite e mel». Chegar, chegarão, os hebreus. Deus assim quer, como quis que por quatrocentos e trinta anos subjugados ficassem na mão dos egípcios. Espinhosos e ínvios se esculpem os caminhos do Senhor. O meu se descerraria mais suave e dilúcido: a estrada dos filisteus, mais curta travessia para alcançar a propalada terra prometida. Sairíamos de Sile, atravessaríamos a península do Sinai, sempre junto ao mar, entrando depois em Chefela. Depois, Jafa. Trilhávamos então até Meguido, evitando os pântanos de Charon. Depois ainda… Não, interrompeu Deus, por aí não, para «que o povo não se arrependa perante uma batalha e volte para o Egipto». Batalha?! Pelo meu trajecto apenas se interceptariam alguns postos egípcios. Por certo o faraó os teria prevenido, por mensageiros, da libertação dos hebreus. Não causariam tribulação. Por medo. Os hebreus deixaram o horizonte do Egipto envolto num véu de temor e terror! A Deus. E de morte! Por Deus. «Levantai-vos e sai do meio do meu povo, vós e também os filhos de Israel, e ide servir o Senhor, como tendes falado. Tomai também as vossas ovelhas e os vossos bois, como tendes falado, ide e abençoai-me também a mim», assim dissera o faraó a Moisés e Aarão, ainda na noite da chacina dos primogénitos. Saíram. E arrastaram, como penhor, «objectos de prata, objectos de ouro e mantos». Os hebreus «assim despojaram os egípcios». Agora, vislumbrando por entre as trevas o exército do faraó, ali atrás, sei que Deus brandirá o seu derradeiro acto de perversidade. Dupla perversidade. Atraiu-os para uma cilada. Em vez de seguir os meus conselhos, escolheu para os hebreus a estrada de Chur; depois os mandou retroceder e acampar junto de Pi-Hairot, diante de Baal-Safon, nas margens do Mar dos Juncos. Engodo para o faraó. O plano divino, ei-lo, como o ouvi das Suas palavras a Moisés: «O faraó dirá dos filhos de Israel: ‘Andam perdidos na terra. Fechou-se contra eles o deserto’. Eu endurecerei o coração do faraó, e ele persegui-los-á». Triste faraó, títere de Deus, triste povo do Egipto, bonifrates do faraó. Se meu caminho o escolhido; se Deus não endurecesse o coração do faraó, os hebreus continuariam viagem, e os egípcios continuariam no Egipto. Mas não. Deus endureceu o coração do faraó. E assim, «o faraó atrelou o seu carro de guerra e tomou o seu povo consigo. Tomou seiscentos carros de guerra escolhidos e todos os carros de guerra do Egipto com três combatentes em cada um». Cheiro o mal sem narinas. Minha alma treme em sofrimento. E por quê? Porque o mal não está no faraó. Estará em Deus? Mal-aventurada, a sua sede de glória! «Eu serei glorificado por meio do faraó e de todo o seu exército e os egípcios saberão que Eu sou o Senhor», assim anunciou a Moisés. E para quê? Isto O move. E a mim petrifica. Nesta manhã, o acampamento dos egípcios ficou em garbulha. Dedo de Deus. Não se satisfez. Desviou-lhes ainda as rodas dos carros e eles, agora ali, trepidam mar adentro, terra que se move por debaixo, mas que se perderá, como moscas estrebuchando na teia. Desejarão retroceder, mas não conseguirão. Estão numa ratoeira. Pressagio a alegria dos hebreus, pela penumbra da tarde. Maria, a profetisa, irmã de Aarão, tomará nas mãos uma pandeireta, e todas as mulheres de Israel a seguirão, dançando. Ecoarão cânticos de vitória pelos ares. E, lá em baixo, no Mar dos Juncos, cadáveres de egípcios e de cavalos, boiando. E ferros retorcidos, no seu fundo. |
Clara Pinto Correia Professora universitária, bióloga e escritora ![]() |
MÃEZINHA QUERIDA, BOA VIAGEM Está tão bonita, ela, agora muito tranquila e quase sempre a dormir... e, nas pouquíssimas vezes em que abre os olhos, faz uns sorrisos tão bonitos, mas tão bonitos, tão calmos... Quando entrou nos cuidados intensivos do hospital Egas Moniz teve mesmo de fazer uma cirurgia grande e ficou a dieta zero imenso tempo, e nesse período era evidente que estava a sofrer. Chamava, em desespero, pela minha avó, que morreu quando eu tinha dez anos. Implorava-nos que a tirássemos dali. Gritava que queria morrer. Uma vez chegou a sussurrar-me "que vergonha, morrer assim". E aqueles imbecis quase nunca lhe davam morfina! Agora perdeu de vez a consciência, mas está tão tranquila que é bom vê-la partir de mansinho. Querida, querida Mãe. Os sorrisos de total plenitude e felicidade quando chegava a casa do trabalho e nos encontrava sentadinhas a brincar no chão do quarto, a minha primeira memória de infância. E todo o brio que investiu nas questões da Saúde Escolar enquanto educava quatro filhas, era a esposa do Prof. e supervisionava a casa. Hei-de homenageá-la como ela merece, mas ainda não tive a concentração que nisso exige. É bom saber que não estou sozinha nesta despedida. Bem hajam. |
Daniel Serrão Professor Convidado do Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa ![]() |
LER, SENTIR, PENSAR A POESIA DE RUI NUNES A DIFÍCIL ARTE DA ESCRITA 1. Acabei de ler Barro, de Rui Nunes Texto complexo, estranho — mas misteriosamente sedutor. Por que é que o entendo se o não entendo? Copio: "Escrita Falta sempre uma palavra a qualquer livro. Por isso, escrevo. Falta sempre uma palavra ao que escrevo. Por isso continuo a escrever. Uma palavra como uma maldição. Na morte há-de faltar-me uma palavra. Qual?" Leio, repito a leitura, sinto; e depois penso. Subtil, insinua-se um sentido neste texto, para mim. Afinal, quererá ele dizer-me, tudo é incompleto e só a morte me aparecerá completa, sem nada que falte. Ele diz "Não há um capítulo para a morte. Está por todo o lado. É. A orografia de um texto. A sua intensidade relevante. Revelante? Uma espécie de companhia. Vejo morrer desde que vejo." E diz bem, para mim. A morte não existe. Existo eu e ele que morreremos. Um dia. Recordo Daniel Faria escrevendo sobre o Irmão Charles de Foucauld, Eremita, assassinado por engano pelos Tuaregues no norte de África, islâmico e desértico: «… pensa que morrerás / No chão / À tua porta / E nunca mais acabarás / De regressar". A imortalidade dos que morrem, no chão. Dos que sempre regressam. É deles, a imortalidade, ou somos nós que a criamos; para eles? Rui Nunes escreve, sempre e ainda, de forma complexa e sedutora "Deus é sarça, relâmpago, cordeiro, pão, fogo: alguém que se esconde em todas as coisas. E nelas dispersa a face. O espião, O anónimo. Que não sabe morrer." Recusa, aqui, a banalidade do Deus das religiões formais. E afirma "Nasci sem Deus. Por isso escrevo. E, quanto mais escrevo mais alargo o deserto desta falta." 2. Hoje é Domingo. Tento ir às hortas na pessoa dos outros. (Pessoa). Fui a Rui Nunes e colhi gerânios. Verifico, agora, olhando-os, que não são comestíveis. São "erva almiscareira" diz o Dicionário. Que sempre tem as palavras certas para toda a coisa que outra palavra nomeia. A escrita é uma arte difícil. Quem escreve o que é que escreve? Como suspende o fluxo constante do viver autoconsciente e faz, desta suspensão, palavras? Não sei e acho que ninguém sabe. Mas a escrita acontece, as palavras são escolhidas entre os milhares delas que uma certa e pessoal memória conserva; e articuladas umas com as outras para gerarem um sentido. Quem escreve, escreve-se. Toda a escrita é poiética, é criação, é poiesis. Mas a carne desta criação é anterior à escrita, está no secreto arquivo de quem escreve. A criação é da forma, não é da substância. Criar a forma é um desassossego. Os Poetas sabem bem que é assim e fazem, do desassossego, poesia. "Eu faço versos como quem chora De desalento… de desencanto…" (Manuel Bandeira) Rui Nunes faz com o seu desassossego esta escrita poiética, estranhamente sedutora. Nele as palavras são significantes, são signos que apontam para uma interioridade muito rica e complexa. Escreve-se, escrevendo. É difícil lê-lo. É difícil senti-lo. Mas é uma alegria, bem alegre, adivinhá-lo. |
Rui Beja Mestre em Estudos Editoriais pela Universidade de Aveiro Antigo presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros e do Círculo dos Leitores ![]() |
NO CENTENÁRIO DE UM VULTO DO JORNALISMO PORTUGUÊS LEMBRAR RAUL REGO Saber do empenhamento que o Casal das Letras coloca na celebração do centenário de Raul Rego, e passar os olhos pelos documentos que estão neste sítio à disposição dos amigos e seguidores, constitui-se-me como bálsamo redentor para o atormentado estado de alma que teima em permanecer-me instalado, e cada vez mais acentuado, por via da incompetência, arrogância, chantagem, e violação dos mais elementares direitos e liberdades, legais e sociais, que nos estão a ser coarctados pelos poderes instalados no "nosso Portugal" e na "nossa Europa". Lembrar Raul Rego é lembrar a luta sem quartel que travou pela liberdade que ajudou a ganharmos em 25 de Abril. Lembrar Raul Rego é lembrar os tempos em que, menino e moço, sentia o cheiro do República quando o jornal entrava em minha casa ao final da tarde e gerava longas trocas de opiniões entre os meus antepassados. Prestar homenagem à memória de Raul Rego é cumprir um acto de gratidão para com um lutador incansável, dar um grito de revolta perante as inevitabilidades que nos querem impor, e lançar um desafio de esperança para que as novas gerações sigam o exemplo de quem nunca se acomodou ao autoritarismo e à ofensa da dignidade humana. Comemorar o centenário de Raul Rego, recuperando os seus textos e a sua obra, traz-me à memória o homem activo e perspicaz que, já septuagenário, deambulava por corredores e gabinetes do Círculo de Leitores acompanhando com proximidade os preparativos para publicação em 1986 da portentosa História da República, em cinco volumes, prefaciada pelo então Presidente da República, Mário Soares. Desse notável prefácio reproduzo este significativo trecho: ...«Bibliógrafo e curioso dos enigmas da nossa História, coleccionador de velhos papéis e folhetos que mais ninguém possui, polígrafo, historiador da Inquisição — sobre a qual deve ter uma das mais ricas bibliotecas privadas —, latinista e erudito, Raul Rego foi acumulando, ao longo dos anos da sua brilhante carreira de jornalista, esmaltada por actos de uma incomparável coragem cívica, uma experiência única sobre a História da República, conhecendo pessoalmente muitos dos seus principais intervenientes e colhendo informações directas, depoimentos em primeira mão, de amigos próximos das personalidades com as quais não chegou a relacionar-se pessoalmente. Poucos terão, como ele, tanta documentação, reunida pacientemente ao longo dos anos, de alfarrabista em alfarrabista, depoimento após depoimento, sobre o conturbado período da Primeira República. Não será assim de estranhar que a sua História lance nova luz e ofereça interpretações originais para um período da nossa História que o fogo cruzado das paixões não tem permitido, até agora, encarar com total serenidade e desprendimento.»…
Nesta fase crítica da nossa história recente, esmagados por forças ocultas que caminham no sentido do regresso ao empobrecimento colectivo, ao obscurantismo cultural e ao autoritarismo repressivo, antes impostos numa época que só não é para esquecer para que não se volte a repetir, lembrar Raul Rego é celebrar o culto do inconformismo, defender os direitos de cidadania, e cumprir o dever de lutar pelos mais nobres valores da ética política e equidade social. Fazê-lo com entusiasmo, empenhamento e a dignidade que Raul Rego acentuava como valor primeiro da condição humana, constitui homenagem viva e vibrante que, no seu centenário, cumpre prestar à memória de um homem livre. |
Guilherme d’Oliveira Martins Presidente do Centro Nacional de Cultura ![]() |
NO SEGUNDO ANIVERSÁRIO DE "CASAL DAS LETRAS" UM LUGAR DE HOSPITALIDADE CULTURAL Só a cultura e o sentido de justiça e verdade poderão libertar-nos da mediocridade, da irrelevância e da periferia. "Casal das Letras" é um lugar de hospitalidade cultural. Bem precisamos, neste tempo, de pontos de encontro, onde a cultura como criação floresça. Falando-se tanto de crises e de múltiplas depressões é este o momento de afirmar, com muita clareza, alguns princípios muito simples, mas bem difíceis de concretizar. Deixo-vos cinco, para que possam servir de base para a ação e o exemplo: 1. Como diria o nosso Herculano, precisamos, em primeiro lugar, de vontade, e esta não se inventa nem improvisa — pratica-se. 2. Um país antigo, como Portugal, não deve ver a História como lugar de refúgio, mas como impulso de responsabilidade. 3. O bem comum desenvolve-se com o cuidado dos outros, com a recusa da indiferença e com o apego prioritário à justiça. 4. Os recursos disponíveis devem ser prioritariamente orientados para a educação, a ciência e a cultura. 5. Só a cultura e o sentido de justiça e verdade poderão libertar-nos da mediocridade, da irrelevância e da periferia. A experiência é madre de todas as cousas e daí temos de partir com determinação! Parabéns e longa vida. |
Edite Esteves Jornalista e editora da revista "Autores" da Sociedade Portuguesa de Autores ![]() |
SE METADE DE MIM FOR ÁGUA ![]() |
Manuel Monteiro Vencedor do prémio Novos Talentos FNAC Literatura 2012 ![]() |
OS DEZ MANDAMENTOS DO ESCRITOR All good writing is swimming under water and holding your breath. F. Scott Fitzgerald ![]() Se escrever não é a coisa mais importante para ti, então nunca serás escritor. Se escrever não é uma necessidade absolutamente vital para ti, se a escrita não é a tua amante dilecta, larga depressa a ideia de te dedicares a este ofício sombrio e doentio. Se entendes que escrever é fácil, se não estás preparado para uma longa estrada de rejeições, crítica, desânimo, escárnio, incompreensão, de luta sangrenta e contínua com o papel, com o tormento que é as palavras nunca serem suficientes para expressar algo anterior a elas; lembra-te de que há um bom quinhão de clássicos que repousam durante séculos sem ganhar uma ruga e de que, portanto, não é premente que escrevas. ![]() Se não habitam monstros dentro de ti, se não há algo que te tumultua, se não estás disposto a arrancar as vísceras e a espalhá-las pelo papel; não se vislumbra como serás escritor. Não há nada mais vácuo, insípido e fútil do que a escrita insincera e desvivenciada. ![]() Se entendes que para escrever não necessitas de mil revisões posteriores, de uma miríade de páginas deitadas fora para apenas preservar um parágrafo, de recuos, de rasuras, de permanentes modificações; se pensas assim, ainda dás os primeiros passos titubeantes. O doloroso e árduo processo da escrita leva tempo. Muito tempo. Tens de deixar a página dormir um sono profundo antes de voltar a ela. O problema não é a escrita inicial, torrencial, de um jacto só — o problema é a sempiterna revisão/reescrita do que se fez. A demanda da perfeição. Lembra-te da personagem de Camus que, querendo escrever o livro perfeito, não saía do mesmo parágrafo. ![]() Se consideras que existem universos que o escritor deve desprezar na sua absorção do mundo e da vida, desconheces o essencial. O escritor deve procurar uma força centrípeta no centro do papel — uma força colossal que sugue tudo, todas as vidas, todas as ruas, todas as casas, todas as pessoas, todos os acontecimentos, todas as ideias, todos os sentimentos, para o centro da folha. Até que o livro seja o espelho de cada rosto que se aproxima. Bukowski ia assistir a corridas de cavalos e a combates de pugilismo e dizia que o seu olhar sobre estas realidades influenciava o seu estilo literário. O que realmente interessa não é o que se vê, mas a forma como se vê. Não há «realidades» maiores ou menores para abordar na escrita — tudo é símbolo. ![]() Se escreves para mostrar o quão erudito e inteligente és — esquece. Se não consegues sacrificar uma frase coruscante, um pensamento que te sobreexcitou, em favor da coesão do livro, então ainda não estás preparado. Se de alguma forma escreves a pensar no leitor, isso será fatal para a tua escrita. ![]() Se acreditas que o que está escrito (o texto) é mais importante do que o que não está escrito (o subtexto), dedica-te a escrever folhetos de medicamentos em vez de literatura. Cultiva a omissão, o não-dito, o não-explícito. Lê um livro sobre amor que nunca utilize a palavra «amor». Lê Kafka. Dizem que escreveu sobre Deus, o Estado, a Burocracia, a Culpa, a Vergonha, o Absurdo — e nunca encontrarás estas palavras na sua obra. ![]() Se precisas de escarrapachar adjectivos para definir ambientes, personagens, paisagens, sentimentos, a tua escrita será sempre rasa e nunca passará rente ao coração da natureza humana. «Maria era cem por cento determinada, cem por cento honesta, cem por cento feminina.» Este é o tipo de descrição preguiçosa de quem desconhece o que é a emanação subtil da caracterização da personagem pela acção. O que é uma personagem bem conseguida? Esquece a teoria da literatura. Uma personagem bem conseguida é aquela que é tão forte, tão real, tão vívida, que conheces pelo menos tão bem quanto o teu melhor amigo. ![]() Se a tua voz não emerge concreta e distinta, se tudo mais não é do que uma bola amassada de vozes, continua a encostar o ouvido ao búzio do texto, dia após dia, noite após noite, até que o murmúrio ganhe o contorno de voz. É a luta mais difícil. ![]() Se desprezas a prosa, ignoras que a forma é conteúdo. Se assim não fosse, todos seríamos — ou poderíamos ser — escritores. Todos temos histórias para contar, afirmou Céline. Todos vivemos, ouvimos, vimos histórias tenebrosas, miríficas, inacreditáveis, únicas. Forma e conteúdo têm de aparecer tão inextricavelmente ligados como um só corpo. ![]() Se não seguras na mão cada palavra, medindo-a, pesando-a, mirando-a de todos os ângulos, conhecendo-lhe todas as texturas, trincando-a, brincando com ela na boca antes de a atirares para o papel, inundarás o texto de clichés — de caminhos sinuosos, de odores inebriantes, de olhos rasgados, de lábios carnudos, de corpos esculturais, de almas atormentadas. O problema de cuspir este tipo de expressões é que elas estão gastas — perderam o poder evocativo. Quem consegue ainda recriar mentalmente a cor dourada quando lê «época áurea»? Ou de ver claramente visto o ouro sobre o azul? Ou de desenhar o fogo do «desejo ardente»? Ou de imaginar caudais tombando do céu quando lê «chovia torrencialmente»? O escritor é aquele que faz chover na página quando escreve «chuva». |
Mário de Carvalho Escritor ![]() |
OBRAS LUMINOSAS Desta vez não escolho a ficção. Deixem-me chamar a atenção para quatro obras, luminosas, que reúnem textos que se interrogam sobre a Arte e o Mundo, o Mundo na Arte e nós em ambos. ![]() UMBERTO ECO • "Seis Passeios nos Bosques da Ficção" (na tradução de Vanda Ramos). Um elegante e inteligente leitor acompanha-nos nos labirintos de várias obras, sem arrogância nem preconceitos, deambulando e flanando, detendo-se uma vez por outra, apontando, esclarecendo, ironizando, deixando dúvidas. Pena que não seja sucessivamente reeditado. ![]() MICHEL DE MONTAIGNE • "Ensaios" Tantas vezes mencionados, poucas vezes lidos. Montaigne reapresenta-nos o mundo clássico, através da descoberta do nosso próprio mundo, apreendido pelos homens do renascimento com espanto e curiosidade. «Que sais-je?», «que sei eu?», sábia consigna que nos reconduz à nossa essencial ignorância. Quem pensa que sabe, perde-se, ou faz más figuras. Tenho uma excelente tradução para Português do Brasil de Sérgio Millet (São Paulo, 1961). ![]() ITALO CALVINO • "Seis Propostas para o Próximo Milénio" Pequenas conferências a proferir em Harvard, em torno dos conceitos de leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência. Grande exibição de agudeza de espírito, natural erudição e capacidade combinatória. Excelente tradução de José Colaço Barreiros. ![]() MÁRIO DIONÍSIO • "A Paleta e o Mundo" Agora que podemos aceder facilmente à imagem, através da Internet e fazer uma leitura ainda mais enriquecida deste rigoroso e deslumbrante texto de Mário Dionísio. É altura de relê-lo devagar, parando em cada obra de arte e confrontando o seu arguto olhar com o nosso. |
Faria Artur Jornalista e escritor ![]() |
![]() NARRATIVA NATALÍCIA EXTRAÍDA DO LIVRO "PERDIDOS NUM VERÃO QUENTE" PRENDAS PARA TODOS O primeiro Natal pós-revolução aproximava-se a passos largos. A situação económica do país deteriorava-se. Os militares prometiam «amanhãs melhores», enquanto os partidos se organizavam e definiam estratégias a pensar nas eleições para a Constituinte. Os investimentos não surgiam, pois quem tinha capital chamava-lhe seu, preferindo colocá-lo em poiso seguro. O amigo Manecas refugiara-se no Brasil e, de vez em quando, telefonava inquirindo do andamento do negócio. A resposta que recebia do novo gestor era sempre a mesma: «Estou farto disto, se ninguém te fez mal por que é que te piraste? Arranjaste um problema sem necessidade!» Porém, fazia o que sabia e podia, antevendo tempos ainda mais conturbados. Mário conhecera o Manecas – agora quase quarentão – em adolescente, quando fora trabalhar durante umas férias para a loja dele, aliás primeiramente propriedade do pai, um latifundiário alentejano que, contrariamente ao habitual, em vez de gastar o dinheiro no Estoril investia no futuro dos filhos. O Manecas herdara o estabelecimento após o regresso da Guerra Colonial, por onde passara como oficial miliciano. Nos anos do marcelismo Mário fizera do local segunda casa e tornara-se pessoa bem-vinda. Um dos empregados fornecia-lhe livros proibidos e tornara-o leitor e contribuinte do Avante (jornal oficial do Partido Comunista), o qual recebia regularmente fechado num envelope, que era devolvido pela mesma via com uma nota de vinte escudos no interior. Contudo, o amigo, muito próximo das personalidades do regime, fingia ignorar a situação, mas pelas indirectas que lhe lançou, duas ou três vezes, revelou saber muito bem o que se passava. Nunca quis apurar devidamente os factos que levaram o Manecas a dar o salto para Espanha e, posteriormente, para o Brasil. Na altura em que lhe pedira para assumir provisoriamente o negócio – a 'bater no fundo' – confidenciara-lhe meia dúzia de larachas sobre o caminho da revolução e da qualidade dos seus protagonistas; dissertara sobre o horror à nacionalização da propriedade e assumira a sua máxima revolucionária: «Trabalhadores são trabalhadores e patrões são patrões. Cada um é para o que nasce.» Por sua vez, a Céu, irmã da companheira do Manecas – cujo paradeiro afirmava desconhecer – com quem flanara, considerava-o um «reaccionário de marca. O gajo é muito querido, mas é um facho without end.» O estabelecimento, na verdade, atravessava momentos difíceis. A facturação não parava de baixar, mas chegado o Natal o dinheiro apareceu, os burgueses do bairro eram numerosos e dados à cultura e aos artigos de charme. Livros, discos, perfumes, canetas e isqueiros de marca ajudaram a esquecer a crise. Como diria o Eça, foi de «chupeta». Ordenado e gratificações caíram dos céus no colo dos trabalhadores. Emocionalmente aquele Natal, apesar de não desejar revelá-lo, surgia como um regresso às origens. Os dois anteriores passara-os afastado da família e, pior, longe da filha, ainda que ela lhe atenuasse a dor com desenhos que metia nas cartas enviadas pela mãe. Da primeira vez chegaram-lhe homens estranhamente vestidos – provavelmente fardados – no meio da mata (?) e rodeados de estranhos animais; no ano seguinte, homens ajoujados com malas junto a aviões. Pelo menos, enquanto não extraviasse esses traços coloridos da Ana Isabel, não esqueceria as festividades gastas junto dos soldados, nomeadamente as lágrimas, as confissões e os desejos de quem unicamente aspirava a viver. Contudo, tais ausências não foram totalmente negativas, pois livrara-se de «guerras» relacionadas com as opções a assumir no concernente à ceia e refeições da quadra. Quanto a gastos natalícios proclamara, alto e bom som, após ter convencido a miúda, que as prendas seriam reduzidas a lembranças. A opção passava por compras em lojas de revenda. Tais andanças ocuparam pai e filha uma tarde, chegando, assim, exaustos, por carregados com sacos plásticos e embrulhos em papel pardo atados com corda, ao apartamento de Benfica. O programa ficara previamente acordado com a mãe da criança: noite livre para jantar e embrulhar prendas em papel da época e com fitas a condizer. Depois, histórias. Jantaram no restaurante existente no rés-do-chão do prédio, o do sr. Carlos. Empanturraram-se em bifes de vitela, muito tenros, como era apanágio da casa, batatas fritas, ovos estrelados, fiambre, tudo regado com demasiados sumos e não menos cervejas. Mário sentia-se pronto para subir e arrancar com as histórias. Aliás reais. Recuou aos tempos de menino e moço na província. Recordou o pai, quando pelo Natal, vindo de Lisboa, descia da camioneta de carreira, carregado de prendas, na paragem junto à casa da avó, onde ele o esperava agarrado à saia da mãe, muito agasalhado, de boné, mas de calções. Dizia o sr. Sousa que 'pelas pernas ninguém se constipa', daí exigir que o miúdo, fosse Verão ou Inverno, andasse sempre de calções. Depois eram horas a sofrer, esperando pela manhã de Natal. Houve um ano em que o sofrimento foi bem maior do que nos anteriores. Começou imediatamente após o pai ter saído da carreira. Tudo porque este se apeou com um enorme volume, maior do que ele, enrolado em papel de armazém. 'Ó pai o que é isso? O que é isso?' «E o teu pai não te disse?», perguntou a Ana Isabel. «Claro que não, se não o Pai Natal não tinha graça.» «Mas tu não sabias, ainda, que não havia Pai Natal.» «Eu não!» «Que grande saloio!!! Então o que era aquilo?» «Um cavalo lindo, em cartão, que um tio me mandara.» «O que é feito dele, eu nunca o vi!» «Claro que não, ao fim de um ano ou dois, uma noite qualquer, esqueci-me dele no quintal e choveu forte e feio, no outro dia estava todo escangalhado. Mas ainda me lembro que, depois, brinquei com outros miúdos aos talhos, ou seja embrulhávamos em papel bocados de cartão a fingir de carne.» «Que brincadeiras!» «Mas não era só de brinquedos que gostava. Adorava ir com a minha avó à horta apanhar musgo para o presépio…» «Então não faziam a árvore?» «Nessa altura ligava-se bastante mais aos presépios. Arranjava-se uma tábua larga, punha-se em cima de um apoio…» «Apoio como?» «Uns bancos, uma coisa dessas, onde se assentava a tábua e a seguir se construía o presépio, com um lago…Bem vai-te deitar… já não vês nem ouves nada» (…) ![]()
Este livro de Faria Artur, publicado por Âncora Editora, tem o seu lançamento previsto para o dia 29 de Novembro, às 18h30, na Livraria Ler Devagar, em Lisboa (Rua Rodrigues Faria, 103), com a participação de Alice Vieira e de Alexandre Manuel.
|
Lídia Jorge Escritora ![]() |
DE LÍDIA JORGE AGUARDÁVAMOS UMA CRÓNICA PROMETIDA PARA ESTE ESPAÇO. EM VEZ DISSO CHEGOU-NOS "A MEIO DA NOITE" UMA ALARMANTE "MENSAGEM" QUE A ESCRITORA NOS AUTORIZOU A PUBLICAR MENSAGEM A MEIO DA NOITE Queridos amigos, tanto que eu queria não vos desiludir, cumprindo a tempo e horas o que vos prometi com solenidade, mas infelizmente irei continuar em falta, e desta vez a culpa traz dupla assinatura pois não é só minha, ainda que não conheça a quem imputá-la. Confuso? Compreenderão se vos disser que ao regressar a Lisboa encontrei a casa assaltada. Sim, meus amigos, a porta estava entreaberta, como se um estranho outro dono nos esperasse, e a fechadura não havia sido violada. Como explicar? Uma pessoa entra pela casa adiante, com a consciência perfeita do momento, o domínio sobre os maxilares, perfeito, e os músculos dos joelhos, intactos. O coração nem bate um pouco mais, prossegue o seu caminho, tiquetaque, tiquetaque, relógio orgânico habituado a muita coisa, e aí vai ele, inalterado. O coração fala consigo mesmo — Ficou o computador? Ficou. Ficaram as fotografias? Ficaram. Ficou o frigorífico velho? Sim. O passa-discos, também ficou? Que bom. E também ficou o televisor. E ficou o coelhinho de chocolate que me inspirou um conto, há dois anos. E a caneta de rosca, e as rosas de sarapilheira, e o caderno encarnado. Então uma pessoa olha para o caos instalado, a dança dos objetos que andaram de um lado para outro, cruzando-se no espaço, e sente uma espécie de anestesia. Não dá para pensar, só dá para ver. Pois no rebuliço, os pechisbeques voaram para cima da cama, os recibos das finanças foram parar nos portais, as cartas dos amigos ficaram debaixo dos óculos velhos, alguns deles saíram das caixas, e na confusão, de repente, a pessoa descobre que os aros estavam mais do que ultrapassados. Há quanto tempo estariam os óculos guardados no fundo da gaveta agora vazia? Aliás, todas as gavetas estão completamente vazias, e o chão está completamente juncado. Onde colocar os pés? O que estará debaixo do monte das informações bancárias, umas vinte, que parecem ter-se multiplicado por mil? E as moedas canadianas, e os reais desprezados? Que curioso é o bater do nosso coração. Tiquetaque, tiquetaque, sem alteração alguma. Pois por que não? Há revelações estranhas nesta desarrumação dos objetos. Umas velas que não apareciam há vinte anos ocupam lugar preponderante por cima de cintos e meias. Cuecas velhas que uma pessoa guardou só porque tinham uma ponta de renda, estão largadas sobre o busto esverdeado do Bach. Uma almofada em forma de lagarta cobre uma caixa de vidro de onde terá saído alguma coisa que foi parar dentro de sapatos. Cartas, tesouras, sapatos. E de repente, a vida vem ao nosso encontro e fala do tempo que passa, e da irrelevância dos objetos guardados, como se eles apenas servissem para nos dar recados de que não há recados. Mas neste ponto, meus amigos, eu faço uma pausa. Pois será que não haverá mesmo recados? Então o que sentirá uma pessoa que se infiltra na casa dos outros para procurar o que não lhe pertence? Será um método de vida? Uma tática de dever? Um exercício de frieza? Um exercício de perversidade? Um dia, o Baptista-Bastos, na boa tradição romântica, chamou ao ladrão de "Senhor Ladrão", e deu-lhe uns conselhos calmos. Pois também eu, ao regressar a casa e ao sentir que o ladrão deixou aqueles objetos que verdadeiramente mais amo no seu exato lugar, fui assaltada por um sentimento semelhante, uma gratidão inexplicável por esse ladrão que só queria ouro e dinheiro, precisamente o que as pessoas da minha igualha não têm mais em casa, porque não têm em lugar nenhum. E como uma romântica, que a seu tempo leu Os Miseráveis, comecei a pensar no Estado. Inveterada, imaginei que não foi pessoa quem me assaltou a casa. Imaginei que foi o Estado quem veio pela calada da noite, meteu a chave falsa, rodou-a, silenciosa, o Estado empurrou a porta, o Estado pensou que havia uma fortuna nos lugares onde os cidadãos comuns costumam esconder as fortunas, o Estado enervou-se por só encontrar clips, cotão, recortes de jornais, morraça, e foi-se enfurecendo, foi atirando para o chão tudo o que encontrava na frente, na esperança de que a fortuna do cidadão de súbito saltasse do interior das páginas de um livro. Que ironia. O Estado a procurar ouro e divisas dentro das páginas de um livro. Que ridículo. O Estado cansou-se. O Estado ainda pensou derrubar o candeeiro, mas depois sentiu que havia visitado um cidadão insignificante, e achou que apenas perdera o seu tempo. O Estado sabe o que faz. O Estado abalou a procurar a sua sorte numa casa mais rica. Não falo só no meu Estado, falo também do Estado do visitante. Quando cheguei a este ponto, de súbito o tiquetaque desorganizou-se, os joelhos deram de si, e felizmente que havia um Magnum Clássico no congelador. Ele permitiu, meus amigos, que eu abrisse este computador e vos explicasse por que razão, se acaso não me dispensarem, em face do exposto, de escrever um artigo para o vosso site, irei precisar de um tempo liberto desta presença dúbia que ainda permanece no interior da minha casa. De quem eu tenho pena, se for gente, por quem eu sinto raiva, se for Estado. |
Galopim de Carvalho Geólogo. Antigo diretor do Museu Nacional de História Natural e Ciência da Universidade de Lisboa ![]() |
OS DINOSSÁURIOS NÃO PASSARAM DE MODA... ... nem estão em hibernação. O que, em meu entender acontece, é que há menos interessados a falarem deles nos media. Pelo contrário, no recato da investigação científica nunca houve entre nós tanta produção e isso alegra-me bastante. Sem falsa modéstia, devo dizer que a semente que ajudei a lançar à terra, não como especialista (que toda a gente sabe que nunca fui) mas como divulgador pela palavra escrita e falada e como responsável pelas muitas exposições levadas a efeito no Museu Nacional de História Natural, germinou e é hoje uma "árvore" a dar frutos. Não obstante a tradicional escassez de financiamentos, nunca tivemos tanta gente a trabalhar, a tempo inteiro, em paleontologia e paleobiologia dos dinossáurios. Nunca, como nos últimos anos, conduzimos ou participámos em tantas escavações no país e no estrangeiro. Nunca se publicou tanto sobre este tema. Na continuação de uma linha com cerca de uma dezena de grandes exposições, que iniciámos em 1992, com "Dinossáurios regressam em Lisboa", vai ter lugar no próximo mês [Outubro], no Pavilhão do Conhecimento da Agência Ciência Viva, na qual estou envolvido, uma exposição sobre o celebérrimo Tyrannosaurus rex. O que está, na verdade, em hibernação, é a vontade política dos responsáveis das administrações central e local em levar a cabo, concluir ou prestar assistência de manutenção a importantes projetos que lhes entreguei, alguns deles há mais de uma vintena de anos. São, nomeadamente, os casos seguintes: • Grande jazida de "Pego Longo" perto de Carenque, com projecto de arquitectura aprovado pela Câmara Municipal de Sintra, em 2001, completamente deixado ao abandono; • Jazidas "Pedreira do Avelino", "Pedra da Mua" e "Lagosteiros", cujos projetos continuam perdidos em uma ou mais gavetas da autarquia de Sesimbra; • Jazida da "Pedreira do Galinha", a única visitável, cuja musealização não foi concluída e que, por falta de manutenção, se encontra num estado de degradação preocupante; • Jazida de "Vale de Meios" (Alcanede, Santarém), à espera de melhores dias. O alto valor científico, o correspondente interesse pedagógico e a monumentalidade destas jazidas justifica o investimento que nelas se possa fazer (algo insignificante face ao que já foi feito), na certeza de que o seu potencial interesse turístico o compensará amplamente. Se a incúria por parte das administrações, "em tempos de vacas gordas", foi a que está à vista, não é difícil imaginar o destino deste valiosíssimo Património Natural, nos tempos que correm, com os governantes que elegemos. |
![]() |
OS MEUS LIVROS ETERNOS (1)
Escrevem, pintam, esculpem ou analisam fenómenos sociais. Gente conhecida a eleger os livros que marcaram a sua memória. Escolha difícil. Vale como referência. Importante, importante mesmo, é o estímulo à leitura.
![]() O jornalismo foi a esteira do escritor Urbano Tavares Rodrigues. Muitos anos nas bancas. Uma experiência que o levou, também, mundo fora, dos palácios aos bairros da lata. Pertence a uma geração marcada pelo pós-guerra, «que viveu uma certa pobreza, mas, ao mesmo tempo, aquela euforia do existencialismo, onde confluíam a procura das profundidades do ser humano e a fraternidade». E que livros se eternizaram na sua memória? Opta por destacar um autor: Baudelaire. Alguma das suas obras em especial? «Sim, Flores do Mal. Modelou-me toda a minha sensibilidade. Li-o umas cem vezes». Francisco Simões, escultor, uma relação direta e cúmplice com Um Amor Feliz (são de sua autoria as capas desta obra de David Mourão-Ferreira). Outra ligação a Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio. Também Fernando Pessoa visto por Agostinho da Silva. E Morte em Veneza, de Thomas Mann, «lido à revelia da minha mãe, tinha dez anos...». O poeta Nuno Júdice refere que «se um livro se escolhe para definir uma relação com o nosso tempo, O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati, é um deles; se for para estabelecer uma relação com a própria arte nos vários aspetos, da música à pintura, da poesia à escultura, então As Metamorfoses, de Jorge de Sena; finalmente, se o livro se escolhe por desejo de evasão e refúgio no imaginário em estado puro, é a Cartuxa de Parma, de Stendhal». |
Rui Beja Mestre em Estudos Editoriais pela Universidade de Aveiro Antigo presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros e do Círculo dos Leitores ![]() |
![]() TRECHOS DA OBRA "A EDIÇÃO EM PORTUGAL (1970-2010): PERCURSOS E PERSPECTIVAS" O FUTURO DO LIVRO Esteio da civilização humana, o livro confronta-se, agora, com realidades técnicas, tendências sociológicas, padrões comportamentais e modelos de negócio que representam o mais sério dos desafios enfrentados durante os mais de cinco séculos em que predominou como suporte privilegiado da palavra escrita. Ao cabo de meio milénio em que se afirmou como o mais poderoso instrumento de divulgação do saber e de formação intelectual da humanidade, a sua perenidade começa a ser questionada. A crescente relevância da leitura de conteúdos digitais em suportes digitais deixa antever transformações sucessivamente mais profundas no mundo do livro, envolvendo todos os seus protagonistas e todas as dimensões da cadeia de valor da edição. Ainda que ao actual pico de expectativas favoráveis à rápida adopção massiva de suportes digitais de leitura venha a suceder se, como é usual em produtos inovadores, um período de abrandamento e uma subsequente estabilização a um nível intermédio, nada ficará como dantes. O e-book veio para ficar. O momentum da edição digital permite concluir que o impacte – tanto em quantidade de utilizadores como no surgimento de novos players e de novos modelos do negócio editorial – é de tal forma forte e irreversível que o ajustamento de meios, métodos e processos de trabalho caminha inexoravelmente no sentido da rápida transfiguração da actividade editorial e livreira. Esta transfiguração afigura-se, de facto, inevitável, mesmo que tal não signifique que o livro impresso em papel deixe de constituir uma componente insubstituível da actividade editorial; que, bem pelo contrário, e com a maior das probabilidades, continuará a constituir, por muito tempo, a sua parte mais substancial. O acto intelectual sob influência de uma sociedade de nativos digitais A entrada na era da «informação globalizada», para além de corresponder a uma mudança de paradigma civilizacional, poderá ter implicações de grande impacte na estrutura intelectual do homem e no nível sociocultural das sociedades. Cientistas e intelectuais convergem num aspecto fulcral: a leitura em suporte digital está a produzir alterações na função cerebral. Porém, se as razões estão estudadas e são conhecidas, a avaliação dos efeitos que produzem não vai, ainda, muito para além de pressuposições ou, em certos aspectos, de eventuais preconceitos decorrentes dos hábitos civilizacionais que prevalecem nas gerações mais maduras. José Afonso Furtado aborda a temática das versões electrónicas e da reconceptualização do livro, elencando, e pondo em perspectiva, a divergência de opiniões expressa por especialistas e investigadores. Se para alguns os livros e a leitura se encontram inexoravelmente ligados a uma herança sociocultural de cinco séculos, pelo que o livro electrónico deve ser entendido como uma evolução progressiva e não como uma revolução abrupta, para outros, as novas potencialidades oferecidas pelo digital prefiguram uma ruptura fundamental entre o texto e o seu suporte tradicional, levando inevitavelmente à elaboração de objectos informacionais muito afastados do modelo linear e fechado baseado primariamente na textualidade escrita própria do livro impresso. Relativamente às questões cognitivas e práticas sociais, é também referido e consubstanciado por José Afonso Furtado que, enquanto para alguns uma leitura cada vez mais rápida e não sequencial reduz a compreensão às suas formas mais simples e superficiais, sobredeterminando aproximações e ilusões cognitivas (com efeitos negativos na memória, lastro da identidade singular), para outros, a memória material e inerte do livro não pode competir com as potencialidades da memória informática e a consequente libertação do utilizador das limitações inerentes a uma localização espacial. Ainda no domínio das questões cognitivas e das práticas sociais – e mais especificamente no âmbito das mutações na escrita e no texto –, a passagem gradual de um estado em que o conhecimento evoluído se adquiria sobretudo através do livro e da escrita (o olhar, a visão alfabética, ou seja, a inteligência sequencial) para um estado em que o conhecimento se adquire antes, e para alguns sobretudo, através da audição (o ouvido, a visão não alfabética, ou seja, a inteligência simultânea), constitui, provavelmente, o aspecto mais inquietante. A este respeito, leiam-se as considerações de Furtado, que se apoia num estudo de Raffaele Simone: Não é fácil descobrir completamente as razões desta mudança. Certamente que o enorme aumento dos estímulos auditivos e a cultura da audição que incitou tornaram menos relevantes as visões alfabéticas e o seu suporte típico, o texto. É um facto que o alfabeto e as suas principais materializações físicas, o texto e o livro, deixaram gradualmente de ser o terreno privilegiado a que se aplica a acção do olhar e começaram a perder terreno. Este retrocesso pode ter implicações a nível do indivíduo, pois o olhar do homem finissecular poderá vir a ser incapaz de ler ou, mais geralmente, de estar à vontade perante um texto escrito. O homem renuncia então à «conquista da visão alfabética no momento em que, com o crescimento desmesurado da informação mediada pelo ouvido e pela visão não alfabética, teve a sensação de dispor de fontes de conhecimento igualmente ricas». Terá assim renunciado a uma conquista evolutiva que a escrita tinha estimulado para dar um passo atrás. É quase como se se «deixasse de parte a visão alfabética – um medium pleno de tensões e de "fadiga" – para voltar a media mais naturais, mais primitivos, de menor grau de tratamento. O que significa talvez que existe uma hierarquia da "natureza" na utilização das diversas vias de aquisição do conhecimento. O exercício da visão alfabética é não só o mais avançado como exige maior empenho e é mais trabalhoso do que o do ouvido e da visão não alfabética. Estas afirmações são compagináveis com as constatações do complexo e extenso trabalho que o reputado neurologista Alexandre Castro Caldas tem vindo a desenvolver sobre a influência do conhecimento das regras da leitura e da escrita na função cerebral. Embora esclarecendo que o cérebro é um órgão com grande plasticidade e que se adapta às múltiplas solicitações do meio envolvente, seja qual for o grau de complexidade, assume que as regras que ditam este processo adaptativo estão longe de ser compreendidas, e conclui, na «Introdução» ao livro em que reúne e compila informação sobre os trabalhos desenvolvidos desde o dealbar dos anos 1970, galardoado com o Grande Prémio Bial de Medicina 2002: Podemos, assim, dizer que o conhecimento da leitura e da escrita corresponde ao aproveitamento de múltiplos recursos existentes no cérebro humano. Aquilo que com simplicidade se pode considerar o "saber ler e escrever" é um processo neurobiológico de grande complexidade e que modifica radicalmente a forma de funcionar do cérebro. (...) Modelos de negócio que se perscrutam no horizonte da edição digital Por detrás da cortina de fumo em que se movimentam antigos e novos actores, a agitação é grande e o segredo ainda maior. Pontificam os jogos de informação, desinformação e contra informação. Em alguns predomina o combate pela sobrevivência, noutros luta-se pela estabilização do status quo e em outros tantos enceta-se a guerra pela conquista de um lugar no podium. Em termos globais, o instinto de sobrevivência bate-se contra a intrusão de novos players que, estando no negócio editorial e livreiro, não estão no mercado da cultura; que utilizam a produção e divulgação do livro como um meio e não como um fim. Os modelos de negócio que se deixam antever não são animadores para quem entende a palavra escrita, e o livro em particular, como bem inestimável para valorização intelectual individual e para o desenvolvimento sociocultural dos povos. ![]()
Este novo livro de Rui Beja, publicado pela APEL, tem o seu lançamento previsto para o dia 11 de Julho, às 18h30, na livraria Férin, em Lisboa, com apresentação do Director-geral do Livro e das Bibliotecas, José Manuel Cortês.
|
Armando Cardoso Fotógrafo. Web Designer do Casal das Letras ![]() http://www.armandocardoso.com |
![]() UM QUESTIONÁRIO RENOVADAMENTE PROUSTIANO TENHO SAUDADE DO TEMPO EM QUE A VIDA NÃO ERA DOMINADA PELO "ECONOMÊS" Trocaria de bom grado o seu primeiro nome?
Não; gosto deste. Quantidade de velas no seu último aniversário? Ui … Só duas … mas especiais: no dia do aniversário tive o (des)prazer de receber uma carta informando-me que estava reformado "por velhice". Tatuagens? Nunca ! Piercings? Pior ainda … Já foi a África? Sim. Já ficou bêbado? Sim, mas há muitos anos que não "conheço" essa sensação. Já chorou por alguém? Sim, muitas vezes. Choro de alegria e de tristeza … mas "não sou piegas". Praia ou campo? Não sou amante de praia. Mas adoro ver o mar, sobretudo no inverno. Peixe ou carne? Depende da receita. Cerveja ou champanhe? Depende do "acompanhamento". Metade cheio ou metade vazio? Sou mais para o lado de meio vazio; se for preciso enche-se de novo … Lençóis de cama lisos ou estampados? Lisos, mas com cores fortes. Música preferida? Tem dias … conforme o meu estado de espírito, mas tenho um fraquinho por Bach e por Leonard Cohen. Filme preferido? 2001 Odisseia no Espaço, mas o meu cineasta preferido é Luis Buñuel, com destaque para O Charme discreto da burguesia. Flor preferida? Orquídea. Qual o animal que lhe merece mais simpatia? Golfinho. Melhor refrigerante para os dias de calor? Chá frio. Quantas vezes deixa tocar o telefone antes de atender? O mínimo possível. Irrita-me o toque de telefone. Qual a imagem do seu telemóvel? Um autorretrato, digitalmente transformado. Não sou narcisista, mas gosto daquela imagem distorcida. Pior do mundo humano? Mentira ou, pior ainda, a meia-verdade. E o melhor? Capacidade de perdoar. Acredita na vida extraterrestre? Não, no sentido habitualmente dado ao vocábulo "vida". Um feito de que se orgulhe? Orgulhar não será a expressão mais correta. Mas tenho consciência de ter tentado "mudar as coisas": lutei contra o fascismo, fui preso pela PIDE … mas às vezes questiono-me sobre o que resta desses sonhos da juventude. Pratica ou já praticou alguma ação de voluntariado ? Presentemente dou aulas de fotografia, em regime de voluntariado, na Universidade Intergeracional de Benfica. É um trabalho extremamente gratificante. Última coisa que faz antes de dormir? Murmurar "até amanhã, querida. Dorme bem". Qual o primeiro pensamento ao acordar? Ora cá estamos para um novo dia. O que tem debaixo da cama? Memórias … O que nunca tira? A esperança de ver um sonho cumprido. Que dom da natureza desejaria possuir? Acho que a natureza se encarregou de distribuir bem as coisas. Tem um lema de vida? A minha vida é demasiado cinzenta para ter lemas … aprecio, sobretudo, Viver ! Que palavra pronuncia diariamente com maior frequência? Amor. Que livro está a ler? A Sombra do Vento, de Carlos Ruiz Zafón, A Toupeira de John le Carré e várias obras sobre fotografia e informática. Um herói de ficção? Capitão Nemo, da obra ficcional de Júlio Verne. E na vida real? Na vida real não há heróis: só há Pessoas e destas destaco as anónimas que lutam diariamente por uma existência digna. Um mistério? A vida. Uma saudade? Do associativismo da década 70, da utopia e dos sonhos. Tenho saudade do tempo em que a vida não era dominada pelo "economês". Uma memória longínqua? O meu irmão mais novo, ainda bébé, ao colo do meu pai, que o embalava ao som de um velho fado "Naquela Azenha Velhinha" …enquanto chorávamos ambos pela perda recente da minha mãe. Um sonho de criança? Ser motorista de táxi. Hoje abomino a condução, a tal ponto que não tenho carro há mais de dez anos e deixei caducar a carta! Um sonho de adolescente? Ser operador de câmara, na televisão. Fascinava-me aquele mundo novo. O maior deslumbramento? Um pôr de sol em Dubrovnik. Uma característica sua? Tenho muitas dúvidas e engano-me frequentemente. Deceções que teve na vida? Muitas. Mas faço o possível por dar a volta por cima. A paz é uma utopia? Que seria da vida sem utopias ? Um mito que gostaria se tornasse real? Deixemos os mitos serem mitos … A mentira mais atroz? Toda a mentira, com particular destaque para a chamada "meia-verdade". E os últimos anos têm sido bem férteis nessas andanças ! Qual o seu primeiro impulso perante a violência? Tentar não reagir com igual violência, até porque ficaria sempre a perder… Vota sempre por ideais ou já deu prevalência à utilidade conjuntural? Já tive de engolir alguns sapos … Lugares onde morou? Pinhel e Lisboa. Lugares onde esteve e voltaria? Só há um sítio onde nunca me canso de voltar: Paris! Programas de TV a que assistia quando criança? Na minha infância, não havia televisão, mas recordo com saudade alguns programas que preencheram os serões da minha adolescência: Charlas Linguísticas do Dr. Raul Machado, os serões com o João Villaret e tantos outros … Programas a que assiste hoje? O meu passatempo favorito, em termos televisivos, é o zapping: detenho-me nos documentários e não perco um jogo do Glorioso. Vejo os noticiários da RTP, mas desisti de assistir a debates e similares, com comissários políticos travestidos de comentadores … Quem lhe envia e-mails com maior frequência? O Pedro Foyos. E são sempre recebidos com carinho. Comidas preferidas? Arroz de pato à antiga, feito pela minha mulher. Lugar em que desejaria estar agora? Gosto de estar onde estou. Lisboa continua a ser, para mim, a cidade mais bonita, com uma luz inigualável. Como gostaria de morrer? Gostava de acordar morto. Regressando, quem gostaria de ser? A morte é uma viagem sem regresso. Espero que tenha ainda tempo para...... … fazer mais algumas exposições. |
Miguel Real Escritor ![]() |
CINQUENTA E CINCO Aos cinquenta e cinco, atira-se o pescoço para trás, projecta-se o olhar em frente e pergunta-se à consciência se está satisfeita ou realizada. Se apenas satisfeita, sentimo-nos desconformes, arrastando uma melancolia desconsolada, que nos resigna ou nos revolta. Revoltados, percebemos ser tarde para que doravante a consciência se transfigure de satisfeita em realizada. Se realizada, sentimo-nos primaveris, mente aberta para o verão do nosso contentamento, que é um ocaso sereno e consolado. A década de cinquenta é o número central da balança do deve e haver da vida. Dever à vida é ser infeliz. Haver da vida é ter sido privilegiado por acontecimentos benéficos. Dever à vida é estar vazio, braços para baixo, olhar para baixo, testa para baixo. Haver da vida é ter o passado cheio de realizações e o futuro cheio de ilusões. Dever à vida é ter estado parado no passeio errado, contemplando o passeio certo do outro lado da avenida, e não ter tido a coragem de atravessá-la. Tivemos medo, receámos ser atropelados, desconhecendo que, parados, nos atropelámos a nós próprios. Haver da vida é não ter tido medo de ser atropelado, porventura ter sido mesmo atropelado, mas ter tido a ousadia de apressar a recuperação do nosso corpo, continuando a caminhar sabendo que o ponto final não existe, é uma invenção, não da vida, mas da gramática. Dever à vida é reconhecer, mal nos levantamos pela manhã, que a paisagem é o deserto – o centro, as margens, o horizonte. Haver da vida é reconhecer que a paisagem é florida e vistosa, e, se o não for, ter suficiente suplemento de alma para criar um oásis a partir de areia estéril. Dever à vida é ter secado na consciência os castelos de ilusões da infância. Haver da vida é ter prolongado em adulto os jogos de criança com o mundo, é ter aberto o caminho pedra a pedra, ter perfeito a nossa estrada, que foi a construção da nossa felicidade. Haver da vida é assumir a consciência, aos cinquenta e cinco, que todos temos vida, muitos temos obra, poucos têm um destino – e nós estamos do lado da obra e do destino. |
Fátima Marinho www.fatimamarinho.com ![]() |
ADIANTE A história dos três porquinhos alertou-nos, na infância, para a robustez do tijolo e para a protecção que as construções sólidas ofereciam contra os lobos. Aquela clara e directa atribuição ao esforço, enquanto garante da segurança – recompensa merecida pela disciplina e pela planificação do trabalho em função dos riscos –, anda agora ensombrada por fragilidades entalhadas na imprevisibilidade do acaso ou da ironia. Desde o dia 11 de Setembro de 2001 não há edifícios à prova da astúcia. Andamos, agora, a aprender que não há sistemas financeiros à prova de crash e que os paraísos fiscais são, afinal de contas, o inferno onde arde a equidade – essa condição da justiça que deveria presidir às relações humanas, sobretudo no que à distribuição de bens respeita. Este modelo de Sociedade Civil – criado, como disse Rousseau, pelo primeiro homem que murou um terreno e se atreveu a dizer: – isto é meu, depois de encontrar outro homem, suficientemente ingénuo, que acreditou nele –, está prestes a sucumbir. Já todos ouvimos os ais de moribundo. Todos sabemos que o seu tempo terminou. Tropeçamos nas trevas, como zumbis. Estamos, até, fartos de cair, mas não há meio de arrepiarmos caminho. Continuamos a querer vender e fazer luzir, na bolsa de valores, campos de trigo fictícios que, durante uma eternidade, difícil de resgatar, engordaram os cabedais do grande capital. A solidez dos impérios, outrora inatacáveis, fenece. É a face de um novo mundo nas suas dores de parto, acabado que está o tempo de gestação da revolta. Vivemos debruçados sobre o nascimento de uma nova ordem, parida desta desordem que nos ordena. Está em todos os rostos, em todas as ruas, em todas as mãos. Algo, em cada um de nós, lamenta o declínio das certezas. Algo, em cada um de nós, anseia por fazer da incerteza um caminho certo. Eis-nos conscientes do que sempre fomos: – peregrinos de um reino, sem muralhas, por achar. Adiante companheiros! . ![]() O MISTÉRIO DAS COISAS ERRADAS Aproveitando a presença de Fátima Marinho neste "espaço de partilha" convidamos-vos a ouvir a crónica O Mistério das Coisas Erradas, integrada no livro com o mesmo título, editado por Alphabetum. Este e demais textos são ditos de modo sublime por Teresa Silva e gravados por André Tavares. ![]() CONTOS DE DESASSOSSEGO UMA INTRODUÇÃO Numa breve introdução ao mesmo livro, a autora considera estas crónicas como «contos de desassossego». Justifica: «...para que não possamos andar completamente satisfeitos, enquanto, ao lado, a cem quilómetros ou noutro continente, há crianças que sofrem e lutam para sobreviver.» ![]() |
Pedro Foyos Jornalista e escritor ![]() |
![]() ASSINALANDO O PRIMEIRO ANIVERSÁRIO DESTE "SÍTIO DE ENCONTRO" OS AUTORES DESAFIARAM-SE A RESPONDER AO QUESTIONÁRIO (RENOVADAMENTE PROUSTIANO) QUE ELES PRÓPRIOS PROPUSERAM NOS ÚLTIMOS MESES A FIGURAS DA LITERATURA, DO JORNALISMO, DAS ARTES E DAS CIÊNCIAS. MELHOR DO MUNDO HUMANO É O AMOR QUE PERMANECE DEPOIS DA PAIXÃO Trocaria de bom grado o seu primeiro nome?
Gosto muito do nome Leonardo, tanto que o atribuí ao jovem protagonista de um dos meus romances. Mas Pedro também não está mal. Quantidade de velas no seu último aniversário? Duas, por sinal uma capicua. Tatuagens? Suscitam-me um desprazer semelhante às das frioleiras que por vezes vemos esculpidas a canivete nos troncos das árvores. Piercings? Intrigante para quem, como eu, não suporta um simples anel. Já foi a África? Não, mas a África vem frequentemente visitar-me na pessoa da minha mulher que, europeia de nascimento, assume-se africana de espírito. Já chorou por alguém? Sim. Por mim próprio também. Praia ou campo? Campo para caminhar, conversar, pensar. Praia para contemplar o mar e consolar o apetite tonto de eternidade. Dispenso a areia, sou da terra. Peixe ou carne? Nem uma coisa nem outra. Sou vegetariano há 55 anos. Cerveja ou champanhe? Não consumo bebidas alcoólicas. Metade cheio ou metade vazio? Tendo ligeiramente para metade cheio. Lençóis de cama lisos ou estampados? Desde que sejam confortáveis ... Música preferida? Excluindo os inevitáveis clássicos toca-me particularmente a música de Neil Diamond criada para o filme Fernão Capelo Gaivota. Filme preferido? "2001 – Odisseia no Espaço", do genial Kubrick. Permita-se-me realçar também um filme estreado há dias: "A Invenção de Hugo", de Scorsese. A minha paixão pela história do cinema, especialmente pelo pioneiro George Méliès, leva-me a qualificar este filme como superlativa obra-prima. Flor preferida? Há uma plantinha aquática (Salvinia auriculata) cuja flor é tão insignificante que mal se vê. Mas a planta em si mesma é prodigiosa. Para viver não necessita mais que água, ar e luz. Rigorosamente mais nada. Assim vive e deixa viver. Um século, se não a molestarem. Significa que o Criador conhecia a receita da perfeição. Depois enlouqueceu. Qual o animal que lhe merece mais simpatia? Todos os animais (humano incluído) me merecem simpatia ou, pelo menos, uma curiosidade simpática. Melhor refrigerante para os dias de calor? Água fresca. Qual dos seus amigos vive mais longe? Todos os que viajaram para estrelas longínquas. Quantas vezes deixa tocar o telefone antes de atender? Na distribuição das tarefas domésticas usufruo, por norma, da bondade de não ter de atender o telefone. Qual a imagem do seu telemóvel? A que vem de fábrica tem um grafismo interessante. Pior do mundo humano? A crueldade racional. E o melhor? O amor que permanece depois da paixão. Acredita na vida extraterrestre? Absolutamente. Mas coisa diferente é admitir vida inteligente. Subscrevo a tese do "fenómeno acidental" muito bem fundamentada por Carl Sagan: «Somos únicos, irrepetíveis, acidentais.» A propósito de vida extraterrestre não pode ignorar-se a descoberta há um ano do exoplaneta Gliese 581d, potencialmente habitável por seres de natureza similar aos da Terra. Um dia, talvez, emigraremos para lá. Coitado do Gliese 581d. Um feito de que se orgulhe? Ter participado (algumas vezes com elevado grau de risco físico) nas lutas pela liberdade de expressão (antes e depois do 25 de Abril). Última coisa que faz antes de dormir? A Professora Teresa Paiva não levará a mal que lhe roube a resposta a esta pergunta: «Antes de dormir, sonho um pouco.» Qual o primeiro pensamento ao acordar? Então vamos lá. O que tem debaixo da cama? Não faço ideia. Vou ver e já digo. O que nunca tira? A vida (incluo os não humanos). Que dom da natureza desejaria possuir? A infinita paciência das árvores. Tem um lema de vida? Não propriamente um lema, antes uma fórmula heraclitiana: «A vida é só uma. Tudo é uma coisa só.» Que palavra pronuncia diariamente com maior frequência? Querida. Que livro está a ler? Prestes a terminar: A Guerra dos Mascates, momento altíssimo na bibliografia já vasta de Miguel Real. Não posso deixar de citar um outro, de poesia, lido há meses, que me impressionou imenso: Gado do Senhor, de Rosa Alice Branco). Um herói de ficção? Os rapazes da minha geração iniciavam-se na "literatura a sério" em incursões ao Mississípi na companhia do Tom Sawyer e do Huckleberry Finn. Não existiam heróis maiores. Com eles descobri a paixão de ler. Mais tarde, outros dois, inolvidáveis: o Zezé e o Portuga d’ O Meu Pé de Laranja Lima. Com eles descobri que um livro pode fazer chorar um leitor adulto. E na vida real? Não acredito em heróis. Mas acredito que há seres humanos invulgarmente corajosos. Nesse quadro destacaria Salgueiro Maia. Figura histórica preferida? Leonardo da Vinci. Um mistério? O ser humano. Uma saudade? Do ambiente nas redações dos jornais pelos anos 60, 70. Uma memória longínqua? A tragédia de saber, aos sete anos e meio, quas’oito, que a minha mãe tinha morrido. Acontecera um tempo antes mas ninguém tinha coragem de mo dizer. E já eram tão imensas as lágrimas de a julgar num hospital sem visitas. Um sonho de adolescente? Mudar o mundo. O maior deslumbramento? Um pôr-do-sol contemplado do alto da Senhora do Castelo, em Mangualde. Dediquei-lhe uma crónica que finalizava assim: «São gloriosos os minutos finais. Nesse fragmento de tempo, o descrente que sou, vacila. Logo a seguir cai o pano. E recupero o sossego dos espelhos de água.» Uma característica sua? Estar sempre do lado dos mais fracos. Deceções que teve na vida? Pelo final da adolescência concluí em definitivo que não iria mudar o mundo.. A paz é uma utopia? Sim. Este planeta foi concebido segundo a lei constante dos opostos. Não há paz sem guerra, da mesma forma que não há luz sem escuridão. Nada a fazer. Um mito que gostaria se tornasse real? A história da Arca de Noé é muito bonita. E chegámos a um tempo que não seria despropositado começar a construir uma nova Arca de Noé. A mentira mais atroz? A que vem no Génesis, fazendo intuir que tudo quanto vive no planeta Terra (o próprio planeta em si mesmo) deve obediência aos ditames de um bípede imperador com poderes ilimitados. Qual o seu primeiro impulso perante a violência? Reagir com igual violência. Por uma vez passei do impulso à ação, o que me acarretou seriíssimos problemas. Vota sempre por ideais ou já deu prevalência à utilidade conjuntural? Os ideais propagandeados pelos partidos estão em geral descredibilizados. O "voto inútil" resulta por vezes mais útil no sentido de uma mais equilibrada distribuição de vozes. Lugares onde morou? Sempre na área de Lisboa, exceto quando, ainda menino e órfão de mãe fui despachado para um internato a 200 quilómetros de casa. Lugares onde esteve e voltaria? Jardins londrinos. Estónia com as suas "noites brancas". Hong-Kong com os seus dias estonteantes. Alpes suíços com o seu esmagador Matterhorn. San Petersburgo com o seu Palácio e jardins deslumbrantes. Ai, ajudem-me a parar! Programas de TV a que assistia quando criança? Tive o privilégio de assistir às primeiras emissões experimentais em Lisboa, na antiga Feira Popular. Lembro-me na perfeição dos programas com João Villaret e Vitorino Nemésio. Programas a que assiste hoje? Cá por casa consome-se muita informação televisiva a partir das 20h00. Porém, vejo-me cada vez mais refugiado no Mezzo. Quem lhe envia e-mails com maior frequência? Recordista indiscutível é o Armando Cardoso, o grande obreiro gráfico e informático deste "sítio de encontro". Nunca os contei, serão largas centenas. Se ele contar os que lhe enviei chegará a um número igual. Comidas preferidas? Prefiro um número imensurável de alimentos, exceto pepino, carne e peixe. Lugar em que desejaria estar agora? Estou feliz onde estou e com quem estou. Como gostaria de morrer? Lúcido. Regressando, quem gostaria de ser? Não tenciono regressar. Espero que tenha ainda tempo para...... … ver o Prof. Paulo Borges no Parlamento da República. |
Maria Augusta Silva Jornalista e escritora ![]() |
![]() ASSINALANDO O PRIMEIRO ANIVERSÁRIO DESTE "SÍTIO DE ENCONTRO" OS AUTORES DESAFIARAM-SE A RESPONDER AO QUESTIONÁRIO (RENOVADAMENTE PROUSTIANO) QUE ELES PRÓPRIOS PROPUSERAM NOS ÚLTIMOS MESES A FIGURAS DA LITERATURA, DO JORNALISMO, DAS ARTES E DAS CIÊNCIAS ACREDITO QUE A CONSCIÊNCIA É O ÚNICO JUIZ DOS VALORES DA AMIZADE Trocaria de bom grado o seu primeiro nome?
Fui baptizada com o nome das minhas avós. Só isso chega para que o estime. Mas na família chamam-me Zita ou Zitó, nas Redacções, regra geral, apenas Maria; para o meu marido nem uma coisa nem outra: sou Estrelinha. E fico por aqui. Quantidade de velas no seu último aniversário? Apenas duas: Uma de seis, outra de quatro. Tatuagens? Chegam as cicatrizes inevitáveis. Piercings? Prefiro os brincos de princesa nascidos da terra para embelezarem a vida. Já foi a África? Julgo que nunca saí de lá. África (Angola em particular) é o meu corpo total. Já chorou por alguém? Por sofrimento e por alegria. Em todos os casos, as lágrimas são mais do que cloreto de sódio, meu querido Gedeão! Praia ou campo? O ideal seria um rio lavado no meio das árvores. E das minhas janelas alcançar o mar. Peixe ou carne? Cá por casa divido-me entre cozinha vegetariana para o Pedro e pratos de peixe e carne para a minha mãe. O meu apetite é moderado. Cerveja ou champanhe? Que bem me sabe a água! Cerveja nunca bebi. Champanhe: um toque fresco nos lábios numa ou noutra festividade, esporadicamente. Metade cheio ou metade vazio? O importante é que o conteúdo não esteja envenenado.. Lençóis de cama lisos ou estampados? Macios como um abraço de ternura. Música preferida? Czardas de Monti interpretadas por meu pai no seu grupo de jazz ou junto ao meu ouvido. Filme preferido? Um Homem e Uma Mulher, dirigido por Claude Lelouch. Sobretudo pela simplicidade do argumento e a interpretação tão natural, por isso genial, de Anouk Aimée e Jean-Louis Trintignant. Um filme dos meus verdes vinte anos. Flor preferida? Antúrio. Singelo na forma, imenso na expressão erótica da sua solidão. Qual o animal que lhe merece mais simpatia? Nunca te esquecerei, Vadiolas. Os meus amigos Paulo Almeida, Nuno Duarte, Pedro Almeida, Deolinda Cruz, Maria Helena e Rosarinho Lemos que me perdoem, mas a minha Vadiolas era a gatinha mais bonita do mundo! Melhor refrigerante para os dias de calor? Chá de todos os paladares misturado num grande jarro com água. Qual dos seus amigos vive mais longe? Olá pai, olá tio Araújo (meu segundo pai), tio Pedro, Ia, Maria Adelaide, Julinha, Dé, Fernando Daniel, mãe Adelina, Zé Pinto Veloso, Jaime Figueiredo, Armando Rafael... Não há distâncias entre o meu coração e o céu. Quantas vezes deixa tocar o telefone antes de atender? Não gosto de fazer esperar ninguém. Fico, no entanto, com os nervos em franja quando do outro lado me chegam campanhas publicitárias em catadupa. Qual a imagem do seu telemóvel? Não presto atenção. O telemóvel tem alguma utilidade mas não me encanta nem vicia. Pior do mundo humano? A desumanidade. E o melhor? O sentimento do humano. Acredita na vida extraterrestre? Fantástico é o meu marido querer convencer-me de que foi um extraterrestre quem comeu o queijo ao longo da noite... Um feito de que se orgulhe? Dou tudo em nome dos afetos. Última coisa que faz antes de dormir? Aconchego os 91 anos da minha mãe. E digo ao Pedro: obrigada por tudo, meu amor. Qual o primeiro pensamento ao acordar? Hoje, penso assim: um dia de cada vez. Os desejos, os sonhos de longo alcance deixo-os agora para os meus sobrinhos e sobrinhos-netos. O que tem debaixo da cama? Espero que não haja pó. O que nunca tira? O sentido do asseio. Que dom da natureza desejaria possuir? O da claridade. ... E queria ter herdado a beleza ímpar da alma do meu pai (por que lhe foi a vida tão breve?). De possuir a admirável coragem da minha mãe, a sua invulgar paixão pela vida; de ter a grandeza da tia Augusta na sua capacidade de perdão; de sentir a límpida fé da tia Lola em Santa Rita de Cássia (a "santa das causas impossíveis") Tem um lema de vida? Com os meus muitos defeitos e uma ou outra qualidade, procuro o Ser antes do Ter. Que palavra pronuncia diariamente com maior frequência? Amor. Que livro está a ler? Duas revisitações: A poesia de Sophia e a poesia de Albano Martins (deste último, a também poeta Maria do Sameiro Barroso acaba de organizar, com a sensibilidade e talento que lhe são conhecidos, uma antologia prefaciada por Eduardo Lourenço e dedicada àquele mestre da síntese poética). Um herói de ficção? Que me desculpem clássicos e modernos por os meus heróis maiores de ficção serem as fadas e bruxas que os pais me inventavam para não ter medo das trovoadas. Quando troveja chamo logo pela fada Oliveirinha. Oliveira, minha árvore predileta; deve, fundamentalmente, vir daí esse fascínio. E na vida real? Os meus grandes heróis são aqueles de quem a história não fala: homens e mulheres que deram (dão) tudo de si matando o cansaço, o desespero e tantas vezes a fome com um grito calado Figura histórica preferida? Jesus Cristo. Noutro plano e na história contemporânea: Mandela. Um mistério? Todas as coisas relativamente à quais só tenho perguntas e não acho respostas. Uma saudade? A de enfrentar a doença com a determinação de um sorriso. Uma memória longínqua? O meu irmão Jorge a atirar-se ao poço para ir buscar a bola com que andávamos a brincar. O meu pânico a pedir socorro ao vizinho bombeiro. Ainda a memória de um terrível domingo em que, inadvertidamente, tombei uma chaleira com água quente sobre o peito da minha prima Lola. Nós, a dor, o choro de crianças aflitas. Sei que nunca me incriminaste, porém, a cada hora, no mais íntimo de mim, te peço: perdoa-me Lolinha, irmã da minha alma. A que ponto consegue recuar mais no tempo? Aos três anos: o pai a fazer-me caracóis nos cabelos soltos, cobrindo os ombros. Enrolava pratas em colheres e garfos ligeiramente aquecidos para obter um brioso trabalho de cabeleireiro doméstico. E eu tão envaidecida com o meu cabelo e por ter um pai assim. Um sonho de adolescente? De muito jovem: o de um jornalismo livre e responsável que salvasse todos os povos da miséria, da opressão, da hipocrisia. O maior deslumbramento? O navio Império num mar sem fim levando-me, a mim e ao meu irmão Jorge, e à Lolinha, ao porto de Luanda onde, ao fim de alguns anos, voltámos a descobrir os colos dos nossos pais. Nascia o sol. Nunca os arrebatadores poentes africanos conseguiram fazer esquecer-me o sol nascente. Um cena inesquecível? No cais de Luanda, quase não reconheci o meu irmão Zé Manel, o mais velho, ido para África antes de nós. Saído da casca, abraçava o mano Jorge: ouve, pá!, vou arranjar-te uma namorada! Fiquei de boca aberta: o Zé já não fazia queixinhas de nós a ver se os pais nos castigavam para ser dele o tempo todo a andar de trotineta. Pelo sim, pelo não, apliquei-lhe, de imediato, uma canelada preventiva. Uma característica sua? Não tenho o culto de mim. Deceções que teve na vida? Desejo continuar a acreditar que a consciência será o único juiz dos valores da amizade. Traumas impossíveis de ultrapassar? Não há Freud que lhes valha! Mas o tempo, «esse grande escultor» de que nos fala Marguerite Yourcenar, é o mais precioso amparo. A paz é uma utopia? A utopia também nos ajuda a formar o carácter, tal como as emoções. Um mito que gostaria se tornasse real? Mas que fosse ao contrário do que reza a lenda, ou seja: que a rainha Santa Isabel mandasse D. Dinis dar uma curva e transformasse todas as rosas em pão. A mentira mais atroz? Toda a mentira que propositadamente distorce a verdade. Qual o seu primeiro impulso perante a violência? Encontrar serenidade para não perder a lucidez. Vota sempre por ideais ou já deu prevalência à utilidade conjuntural? Nunca inutilizei nenhum boletim de voto. Lugares onde morou? Luanda, o meu lugar de crescimento do corpo e do pensamento e onde paguei sempre renda de casa. Lugares onde esteve e voltaria? À baía de Luanda para voltar a abraçar a minha grande amiga Isa. Programas de TV a que assistia quando criança? Um espectáculo único, ao vivo: o meu pai a criar brinquedos de madeira para mim e meus irmãos, na varanda da nossa casa em Mangualde. Programas a que assiste hoje? Sou mais radiouvinte do que telespectadora. Acompanho, contudo, informação, debates, reportagens e entrevistas que me despertem interesse. A rádio faz parte do meu imaginário da infância: na casa dos tios com quem fiquei quando os pais foram para África estava horas a fio de orelha colada ao grande e velho aparelho da sala, convencida de que os meus pais iriam falar-me de dentro daquela caixa mágica. Doce imaginário! Quem lhe envia e-mails com maior frequência? O Armando Cardoso faz parte deste sítio, das nossas vidas. Obrigada, Armando. Entre tantos, tantos, enternecem-me imenso os de Graça Pires, Victor Oliveira Mateus, Maria do Sameiro, Carlos Vaz, Miguel Real, Antunes Ferreira, Gil Montalverne. E tu, meu querido Faria Artur, camarada das lides jornalísticas, envia-me sempre daqueles em que me tratas por «Maria do meu coração». Comidas preferidas? Sopa de legumes e rissóis de azeitonas acompanhados de esparregado, cozinhados por mim. Lugar em que desejaria estar agora? Aqui, nesta casa de família e amor, em Loures. Como gostaria de morrer? A escrever um poema sempre sem ponto final no último verso. Regressando, quem gostaria de ser? Dou-me bem com a minha insignificância Espero que tenha ainda tempo para...... ...dizer, sempre uma vez mais: amo-te. |
Viale Moutinho Jornalista e escritor ![]() |
NOS 25 ANOS DA MORTE DE JOSÉ AFONSO
Há precisamente 25 anos, muitos milhares de pessoas, oriundas de todos os pontos de País, despediram-se de José Afonso entoando Grândola Vila Morena. Setúbal ficou pejada de cravos. Respeitando a vontade expressa pelo poeta e cantor não houve luto nem bandeiras de partidos.
José Afonso padecia de esclerose lateral amiotrópica que o vinha minando desde há quatro anos. Médicos e amigos (ele próprio, também) sabiam que dificilmente conseguiria resistir por muito mais tempo. Sucumbiu a uma paragem cardíaca numa fase em que já estava ligado a um ventilador no Hospital Distrital de Setúbal. Uma hora depois de conhecida a notícia, da Redação do Diário de Notícias em Lisboa telefonámos ao nosso camarada José Viale Moutinho, no Porto, onde à época chefiava a delegação do jornal, pedindo-lhe uma crónica. Respondeu-nos: «Estou a escrevê-la.» Na realidade, Viale é autor de um livro sobre José Afonso, ninguém melhor do que ele poderia recordar os momentos de vivência com um amigo de todas as horas. Escolheu para tema principal do seu texto as peripécias ignominiosas por que passaram ambos numa viagem ao Brasil, então sob ditadura militar. José Afonso participaria ali num festival internacional com A morte saiu à rua - em memória do escultor José Dias Coelho, assassinado pela PIDE. Recuperamos esse texto com uma breve adenda de Viale Moutinho escrita há poucos dias, ao mesmo tempo que proporcionamos uma audição dos vibrantes três minutos de A morte saiu à rua na voz inesquecível de José Afonso. ![]() LEMBRANÇA
Quando o Adriano [Correia de Oliveira] morreu, apercebi-me de que havia no ar qualquer coisa de terrível. Mas todas as canções que vieram depois atenuaram essa impressão.
E as notícias do agravamento da doença do Zeca espaçavam-se. Eu guardava a imagem viva e intensa de ambos, dos amigos. Sobre o Adriano nunca consegui escrever um livro e os dois muitas vezes falámos disso, como é que havia de ser. Com o Zeca as coisas passaram-se diferentemente, pois em Outubro de 1972, quando viajávamos juntos para o Rio de Janeiro, onde ele participaria no Festival Internacional da Canção Popular com A morte saiu à rua, ficava no prelo uma coletânea minha dos trabalhos publicados sobre o Zeca durante a noite política. À chegada a Copacabana fomos recebidos por um contingente de Dops [Departamento de Ordem Política e Social, congénere da Pide] em número igual ao de pides no aeroporto da Portela. Enquanto o Zeca foi arrumar a bagagem, fiquei eu a responder a um homem de cabelos brancos e maneiras amáveis que queria saber como estava a bela Lisboa que ele tão bem aprendera a amar enquanto cá estivera com alguns dos seus agentes da Dops em estágio ou treino com a Pide/DGS. No dia seguinte pela manhã o Zeca levantou-se mais cedo e quando o encontrei estava a conversar com o coronel Chadek. Apresentou-mo informando que era um tipo interessadíssimo na canção popular portuguesa... e que já lhe tinha explicado que A morte saiu à rua era dedicada à memória de José Dias Coelho, quem era José Dias Coelho, que... Bem, sem mais delongas disse-lhe que o sujeito era coronel da Dops. Os dias seguintes foram pródigos em problemas: para ele era o inferno de em cada meia hora lhe ligarem o telefone para o quarto para que não pudesse dormir, o cancelamento de conferências de imprensa, a batota na votação do Festival, os músicos "apalavrados" que abandonavam os ensaios obrigando a improvisos que só não fariam fundo pela prática que tínhamos daqui de Portugal, dos recitais que se armavam num repente para também de pronto serem interrompidos pela polícia ou por um "peditório" para a "Comissão de Apoio aos Presos Políticos." O Zeca vinha de outros tempos, tinha muita força. O primeiro disco que publicou, nunca o vi mas ele contou-me. Foi em 78 rotações por minuto. Em 1960 começou a publicar EP's com baladas e fados de Coimbra. Mas a atenção policial começou a apontá-lo a partir do Rapsódia 218 com Os Vampiros e o Menino do Bairro Negro, acentuando-se progressivamente até que um dia: Grândola, Vila Morena... E em 1975, na introdução ao livro que publiquei sobre o Zeca, contava-o: ... José Afonso chega com a guitarra, os textos das canções e a boina. Aproximam-se alguns, falando-lhe em voz baixa, com certo tom secreto. Zeca diz que está um pouco afónico, mas acaba por cantar, com um dos espetadores ao lado segurando as folhas para que se não esqueça dos versos. Agora, como ao Adriano, vão tocá-lo muito na rádio. Possivelmente como nunca. ADENDA EM FEVEREIRO DE 2012 Afinal, afinal... não tocaram! Ainda havia quem tinha contas a ajustar com as cantigas! Há sempre uns que comem tudo... V.M. A MORTE SAIU À RUA Faça "play" para ouvir ![]() José Afonso: monumento em Grândola (fragmento) da autoria do escultor António Trindade |
![]() http://opodaescrita.blogspot.com/ ![]() |
![]() O TORMENTO DA NEVE Numa cadeira de rodas que não rodava Vi uma mulher coroada por uma montanha de neve. Na relva do tapete uma criança de joelhos Com um pássaro morto no centro da cabeça. É ela que escreve esta página suja de terra Com pancadas vivas de violência de sangue e uma gazela. Não sei se Deus estava presente ou chorava Mas as janelas sem estrelas e esta beleza sem nexo Gritaram ouro cortado entre os dedos e o sexo Cuspiram enxofre para dentro do poema. Maria Azenha (2012 - Janeiro) ![]() À FRESCA SOMBRA DA ÁRVORE DA VIDA A propósito de A Sombra da Romã, de Maria Azenha Uma leitura O Senhor Deus plantou um jardim no Éden, no Oriente. Além disso, colocou a árvore da vida no meio do jardim, e também a árvore do conhecimento do bem e do mal. Génesis Ao contrário do Génesis, que não nos diz de que qualidade era a árvore da vida, neste caso sabemos que é uma romãzeira, aqui transformada em romã por um processo de estilo. O estilo é a alma da poesia. Na poesia, o estilo é símbolo. São 51 poemas, ou 51 bagos de romã. Ou 51 romãs? Ou cinquenta e uma romãzeiras? Ou cinquenta e um jardins? Talvez cinquenta e um Édens com suas cinquenta e uma sombras. Porque para cada árvore da vida existe uma árvore do conhecimento do bem e do mal. Para que possa ser reconhecida a vida. Estes poemas dispõem-se a ser lidos como quisermos ou como soubermos. Como pudermos. Saboreei os bagos como bafos, alguns como desabafos. Todos, como palavras para falar do impossível, como a chama que há no som, ou o sangue que há no sol, o orvalho que há no peito. Falam da natureza profunda ou alquímica das coisas. Do perfume ou essência do mundo. Curtos, incisivos, cirúrgicos, experiências de lampejo que são e que proporcionam. Para quem se atrever a olhar a luz que não se limita a iluminar, mas incendeia. Falam de sol, mas também da via que até ele conduz: o luar, os sonhos e a noite, o caminho mais direto para a luz. Este livro abriu-me horizontes e mostrou-me outros mundos. Num deles, apercebi-me da nunca antes pensada semelhança musical entre as palavras língua e alaúde. Mais uma vez confirmo o que o meu coração sempre soube: que para além de todas as discussões científicas e as tendências que vão estando alternadamente na moda, quem olha a linguagem a partir de dentro, como uma criança ou um poeta, sabe que ela não é aleatória. Língua e lábios são alaúdes. Não duvido. Deus não joga aos dados, mais uma vez se prova. Portanto, estes poemas podem também ser lidos como um pequeno tratado poético sobre a natureza das coisas e da linguagem. Ou um livro particular de estudo: «Estudo segredos». E não será o mesmo? Por outro lado, ocorreu-me que se eu tivesse de pintar ou de alguma forma representar estes poemas, fá-lo-ia com baixos-relevos de rendas, ouro e prata, incrustados de pequenos sinais de natureza, como bagos de romã, rebentos de ervas, salpicos de espuma da milionésima onda da praia ou gotas de orvalho. Seria obra de um instante. Porque há uma beleza que brilha assim. Mas regressemos ao que diz. Observamos que mesmo no amor, isto é, no mundo, o grande palco de aprendizagem do amor, esta poesia aceita a guerra, não procura obsessivamente a luz. Sabe que é essa uma forma divina de aprender a encontrá-la. Os versos têm olhos. Os olhos possuem uma visão profunda, como um raio X, veem e dão a ver para lá do que do poema se vê; ouvem e dão a ouvir para lá de todos os sons; pressentem e fazem pressentir para lá dos sentidos. Como toda a boa poesia amorosa é mística. Como toda a boa poesia mística é amorosa. E geométrica. O círculo é a forma e o perímetro são os sonhos. Quanto aos planos de Deus, esses são desenhados a traços de rostos. É da transfiguração, ao modo de Alice, com planetas que fulminam, e flores que nascem nos cabelos, que esta poesia se sustenta. Para exemplificar a beleza oculta do mundo, não encontro melhor imagem do que um «cântaro de sol que no deserto derrama linho e mel» ou uma boca onde «as aves fazem ninho». Mas talvez este livro tenha sido escrito para alertar o mundo para o maior dos cuidados, para o único necessário cuidado: «Sinto o perigo de passarmos perto das crianças, / De semearmos destroços de gelo no seu peito.» Somos as crianças. Sempre fomos. Enchendo de gelo os nossos próprios peitos. Que o fogo da beleza, através daquilo a que poderíamos chamar a consciência poética, possa derreter este gelo antigo e substituí-lo por romãs doces, maduras e tenras. Que assim seja. Cheguei à última página. Regresso ao início. Mas agora, só eu e os bagos da romã. Digo, os jardins e suas sombras. Risoleta Pinto Pedro ![]() |
José Alberto Braga Jornalista e escritor.
|
![]() LER E ASSINAR: http://www.peticaopublica.com.br/PeticaoVer.aspx?pi=camoes Nota: o cômputo de assinaturas não integra o manifesto paralelo subscrito exclusivamente, há poucos dias, por 59 escritores portugueses. Seria desejável que essa lista, encabeçada por Manuel Alegre, fosse adicionada à Petição brasileira, onde constam igualmente numerosas figuras da nossa cultura ![]() CAMÕES, O NAUFRÁGIO DA LIVRARIA Nos últimos anos, a INCM não tem tomado qualquer atitude que beneficie a sua livraria. Vem exercendo influência no sentido da sua extinção. A inércia tem sido absoluta Além das agremiações associativas luso-brasileiras, que obviamente atuam num outro segmento, Portugal tem no Rio de Janeiro duas grandes instituições culturais: o Gabinete Português de Leitura e a Livraria Camões. Fundado em 1837 por comerciantes em geral, ou seja, pessoas emigradas e sem grandes conhecimentos de ordem literária, o Gabinete é hoje a segunda biblioteca do Rio de Janeiro (apenas superada pela Biblioteca Nacional brasileira), incluindo no seu acervo cerca de 350 mil livros. Já a Livraria Camões atua de forma diversa, mas tornou-se também um instrumento cultural não menos valoroso para o nosso país. Pertencente à Imprensa Nacional – Casa da Moeda (INCM), durante mais de cinquenta anos destacou-se como referência na venda do livro português, consequentemente da sua divulgação. Impulsionada por gestores capazes e criativos (lembro-me de Braz Teixeira e Vasco de Graça Moura, por exemplo), a INCM fomentava políticas de estímulo junto aos editores portugueses para que estes enviassem os seus livros para a Livraria Camões, a qual, por sua vez, repassava comercialmente tais obras para todos os cantos do Brasil. A relação comercial entre a INCM e as editoras portuguesas, via Livraria Camões, que eu saiba nunca foi posta em causa. Durante os anos que durou tal parceria, todos viviam satisfeitos. Entretanto, a nossa cultura agradecia. José Estrela: 30 anos a divulgar a nossa cultura Na gerência da Livraria Camões há mais de trinta anos, José Manuel Estrela, aveirense de Pardilhó, revelou-se um batalhador incansável da causa. Estrela não se limitava a comercializar os livros. Ele próprio criou um boletim literário mensal (o qual tive a satisfação de dirigir) e trazia até nós alguns dos melhores escritores para o lançamento dos seus livros, como Agustina Bessa-Luís, João Aguiar, António Lobo Antunes, Arnaldo Saraiva, David Mourão-Ferreira, Lídia Jorge, José Saramago e tantos outros. Os livros editados em Portugal chegavam ao Brasil em poucos dias e, desta forma, os leitores, especialmente os estudantes universitários, estavam permanentemente atualizados com os títulos publicados. Creio que foi em meados dos anos noventa que a situação começou a mudar. Como acontece em casos tais, vários fatores contribuíram para que isso acontecesse. Algumas editoras brasileiras publicaram autores portugueses (os mais conhecidos, naturalmente). Ao mesmo tempo, as sequentes administrações da Imprensa Nacional deixaram de prestar o mesmo atendimento às editoras portuguesas e a confiança do sistema rompeu-se irremediavelmente, somando-se a tudo isso outros fatores de ordem subjetiva, que sempre aparecem nessa hora de negar o trabalho feito e prejudicar o futuro do mesmo. Por outras palavras, os livros não vinham e os livreiros brasileiros começaram a importar os livros diretamente de Portugal. A importar sim, mas cada vez menos, cada vez menos... A proprietária (INCM) não fornece as próprias edições Na última década, para desespero de José Estrela, rareava a chegada dos livros pedidos. Hoje em dia – ironia das ironias – não se consegue encontrar um só livro dos que são editados pela Imprensa Nacional, embora a livraria pertença a esta instituição do Estado português. Nos últimos anos, a INCM não tem tomado qualquer atitude que beneficie a sua livraria. Vem exercendo influência no sentido da sua extinção. A inércia tem sido absoluta. Agora, em Lisboa, um certo administrador da INCM resolve poupar alguns euros ao Estado, e pronto, corta-se a Livraria Camões do Rio de Janeiro e a Pátria fica salva no dia seguinte... Atualmente virou moda cortar na despesa para equilibrar as combalidas finanças lusas. Em muitos casos nada a opor, muito menos em tantos outros assuntos onde o Governo não chega a estender a sua malha. Mas casos há, e este é um deles, onde o erro é crasso e grosseiro. Não há dúvida que a manutenção da Livraria Camões no Rio de Janeiro, por meio de uma outra política, abrangendo uma melhor informatização, o facebook, twitter, mail e tantos outros recursos modernos, permitiria a rentabilização da livraria e o interesse revigorado das editoras portuguesas, com benefícios naturais para os leitores, autores e a nossa própria cultura. Mas tudo isso dá muito trabalho e, se me permitem a deturpação da frase, "adiar é preciso, viver não é preciso". Pois é, enquanto os velhos do Restelo mantêm o pessimismo e o nada fazer, Camões, ele mesmo, agora transformado em livraria, ameaça naufragar novamente, desta vez na praia de Copacabana. Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 2012 |
Jorge Reis-Sá Escritor e editor ![]() |
![]() «SE NÃO FOSSE ISTO, ERA OUTRA COISA» (Cameron Crowe) Trocaria de bom grado o seu primeiro nome?
Nunca trocaria o último. Quantidade de velas no seu último aniversário? Trinta e quatro. Tatuagens? Um dia. Piercings? Só nos outros. Já foi a África? Estive lá muitas vezes: nos livros do Kapuscinsky ou nas aulas de Biologia do Homem, por exemplo. Já ficou bêbado? De amor. Já chorou por alguém? Muitas vezes e a maior parte delas pela mesma pessoa. Praia ou campo? Praia. Peixe ou carne? Carne. Cerveja ou champanhe? Jói laranja. Metade cheio ou metade vazio? Sempre metade cheio, mesmo quando mais parece metade vazio. Lençóis de cama lisos ou estampados? Muitas saudades da necessidade dos de flanela. Música preferida? No distance left to run, dos Blur. Filme preferido? O Padrinho, nas suas três partes. Flor preferida? A Ana. Qual o animal que lhe merece mais simpatia? O Homem. Melhor refrigerante para os dias de calor? Jói laranja. Qual dos seus amigos vive mais longe? O Eucanaã. Quantas vezes deixa tocar o telefone antes de atender? Três. Qual a imagem do seu telemóvel? O Guilherme. Pior do mundo humano? A sua própria natureza. E o melhor? A sua própria natureza. Acredita na vida extraterrestre? Sim, e com a mesma certeza que acredito na terrestre. Um feito de que se orgulhe? O Guilherme, todos os dias. Última coisa que faz antes de dormir? Fechar os olhos. Qual o primeiro pensamento ao acordar? O Guilherme. O que tem debaixo da cama? Lençóis e toalhas, devidamente engavetadas. O que nunca tira? A aliança. Que dom da natureza desejaria possuir? Contento-me com os que tenho. Tem um lema de vida? Sigo os ensinamentos de um argumentista da escola russa, Cameron Crowe: «Se não fosse isto, era outra coisa». Escritor, editor… o que dá mais? Confundem-se diariamente sem nunca se confundirem profissionalmente. Que livro está a ler? The End de Ian Kershaw. Um herói de ficção? O Manuel Augusto. E na vida real? O meu Pai. Figura histórica preferida? O meu Pai. Um mistério? Não há mistérios, só coisas que o tempo ainda não nos permitiu aprender. Uma saudade? Do meu Pai. Uma memória longínqua? A do poema O cachecol bege no muro da Foz. Um sonho de adolescente? Tocar em Wembley com a Yamaha 9000 que o Roger Taylor usou em 1986. O maior deslumbramento? O Guilherme. Uma característica sua? «Afinal o que importa não é a literatura.» Deceções que teve na vida? Muitas e importantes. A paz é uma utopia? E a guerra também. Um mito que gostaria se tornasse real? A realidade já tem mitos que cheguem. A mentira mais atroz? A descarada. Qual o seu primeiro impulso perante a violência? Proteger o Guilherme. Vota sempre por ideais ou já deu prevalência à utilidade conjuntural? Voto sempre. Lugares onde morou? Famalicão, Porto e Lisboa. Lugares em que esteve e voltaria? Rio de Janeiro. Programas de TV a que assistia quando criança? Tempo dos Mais Novos. Programas a que assiste hoje? Ser "crítico" de televisão na Sábado impede-me, por decoro, de enumerar todos eles. Quem lhe envia emails com maior frequência? Aquele senhor da Nigéria. Comidas preferidas? Arroz à cabidela da minha avó. Lugar em que desejaria estar agora? Estou onde quero. Como gostaria de morrer? De olhos abertos, com a Ana e a família do meu filho ao meu lado. Regressando, quem gostaria de ser? Eu outra vez. Espero que tenha ainda tempo para... acordar amanhã. ENTREVISTA A JORGE REIS-SÁ (2004) ![]() OBRAS DE JORGE REIS-SÁ APRECIADAS NESTE SÍTIO ![]() |
Graça Pires Escritora ![]() |
![]() QUASE LÁGRIMAS |
Carlos Ademar Criminologista e escritor ![]() |
UM SUSTO DE MORTE ![]() Há muitos anos, recebemos uma comunicação no piquete dando conta que uma senhora bastante idosa, vivendo apenas com um papagaio falante e uma dúzia de gatos, fora encontrada morta em casa. O fotógrafo, o técnico das impressões digitais e eu avançámos para o local. Antes, porém, através do telefone conseguimos apurar que a senhora era de riso fácil e não lhe eram conhecidos inimigos. O marido falecera há anos e desde então passou a viver sozinha com os seus animais de estimação. Habitava o primeiro andar de uma casa antiga com apenas dois pisos. No rés-do-chão funcionava a mercearia do senhor Andrade, velho conhecido e seu fornecedor. De resto, por dificuldades de locomoção, a velha senhora vinha à janela com um cabaz de verga preso a uma corda, dizia ao merceeiro o que precisava, ele colocava os produtos e a conta, ela puxava e na viagem seguinte do cesto, mandava o dinheiro para pagar. A sua relação com o mundo não ia muito além destes contactos de janela, já que não tinha visitas nem familiares próximos. Foi o senhor Andrade que, estranhando não a ver há uns dias, resolveu telefonar para a polícia. Face à ausência de resposta aos toques de campainha, a PSP chamou os bombeiros para arrombarem a porta. O odor que se libertou foi suficientemente esclarecedor. A senhora estava morta dentro de casa. O ar pestilento inundara toda a escadaria interior pelo que à chegada da PJ o único elemento da PSP presente aguardava à porta do edifício. Avançou escadas acima o fotógrafo com a máquina em riste, seguindo atrás o colega das impressões digitais e depois eu. A casa era acanhada, mal iluminada, com mobiliário antigo, pobre e escuro, e as paredes apresentavam extensas manchas de humidade de várias tonalidades. Passámos pela sala, daí para a cozinha e depois por um corredor que desembocava no quarto, a fonte de todos os maus odores. Nos tampos de todos os móveis havia gatos, não em porcelana, mas bem vivos, que iam movendo a cabeça para acompanharem a passagem dos intrusos. Os mais afoitos começaram a descer e a roçar-se nas pernas de quem queria despachar o trabalho para rapidamente regressar a um cenário e atmosfera mais agradáveis. O cadáver estava sobre a cama e apresentava já uma coloração escura, típica da putrefação que se instalara. A exemplo das restantes divisões, o quarto era pequeno e escuro, até porque a pequena janela se encontrava fechada e tinha o cortinado corrido. A única lâmpada pendente do teto, de fraca potência, de pouco adiantava. O fotógrafo foi disparando e os flashes sucediam-se enquanto eu e o das impressões digitais, sem trocarmos palavra íamos especulando mentalmente sobre o que se teria passado. O cadáver tem um certo magnetismo ao ponto de os nossos olhos, vencido o primeiro embate, dificilmente conseguirem libertar-se dele. O silêncio estava em sintonia com a penumbra e apenas era profanado pelos disparos da máquina. De súbito, umas gargalhadas estridentes e prolongadas de mulher velha ecoaram por toda habitação. Um impulso vindo sabe-se lá donde impôs-nos que ficássemos rapidamente longe dali e num ápice, sem olharem para o lado, os meus colegas correrem porta fora. Por mim ainda dei o primeiro passo para lhes seguir o rasto, porém, ao olhar o percurso da fuga, a um canto do quarto deparei com um poleiro de papagaio com o respetivo locatário a fazer uma demonstração competente dos seus talentos. A senhora morrera devido a enfarte, para nós foi um susto de morte. |
Henrique Antunes Ferreira Jornalista Antigo chefe da Redação do Diário de Notícias ![]() |
![]() NELSON MANDELA É O MEU HERÓI NA VIDA REAL Trocaria de bom grado o seu primeiro nome?
Não, gosto deste. Quantidade de velas no seu último aniversário? ![]() Imagem de resposta enviada pelo Convidado Tatuagens? Nem pensar. Piercings? Nem pó.. Já foi a África? Já vivi em África, e gostei. Já ficou bêbado? Sim, mas muito poucas vezes… se me consigo recordar. Já chorou por alguém? Sim, e por diversos motivos. Mas não sou choramingas… Praia ou campo? Campo, sem dúvida. Peixe ou carne? Sou um verdadeiro carnívoro, adoro o porco bísaro. Música preferida? Fado. Cerveja ou champanhe? O que é cerveja? Joga na Liga… Sagres? Metade cheio ou metade vazio? Cheio até aos bordos; não ponha, que eu bebo. Lençóis de cama lisos ou estampados? Tanto me dá como me deu. Já dormi sem lençóis e não senti falta deles. Filme preferido? A Canção de Lisboa, com a Beatriz Costa, o Vasco Santana e o António Silva; sem droga nem sangue, nem sexo. Flores preferidas? Malmequer. Qual o animal que lhe merece mais simpatia? O cão, ainda que não tenha nenhum. Mas, em puto, tive vários cocker spaniel. Melhor refrigerante para os dias de calor? Uísque com soda e vinte quilos de gelo – por copo… Qual dos seus amigos vive mais longe? Uma, na Austrália. Já lá fui e é longe pra burro. E anda-se de cabeça para baixo. Quantas vezes deixa tocar o telefone antes de atender? Tento atender logo; mas… Qual a imagem do seu telemóvel? Os meus quatro netos e a neta. Pior do mundo humano? Desumanidade. E o melhor? Viver. Acredita na vida extraterrestre? Acredito na vida terrestre; não acredito no Céu nem no Inferno. No que existe na Terra, nisso, acredito, infelizmente. Extraterrestres? Já chegam os intraterrestres... Um feito de que se orgulhe? Palavra que não me lembro… Última coisa que faz antes de dormir? Colocar a máquina por mor da apneia. Qual o primeiro pensamento ao acordar? Onde deixei os chinelos…? O que tem debaixo da cama? Um cofre-forte. Vazio. O que nunca tira? A cabeça, ainda que o senhor Pinto da Costa já a tivesse pedido numa bandeja, tal como a do S. João Baptista. Que dom da natureza desejaria possuir? A calma de um poente de Goa. Tem um lema de vida? Não ter vergonha de mim próprio. Que livro está a ler? Reler: Bichos, do que devia ter sido o nosso Nobel, Miguel Torga. Um herói de ficção? Capitão Nemo no seu Nautilus. E na vida real? Nelson Mandela. Figura histórica preferida? Repito, se não se importam: Nelson Mandela. Um mistério? Será que os meninos vêm de Paris no bico de uma cegonha? Uma saudade? Do meu Pai Henrique; mas não sou de saudades. Uma memória longínqua? Quando caí de uma figueira, tinha cinco anos… e parti a cabeça. Que assim ficou até hoje. Um sonho de adolescente? Ser jornalista. E sou. O maior deslumbramento? O pôr-do-sol em Goa e em África. Uma característica sua? Gordo-perfeccionista. Deceções que teve na vida? Umas quantas. Mas não digo, porque sou muito envergonhado, tímido e pudico. A paz é uma utopia? Não. Tem de existir, doa a quem doer. Mas, infelizmente… Um mito que gostaria se tornasse real? Essa mesma, a paz. A mentira mais atroz? Odeio todas as mentiras. Vota sempre por ideais ou já deu prevalência à utilidade conjuntural? Sempre por ideais; mas a vida é madrasta e dificilissimérrima. Lugares onde morou? Lisboa, Luanda, Pangim, Madrid… e chega, já são muitos. Lugares em que esteve e voltaria? Espero voltar: Goa. Programas de TV a que assistia quando criança? Quando era criança (palavra que já fui, ainda que não se note) felizmente ainda não havia TV em Portugal. Programas a que assiste hoje? Futebol, rugby e musicais sem lamechas. Já não aguento telejornais; mesas redondas e debates – abomino. Quem lhe envia emails com maior frequência? Tenho mais de 1500 correspondentes, mas todos os dias só uns quantos. Sei lá… uns vinte e tais. Pratos preferidos? Cozido à portuguesa, muamba e sarapatel, cada cor seu paladar. Lugar em que desejaria estar agora? Em Goa. Sou mais goês do que os goeses. Como gostaria de morrer? Acordar morto. Regressando, quem gostaria de ser? Nelson Mandela, sou mesmo admirador dele, como se pode ver. Espero que tenha ainda tempo para... … escrever umas coisas… ENTREVISTA A HENRIQUE ANTUNES FERREIRA (2008) ![]() |
![]() |
OUTONO: TRÊS OLHARES EM FAMÍLIA
Nota prévia. Para se compreender a razão de aparecerem neste espaço três convidados (com um apelido comum e mediático) será necessário recuar alguns anos, exatamente ao momento da atribuição a André Letria do Prémio Nacional de Ilustração (mais tarde ganharia também, entre outros, o Prémio Gulbenkian), quando já se firmava como nome maior nas artes plásticas e sobremaneira no âmbito da ilustração de livros para crianças. A distinção justificou a entrevista que lhe fizemos e publicada no "Diário de Notícias". Quisemos que nos descrevesse o ofício de ilustrador. Ou seja, o modus operandi da conceção de uma imagem gráfica inspirada num texto poético ou narrativa ficcional. André Letria disse-nos:
«O ilustrador deve ser capaz de pegar no texto, entrar nele, percebê-lo, desmontá-lo e reconstruí-lo numa outra dimensão criativa.» Explicação objetiva, cristalina. Tanto que a remetemos agora para dois homens da escrita, o pai José Jorge e o tio Joaquim, ligeiramente reformulada: O escritor deve ser capaz de pegar na ilustração, entrar nela, percebê-la, desmontá-la e reconstruí-la numa outra dimensão criativa. Em anexo fizemos seguir a belíssima e surpreendente imagem que, a nosso convite, realizou para este espaço. Sendo o Convidado um artista não se espera que escreva, antes que… crie arte. Sugerimos o Outono recém-chegado. O tema entusiasmou-o de imediato. José Jorge Letria e Joaquim Letria aceitaram o desafio. O resultado aí está. Dois textos magníficos, interpretando, complementando (ilustrando?) a obra do filho e sobrinho. A equipa autoral José Jorge Letria / André Letria, fundada numa admirável cumplicidade e sentido de partilha, existe há muitos anos. Frequentes vezes o André ilustrou os livros do pai. Agora invertemos-lhes os papéis, com o tio Joaquim a entrar também na dança… Comecemos então pelo frontispício de honra – a imagem criada por André Letria: OUTONO
Um certo olhar de José Jorge Letria (TEXTO SUSCITADO PELA CRIAÇÃO DO FILHO ANDRÉ) ![]() Ampliar imagem Um homem junto de uma árvore nunca está só. Tem com ele a sombra, a elegância do tronco e dos ramos alongados em direção ao céu, ao do dia e ao da noite. É como se o homem dissesse: "A minha solidão é sempre um ato de partilha, pois tenho a companhia de uma árvore para sentir comigo o desconsolo dos dias vazios". O homem podia estar à espera de Godot ou apenas da palavra Fim, a rematar um breve texto em que se fala de tudo e de nada, a propósito de afetos. Depois o tempo começa a correr contra o homem. Caem as folhas, os sonhos e, às vezes, também as lágrimas, a que a Lua empresta a coloração baça e esquiva das pérolas. O homem pede ao ilustrador que o retrate tal como é e como sente. E lá está ele a cair devagar, ao ritmo das folhas e das ilusões perdidas. O homem entristece, mesmo às portas do Outono, que é uma casa velha e silenciosa, onde tudo declina menos a visita matutina do agasalho do Sol. O homem procura sinónimos para a palavra Outono no dicionário dos vocábulos magoados. E só um lhe ocorre: velhice. A árvore despe-se devagar, na mais contida tristeza, como se quisesse dizer ao homem: "Comigo a teu lado a solidão é menos agreste e dolorosa". Tudo cai com delicada precisão acompanhando o movimento das folhas. Tudo cai, até o casulo das ideias e das imagens. Tudo cai e tudo se transforma, no coração do homem e da vida. Olhado a partir do tapete de folhas mortas, o homem parece mais alto e esguio, mais perdido, mais próximo do desenho de uma árvore nua. Alguém dirá dele um dia: "Partiu assim de repente, num dia de Outono, e tinha tantas coisas bonitas e sempre adiadas dentro da cabeça". OUTONO
Um certo olhar de Joaquim Letria (TEXTO SUSCITADO PELA CRIAÇÃO DO SOBRINHO ANDRÉ) ![]() Ampliar imagem Este Outono de André Letria tem uma vantagem vital no trabalho do ilustrador: é inteirinho da sua criatividade e não foi condicionado por nenhum texto, ideia, ou subalternidade a palavras muitas vezes menores que o levam – como ele próprio explica – a ter de desconstruir para se meter lá dentro e reconstruir todo um discurso e outra visão duma conceção que é a sua. Desta vez, deram-lhe um mote. E ele que se amanhasse como se amanhou, e bem! Se o Outono é o cair da folha, para alguma gente também pode ser o bastante para perder a cabeça. E com as suas cores quentes, os seus dourados e vermelhos, o Outono é uma estação quente, só vista com tristeza por quem contempla a natureza prisioneira dos jardins amestrados, sem a viver à solta, pelos campos, da queda da folha ao rebentar das flores e à explosão dos frutos, tudo o que afasta a sombra dum baraço ao pescoço e uma vida que se pendura do ramo duma árvore. As ilustrações de André Letria enriquecem-nos. Porque como aconteceu com as iluminuras nos velhos livros, não só nos ilustram como valorizam os textos de quem juntou ali as palavras, a ponto de serem hoje elas a resistirem e darem valor às obras. Quem sabe se não será para repor a correção e justeza na hierarquia entre texto e ilustração que tanta gente que agarra numa publicação ilustrada a valoriza sem saber, justificando-se, depreciativamente, na sua ignorância… que está só "a ver os bonecos"… . ![]() AUTOR DO MÊS • ANDRÉ LETRIA As nossas entrevistas a André Letria, José Jorge Letria e Manuela Alves (autora de um livro infantil ilustrado por André Letria): Grandes Entrevistas Quem tenha interesse em conhecer melhor o artista e a obra não poderá deixar de fazer as visitas seguintes: www.andreletria.pt http://andreletria.blogs.sapo.pt http://bloguedopato.blogs.sapo.pt www.pato-logico.com |
Mário Cláudio Escritor ![]() |
O FUTURO A QUE TEREMOS DIREITO O homem tem hoje consciência das suas misérias e de remédios para as evitar. Ainda não atingiu a fase de evolução que lhe permita sobrepor-se a essas misérias, por exemplo, à miséria que transforma o homem em inimigo de si próprio. Há uma espécie de bússola que nos indica o caminho, mas a progressão será sempre com avanços e recuos. Estamos numa fase de grandes recuos. O retrocesso deve-se ao esquecimento de certos valores, alguns deles muito presentes nos anos sessenta: pacifismo, solidariedade, superação de conflitos rácicos, liberdade. Foram substituídos por ideários retrógrados: fundamentalismos e o económico a comandarem aquilo a que poderíamos chamar, genericamente, o moral. Esse outro tempo foi marcado por uma presença constante, mas nem sempre autoconsciente, dos chamados "líderes de opinião". De Che Guevara a Bob Dylan, passando por João XXIII, o do Concílio, havia-os para todos os gostos. O estilhaçamento dessa conjuntura humana que possuía muito de tribal, mas que se identificava pelo "rosto", traria funestas consequências. A burocratização do poder, apoiado na energia do capital e na autoridade da guerra, precipitaria a desfocagem da pessoa e a atual desorientação. Se as figuras carismáticas contam a seu favor com uma espécie de mitológica eficiência, suscetível de parir vários tipos de monstro, a massa anónima desconhece-se a si mesma, tornando-se assim presa fácil de múltiplas eminências pardas. Descobrir o equilíbrio entre uma e outra pulsão, eis o que determinará o futuro a que teremos direito. ![]() A ESCRITA DE MÁRIO CLÁUDIO AVALIAÇÃO DE VIVA VOZ PELO PRÓPRIO ![]() ENTREVISTA A MÁRIO CLÁUDIO (2003) ![]() |
Teresa Paiva Neurologista e escritora ![]() |
![]() ANTES DE DORMIR SONHO UM POUCO Trocaria de bom grado o seu primeiro nome?
Não. Quantidade de velas no seu último aniversário? Duas. Tatuagens? Não, nunca. Piercings? Chegam os furos nas orelhas. Já chorou por alguém? Muitas vezes. Praia ou campo? Campo e mar. Peixe ou carne? Ambos. Música preferida? Leonard Cohen, Amália, Mozart. Cerveja ou champanhe? Champanhe. Metade cheio ou metade vazio? Metade cheio. Lençóis de cama lisos ou estampados? Bonitos. Filme preferido? Visconti: Os Danados. Flor preferida? Orquídea Qual o animal que lhe merece mais simpatia? Gato Melhor refrigerante para os dias de calor? Água fresca. Qual dos seus amigos vive mais longe? Uma filha. Quantas vezes deixa tocar o telefone antes de atender? Inúmeras. Qual a imagem do seu telemóvel? Um malmequer. Pior do mundo humano? O ódio. E o melhor? O amor e a esperança. Um feito de que se orgulhe? Ter feito uma pega no Campo Pequeno. Última coisa que faz antes de dormir? Sonhar um pouco Qual o primeiro pensamento ao acordar? Que bom! O que nunca tira? Nada. Que dom da natureza desejaria possuir? Cantar. Tem um lema de vida? Mistura entre o "Desir" e o "Talent de bien faire".. Que livro está a ler? A Família Desaparecida de Jesus. Um herói de ficção? Robin dos Bosques. E na vida real? Os heróis que incognitamente fazem bem pelo mundo fora. Figura histórica preferida? Afonso Henriques e D João II. Uma saudade? Talvez do amor. Uma característica sua? Frontalidade. Deceções que teve na vida? Muitas, com amigos. Lugares onde morou? Lisboa e Utrecht. Lugares em que esteve e voltaria? Las Vegas, Paris (sempre Paris), Mar Negro e delta do Danúbio. Programas de TV a que assistia quando criança? Não havia ou não me lembro. Já era adolescente quando veio a televisão. Programas a que assiste hoje? Quase nenhuns. Quem lhe envia emails com maior frequência? Colegas sobre trabalho científico, alunos e jornalistas. Comidas preferidas? Gosto de quase tudo. Lugar em que desejaria estar agora? Onde estou. Como gostaria de morrer? Tranquila. Regressando, quem gostaria de ser? Não sei. Espero que tenha ainda tempo para... …escrever mais uns livros. |
Baptista-Bastos Jornalista e escritor ![]() |
JOSÉ ANTUNES, O REPÓRTER DO ROSTO HUMANO Homenagem a um grande fotógrafo esquecido José Antunes foi o grande repórter do rosto humano. Possuía o dom, raríssimo, de fazer com que a câmara se comovesse na fixação do instante supremo em que o rosto humano adquire o registo de uma discreta intemporalidade. Uma certa maneira de olhar – direi. Uma certa maneira de transmitir a ternura que, por vezes de forma subjetiva, reside e povoa no vulgar quotidiano. Entre José Antunes e Lisboa manifestava-se uma cumplicidade feita de mil e uma conivências. Não era a cidade imediatamente retratada; sim a cidade reinventada, sentida, com odores e matizes, com a claridade de uma luz muito mais entrevista do que realçada com veemência. A arte de José Antunes consistia nessa invulgar união entre analogia, metáfora e realidade. Uma cidade cheia de olhar. Cheia do olhar de José Antunes que, entre a contingência e a necessidade, optava por essa via admirável que era a de pessoalizar o seu próprio mundo, singularizar a sua própria cidade. As fotografias de José Antunes envolviam um intenso trabalho. Trabalho de amor. Trabalho de paixão. A minudência de certas atmosferas captadas por este homem que converteu a câmara fotográfica num objeto recriador pertence aos domínios da grande arte. Exatamente porque, transfigurando sem desfigurar, José Antunes conferiu a Lisboa e a quem cá vive uma outra dimensão, uma nova grandeza. Grandeza e dimensão que se constituem como a homenagem de um homem generoso e bom aos outros homens. Uma cidade cheia de olhar. Desse olhar que é a imagem devolvida de nós mesmos – e, simultaneamente, uma declaração de amor a Lisboa. ![]() José Antunes, de quem reproduzimos uma das suas belas imagens, faleceu em 29 de maio de 2004. Ingressou no jornalismo profissional em 1960 e nos últimos anos de vida todos os camaradas de ofício tratavam-no por "Mestre". O poeta da fotografia era igualmente um extraordinário repórter. Celebra-se neste momento o 20º aniversário de uma iniciativa empreendida pelos seus amigos e que teve o apoio do Pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa: a edição de um esmerado álbum reunindo as suas melhores fotografias. A realização desta obra foi pretexto para homenagens que fotógrafos de todo o País prestaram a José Antunes, em 1991, na Casa da Imprensa e na Associação Portuguesa de Arte Fotográfica. O livro deveria representar o ponto de partida para uma grande exposição no Palácio de Galveias, em Lisboa, a qual, porém, nunca chegou a realizar-se. |
Leonor Xavier Jornalista e escritora ![]() |
PORTUGAL Esta manhã espreitei uma nesga de rio, quando abri a minha janela. Sempre que vejo o Tejo assim, azul em dia azul, respiro fundo a graça de Deus que me fez nascer nesta cidade de Lisboa e neste meu país Portugal. Que foi milagre assim inventado na hora da Criação, como costumo dizer aos viajantes que nos visitam, meus amigos, companheiros, irmãos, a partir do momento em que cumprimos o primeiro encontro marcado num canto qualquer de Lisboa, e uma cumplicidade entre nós então se faz, definitiva. Porque a contemplação de Lisboa leva às conversas sem fim sobre nós e os outros, apaga-se a medida das horas no que vamos falando sobre as diferenças e misturas e contrastes, sobre os casos de gente e os episódios da História. Pois não é verdade que somos o país mais pequeno da Europa, o mais antigo e definido, o mais variado, o ponto de encontro, o cais de chegada e despedida, meio caminho entre os cantos mais opostos do vasto mundo? Atravessei a minha rua, sinto o sossego da manhã de Lisboa a começar, penso que nós, portugueses, também somos desde sempre viajantes. Porque tanto viajámos, somos por tradição o país do afecto e do bem querer, na curiosidade pelos outros que disfarçamos na prudência das primeiras palavras e logo depois abrimos na generosidade imensa da nossa maneira de ser. Generosidade que permanece nos dias de hoje, muito além da frieza, da distância ou da violência que vai marcando as cidades, por toda a parte. Talvez porque a nossa medida de terra seja pequena de mais em face da linha do horizonte sobre o mar português, somos dados à imaginação, à fantasia, ao sonho. A aventura da distância, as mudanças de vida, os percursos pelo desconhecido são mistério, desejo, consagração de coragem na hora de regressar. Enquanto desço agora a minha rua, tenho acesos os meus sentidos e já percebo minúsculos rebentos nos troncos dos jacarandás, em anúncio de primavera. Daqui a pouco, as árvores vão cobrir de flores azuis o chão, não faz calor nem frio, esta harmonia em mim é a felicidade absoluta, a compensar-me de todos os males. Vou andando, atravesso outras ruas, penso na sedução de Lisboa oferecida ao meu olhar. O recorte dos telhados, o desenho das casas, as frestas de paisagem que se derrama sobre o Tejo. Sinto uma vontade imensa de partilhar a beleza. A terra, o céu e o rio. A claridade e a transparência do ar. Canto, baixinho, pela rua. |
Gil Montalverne Jornalista e divulgador científico ![]() |
![]() PIOR DO MUNDO É A GANÂNCIA PELO PODER Trocaria de bom grado o seu primeiro nome?
Simplificava. Trocava o nome do poeta que não sou (Augusto Gil) por simplesmente Gil. Quantidade de velas no seu último aniversário? Nenhumas, pois já não gosto de festejar os anos. Tatuagens? Tenho marcas que cheguem e não necessito disso para me diferenciar. Piercings? Só algum creme para conservar a pele. Já foi a África? Estive várias vezes e gostei muito (da terra em si mas não dos regimes coloniais obscenos e desumanos). Já ficou bêbado? Nem por isso. Só em tempos bêbado de amor. Já chorou por alguém? Muitas vezes. Por aqueles que amava e ainda amo. Praia ou campo? Adorei o mar que tive de abandonar por problemas de saúde. Mas seria difícil a escolha. Adoro toda a Natureza, infelizmente tão maltratada. Peixe ou carne? Peixe. Música preferida? Música que me induza a calma de que necessito. Clássica ou mesmo ligeira mas melodiosa. Cerveja ou champanhe? Nenhuma. Metade cheio ou metade vazio? Água ou leite q.b. Lençóis de cama lisos ou estampados? Lisos Filme preferido? Difícil de responder. Dr. Jivago. África Minha e "As palavras que nunca te direi" definem o tipo. Flores preferidas? Agradam-me as tropicais mas até um campo de malmequeres amarelos me fascina. Qual o animal que lhe merece mais simpatia? Sinto por todas as espécies igual simpatia, com excepção, infelizmente, de "alguns" representantes da espécie humana, dita racional, que para além de irracionais, representam o que há de mais deplorável e indecoroso na nossa sociedade. Melhor refrigerante para os dias de calor? Água ligeiramente fresca. Qual dos seus amigos vive mais longe? Vivem dentro de mim mesmo os que já partiram mas há sempre um algures a alguns quilómetros. Quantas vezes deixa tocar o telefone antes de atender? Atendo o mais rápido possível. Podem precisar de mim. Qual a imagem do seu telemóvel? Não tenho mas se tivesse seria uma praia com palmeiras e o azul do mar ao fundo. Pior do mundo humano? A ganância pelo poder e pelo dinheiro. E o melhor? Cuidar dos que mais necessitam, crianças e idosos, todos os que não conhecem uma vida digna de ser vivida. Um feito de que se orgulhe? Nada de especial. Procuro – repito, procuro – ser honesto, solidário e sincero em tudo o que faço. Última coisa que faz antes de dormir? Preparar-me para dormir o melhor possível. Qual o primeiro pensamento ao acordar? Afinal estou vivo! O que tem debaixo da cama? Nada de especial. O que nunca tira? O desejo de acreditar. Que dom da natureza desejaria possuir? Tudo na Natureza tem os dons que a evolução lhe concedeu. Como homem procuro aceitar os que me são próprios. Ser melhor ou pior está dentro de mim. Tem um lema de vida? Viver e respeitar quem me rodeia e merece a minha amizade. Que livro está a ler? Vários... As Memórias de Rómulo de Carvalho. Um herói de ficção? Já não tenho. Passou o tempo de gostar da ficção. E na vida real? Todos os que lutam pela Paz e Igualdade entre os Homens. Figura histórica preferida? Estão mais ou menos ultrapassadas. Uma saudade? Mergulhar no Mar. Uma característica sua? Tenho muitos medos mas luto com alguma esperança. Deceções que teve na vida? Nada de especial salvo algum mal que tenha feito a alguém sem querer. Lugares onde morou? Lisboa sempre. Com estadas no Alentejo. Lugares em que esteve e voltaria? Tenho saudades de Londres pelos bons dias que lá passei. Programas de TV a que assistia quando criança? Não havia TV Programas a que assiste hoje? Mezzo e National Geographic Quem lhe envia emails com maior frequência? Os que são meus amigos Comidas preferidas? Bacalhau com batatas a murro. Lugar em que desejaria estar agora? Com saúde e na companhia de quem gosto em qualquer lugar não muito longe de Lisboa. Como gostaria de morrer? Prefiro não pensar nisso. Regressando, quem gostaria de ser? Não vai acontecer. Mas para que haja resposta direi: igual a mim próprio, melhorando o que possa ter de mau. Espero que este ano eu possa... Ter esperança. |
Maria do Sameiro Barroso Médica e escritora ![]() |
![]() O ESCORPIÃO DOS SONHOS Ontem. O escorpião do tempo devorava as mãos de gelo. Queimava-me a visão do amor. De súbito, um rosto, uma imagem. E o silêncio era chama, centro, roda imparável, máquina incessante: a poesia do corpo desvela âncoras sem limites. Nos gumes açulados, um infinito ardor perfura a morte. Numa onda perfeita, os amantes despertam em carnívoras flores que os rios extravasam, no ópio que os seus poros fabricam. Ontem. A mansarda do amor dilata os sonhos. As nuvens do coração dormem nas ilhas negras da alvorada e os corpos dormem, perdem-se do gelo. Queima-me a visão do amor. As ondas pernoitam, saciadas na noite de estrelas periféricas. |
José Jorge Letria Escritor. Presidente da Direção e do Conselho de Administração da Sociedade Portuguesa de Autores ![]() |
INSTANTÂNEOS DA ATUALIDADE (MARÇO DE 2011) UMA NOVA PÁGINA NA HISTÓRIA DO MUNDO O mundo tem piorado bastante em termos globais porque foi deixado à mercê da ganância dos grupos e das agências financeiras que se alimentam apenas da sede de lucro, sem olhar às pessoas e à soberania das nações. Mas, por outro lado, estamos a assistir a fortes sinais de indignação e de revolta, designadamente no mundo árabe, que podem abrir uma nova página na história do mundo, nem que seja pela via de uma grave crise petrolífera. A grande questão que hoje se coloca, sobretudo depois da catástrofe no Japão, é saber se conseguiremos manter este planeta vivo e, em caso afirmativo, se seremos capazes de criar uma nova ordem económica e social, que coloque as pessoas em primeiro lugar e não os cifrões e a frieza das estatísticas. PALAVRAS RECUPERADAS A agressão humana ao mundo natural é um tema recorrente em José Jorge Letria, ocupando espaço alargado numa entrevista que lhe fizemos há seis anos. Destacamos um fragmento que adquire incontestável atualidade e deixa transparecer a voz do poeta que José Jorge Letria sempre é: «Se o homem do futuro não conversar com os animais, com as pedras e os rios vai ter muitos mais tsunamis, muitos mais vulcões enfurecidos pelas experiências nucleares. Estamos a pagar a fatura do modelo e do conceito de progresso que adotámos. Estamos a virar a Natureza contra nós. Ou nos tornamos aliados dela ou desapareceremos.» • Ver texto integral no espaço "Grandes Entrevistas" |
Viriato Soromenho-Marques Professor catedrático na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e conselheiro do presidente da Comissão Europeia para a área do Ambiente ![]() |
ECOLOGIA DO ESPÍRITO Num país com um sistema de justiça que é um convite à impunidade, num país onde os incêndios florestais começam de madrugada, num país onde as pessoas se colocam debaixo de falésias à espera de que nada lhes aconteça, num país onde os produtores de vinho foram mais fortes do que o interesse geral impedindo que a taxa de álcool no sangue fosse colocada no nível adequado, num país onde algumas elites protestam quando as impedem de atirar o fumo dos seus charutos para a cara dos outros em espaços públicos, num país como este, a política tornou-se apenas num spoil system. Nas eleições o que está em causa parece ser apenas a repartição dos despojos de um Estado, impotente e inoperante, que só serve para os que dele se querem servir. Unamuno, o grande pensador espanhol, disse, e com razão, que Portugal era um país de suicidas. Poderemos acrescentar que também de homicidas, como a história trágico-rodoviária o prova em cada dia. Contudo, não existe alternativa à política. Não a esta, que se limita a ser cúmplice, quando não promotora da iliteracia cívica e bárbara que por aí campeia. Quando tivermos um candidato que seja capaz de dizer: "Portugueses, o principal problema de Portugal começa por nós próprios…", então talvez haja razão para alimentar a esperança. No nosso país, a principal crise ecológica é a do espírito. |
Eduardo Lourenço Ensaísta ![]() |
HÁ 80 ANOS, QUANDO EU ERA MENINO E BRINCAVA… Era uma vez um menino chamado Eduardo Lourenço. Sim, o grande pensador que conhecemos e admiramos foi um menino brincalhão na sua aldeia de pedra beirã. De pedra e de Pedro, pois falamos de S. Pedro do Rio Seco. Ousámos um pedido que ninguém lhe havia feito: uma viagem no tempo, recuando oitenta anos, às memórias da infância («… esse espaço – nas suas palavras – dentro do qual se coloca algo de parecido com a felicidade.») Diz-nos que as suas brincadeiras de então remanesciam de jogos medievais com nomes estranhos, porém bem vivos na memória. O jogo da xona. O jogo do picachão. Também um outro, verdadeiro precursor do moderno basebol: o jogo do bete. E não gostava nada, mesmo nada, de perder… Melhor que o palavreado escrito será ouvir o menino Eduardo Lourenço de viva voz: (Memória recolhida por Maria Augusta Silva) |