O mundo de Sarah Affonso reflete a pureza dos afetos que desde a infância lhe cativou o olhar no berço da sua Viana do Castelo. Esse olhar de perto as coisas simples, para levar mais longe uma sensibilidade criativa liberta de influências. Um jeito natural — e original — de estar na arte. Fiel a um lirismo que não desprezou o aperfeiçoamento técnico, com direito a ser referenciada para sempre como uma artista que engrandeceu a primeira geração dos modernistas portugueses.
Sarah deixou uma vasta obra repartida pela pintura, desenho, cerâmica, tapeçaria, bordados. A lembrança de quem se deu às crianças de forma encantatória ao ilustrar estórias de muitos livros infantis. Sarah era, em si mesma, a candura, o sonho que casava o real com o imaginário da forma mais sincera, como quem recupera a inocência a cada instante, para que os rostos, as formas, as cores, os costumes, o mundo sejam mais livres e impressivos. Foi essa, porventura, a perfeita e sólida ingenuidade que marcou a obra de Sarah Affonso. Esse dom sublime, como definiu Breton.
Enriqueceu-nos com a limpidez do seu talento, simples e íntimo, todavia atento e de um sentido poético que logra a fusão da inocência com a modernidade. Pela sua obra passa um exercício psicológico de forte impacte visual; soube insuflar uma nova maneira de ver e lidar com o simbólico que obedece, sobretudo, aos apelos afetivos, à coerência.
Sarah Affonso, a última discípula de Columbano. Aprendeu a técnica na Escola de Belas-Artes de Lisboa, onde ingressou em 1916. Paris à vista, em 1924. Mais estudos. Outras vivências, inclusive com os maiores da arte moderna ao nível internacional. Um tempo decisivo. Sendo verdade que as exposições entretanto efetuadas em Portugal, individuais e coletivas, a afirmavam já como um nome das artes plásticas, é em 1928 que surge com todo o esplendor criativo, no Salon d'Automne. Depois, a distinguir a dimensão da sua obra, eis o Prémio Amadeo de Souza-Cardoso, no IX Salão de Arte Moderna.
Em 1934, Sarah casa-se com o «homem que foi sempre futuro», Almada Negreiros, um génio. Sarah Affonso contava 33 anos e Almada — o da Invenção do Dia Claro — rondava os 40, esguio, dinâmico, interventivo. Polémico. Arrebatador. Veemente. Todo ele um grito de liberdade. Incómodo, como quase todos os que pertenceram à geração do Orpheu. Almada talvez mais impulsivo, desconcertante.
Da união de Sarah e Almada nascem dois filhos: José e Paula. E Sarah fica presa na teia dos afetos. Preserva, no entanto, a alma forte, sensível. Contorna as vicissitudes, logo a mais terrível, a morte da filha. Na quinta de Bicesse, sedimenta-se a vida. A cultura. O amor.
A complexa e dominante personalidade de Almada não terá sido razão para Sarah Affonso quebrar o ritmo da sua criatividade. Sabe-se que Almada a incentivava a prosseguir. Mas preferiu recatar-se, inteligente, generosa, com uma alegria nobre, a de ser a companheira de mestre Almada Negreiros; Sarah, o equilíbrio mágico do "soberano" pioneiro do modernismo em Portugal. Sarah, a pedra basilar, iluminada, e nunca sombra. Em nada a sua obra sai diminuída. Legou-nos a poética do maravilhoso, da cor e luz, da naturalidade. Para as telas transportou aldeias, romarias, procissões, anjos da Terra e do Céu, tradições, uma cultura popular ímpar. E transmitiu-nos, como ninguém, essa «coisa séria que é a alegria». Delicada na conceção e nas texturas. Harmoniosa. Singela. Deliciosamente fascinante nos retratos. Doce na cerâmica. Aprimorada nos bordados. Usou as técnicas como esteira de uma filosofia artística original, melhor dizendo, de uma pureza original; irrompia da sua imensa riqueza interior para tornar mais expressivos os contrastes das cores e dos ambientes.
TAMBÉM NESTE SÍTIO
ALMADA: O HOMEM QUE FOI SEMPRE FUTURO
(Reportagem na Quinta da Lameirinha)
O ESPAÇO LISBOETA DAS PORTAS DE SANTO ANTÃO
PODERIA TER SIDO UMA PEQUENA BROADWAY
EM 5 DE DEZEMBRO DE 1913
A IMPRENSA AVISAVA A POPULAÇÃO
PARA O ACONTECIMENTO SENSACIONAL
DO DIA SEGUINTE:
«A curiosidade lisboeta, attrahida durante mezes para as
obras do theatro da rua de Santo Antão, vae finalmente ser
satisfeita. O Polytheama abre ámanhã as portas ao publico,
apresentando-lhe uma operetta na qual figura como elemento
feminino essa desenvolta e endiabrada criatura que por si só
enche a scena: Cremilda de Oliveira».
(O texto transcrito não segue as regras do Novo Acordo Ortográfico)
A pré-história do Teatro Politeama, nas Portas de Santo Antão, em Lisboa, começa com a cerimónia do lançamento da primeira pedra, a 12 de maio de 1912. O ambiente social era ainda o da recém instaurada República. Sabe-se que a iniciativa partiu do empresário Luís António Pereira. O premiadíssimo arquiteto Miguel Ventura Terra (Prémio Valmor, por quatro vezes) e republicano convicto projetou o edifício e faleceria cinco anos depois da inauguração, deixando a sua assinatura em inúmeras obras arquitetónicas superlativamente emblemáticas da cidade, como a Maternidade Alfredo da Costa e os liceus Camões, Pedro Nunes e Maria Amélia Vaz de Carvalho. Outro profissional cônscio, inseparável de Ventura Terra, foi José de Passos Mesquita, responsável pela construção do Politeama. Veloso Salgado e Benvindo Ceia decoraram. O escultor Jorge Augusto Pereira foi autor do proscénio.
Finalmente chegou o dia da inauguração. Em 6 de dezembro de 1913 estreava no “Theatro Polytheama” a opereta Valsa de Amor. Presenças do Presidente da República, Manuel de Arriaga, e do Presidente do Conselho de Ministros, Afonso Costa.
Passaram cem anos.
O Politeama em vésperas da inauguração.
Uma das raras fotografias desta época é da autoria do pioneiro Joshua Benoliel.
Vê-se à janela, difusamente, o empresário Luís António Pereira
O dourado Politeama, que recebeu a Companhia Amélia Rey Colaço-Robles Monteiro; que acolheu o Comboio das Seis e Meia, de Igrejas Caeiro; que fez três épocas do ballet Gulbenkian; que estreou autores como Alfredo Cortês e homenageou figuras internacionais como Mário Moreno (o célebre Cantinflas), voltou-se depois para o cinema. As herdeiras Maria Adélia e Odete Pereira Ramos disseram: filmes pornográficos, nunca, naquele ecrã! Todavia, frequentes vezes a programação futura não observou essa vontade.
Foi longo o ciclo histórico do teatro convertido a cinema de filmes
populares, também pornográficos depois de 1974. Terminou com o advento esplendoroso de Filipe La Féria.
(IMAGENS: CORTESIA DE FRANCISCO GRAVE)
Com o talento criativo de Filipe La Féria o Politeama recuperaria, felizmente, o seu objetivo primeiro: o teatro. Preservou-se-lhe a fachada e “reanimou-se” o interior. Mais uma achega para fazer das Portas de Santo Antão uma pequena Broadway. Tinha condições de sobra. O D. Maria II a pontificar; o Coliseu a transformar-se na mais importante sala do País; novos projetos para o Olímpia e o Odéon (este talvez voltado para comédia). Instituições culturais e desportivas em redor. Comércio renovado. Rua sem carros. Santo Antão lhe daria a bênção, pois então! Mas nada aconteceu.
"Maldita Cocaína" assinalou historicamente a reabertura do Politeama
como teatro: «… como um pai que regressa para amar e ser amado…»
Tivemos com o ator Varela Silva uma longa conversa durante os ensaios finais de Maldita Cocaína, de Filipe La Féria (memorável espetáculo de reconstrução de uma Lisboa nos seus “anos loucos”, os anos vinte, no pós-guerra que revolucionou hábitos e costumes). Foi Varela Silva quem nos esmiuçou a história do Politeama como se falasse de um pai que regressa para amar e ser amado. Esperanças povoadas de poesia. A poesia abriu-lhe o pano de cena. Um olhar longo a debruar-lhe a voz timbrada e decidida, apontada ao futuro, num entusiasmo sem cansaços. Mas um lamento a espaços entrecortava a conversa: «O que esta rua poderia ter sido!»
Chegava-nos o ruído das maquinetas de soldar. E das serras. Dos martelos. Do arrastar de tábuas, fios e metais. Protegiam-se da poeira zonas já restauradas, os corredores alcatifados a grenat. Todos se atiravam ao trabalho para fazer renascer, uma vez mais, o Politeama. A velha casa voltava a ter vida, naquele espaço onde artes diferenciadas, do teatro à música, conheceram outrora êxitos colossais e o amor imenso de uma cidade. Impunham-se obras de restauro, de forma a dotar o palco de operacionalidade técnica, de toda a mecânica de cena que o grande espetáculo requer. Quatro elevadores, tapetes rolantes, escadas elevatórias de dez metros; fosso da orquestra também com elevador; substituição de antigas estruturas básicas de madeira frágil e corroída. Sonoridade qualificada. Uma rodilha de fios em cabinas adequadas. Montagem de ar condicionado. Conferir aos camarins razoável conforto. Paredes lisas, de tom bege. Lustres e o belo fresco de Benvindo Seia adornando o teto da sala ampla, de frisos bordados a sonho e engenho, qual renda de estuque de clássico bom gosto.
De quando em vez passavam por nós, apressados, acenando: Curado Ribeiro, Manuel Coelho, Ruy de Carvalho, Camané, Carlos Quintas, Fernando Heitor, Helena Afonso, Henrique Feist, João Baião, Joaquim Monchique, José Manuel Rosado, Manuela Maria, Paula Guedes, Rita Ribeiro, Simone de Oliveira, Vanda, Vera Mónica...
E nós correspondíamos aos acenos, nostálgicos e felizes por vermos o Politeama a renascer.
© MARIA AUGUSTA SILVA
Pintor, ceramista, ilustrador, Lima de Freitas distinguiu-se ainda na literatura com ensaios sobre o imaginário na arte, entre os quais Pintura Incómoda, Almada e o Número e O Labirinto. Representado em museus de todo o mundo, surgiu nas artes plásticas em finais dos anos quarenta, num traço neorrealista que evolui e nunca se afasta do "inconsciente" enquanto força do sonho e da investigação do ser. Nascido em Setúbal (1927), cria na pintura diálogos figurativos e cósmicos de intenso simbolismo. A alquimia foi o seu caminho para a transformação, elegendo a "transdisciplinaridade" como via para um "novo humanismo". São de sua autoria os painéis de azulejos da estação ferroviária do Rossio. Condecorado em Portugal e França, dirigiu o Teatro D. Maria II. Morreu em 5 de outubro de 1998.
Lima de Freitas marcou a cultura portuguesa com a sua pintura e obras ensaísticas, contidas entre o realismo e a mística. Ajudou a formar muitas gerações.
O jogo dos contrários, no sentido de uma busca do conhecimento, marca toda a obra do pintor-filósofo que nos anos do pós-guerra se impôs com uma expressão pictórica contida entre o realismo e a mística, entre o quotidiano e o imaginário, entre a inquietude e o mito. Recordo uma grande exposição na Galeria Corrente d'Arte, em Lisboa, abrangendo algumas das últimas obras do pintor. A mostra, além de pinturas e desenhos, incluía ilustrações para obras de Camões, Alexandre Herculano e Pessoa. Os trabalhos iam de 1962 (com o emblemático Homenagem a Ensor) a quadros inacabados de 1998. Ressaltavam telas como Anjo, O Jardim das Hespérides, A Sibila Eritreia, O Paracleto, Paisagem ou O Infante das Sete Partidas do Mundo com Anjo Feminino.
Ensaístas e críticos de arte estiveram nessa ocasião a analisar o pensamento filosófico e o percurso estético de Lima de Freitas. Uma homenagem em que participaram o filho do pintor, José Hartvig de Freitas, as professoras universitárias Teresa Rita Lopes e Maria João Fernandes, o crítico Pinharanda Gomes e o editor José Manuel Ferreira. A completar a homenagem, foi lançado o livro Lima de Freitas – Um Caminho Secreto (Hugin), organizado e prefaciado pela crítica literária e ensaísta Maria João Fernandes e em cujo projeto colaborou o pintor e poeta Gonçalo Salvado.
José Hartvig de Freitas, ao frisar que a obra de seu pai "não é fácil de inserir em teorias de arte", deixou um conselho: "Quando olharem para uma obra de arte, olhem, também, com o coração."
O editor José Manuel Ferreira falou do artista que "nunca confundiu o saber com erudição" e soube ocupar-se dos "grandes temas da humanidade". Falou igualmente do exemplo do amigo e de um homem de "saber vasto".
Valeria a pena reeditar essa obra memorável. Integra importantes ensaios de Lima de Freitas que nunca haviam sido publicados. Refiram-se: A Barca e o Espírito Santo, a Iconografia do Espírito Santo e os Painéis, O Culto do Espírito Santo e o Imaginário Lusitano, Os Três Espelhos e a Beleza Paraclética e o projeto para um livro subordinado ao tema Introdução ao Hermetismo na Arte Portuguesa, que, em si mesmo, conforme acentuou Pinharanda Gomes, é o grande desafio feito por Lima de Freitas às novas gerações.
Aprofundando tempos da história e símbolos das mais diferentes e ancestrais culturas, Lima de Freitas, o autor de obras como Os Dois Sóis, propõe nestes ensaios novas reflexões, nomeadamente no domínio da arte.
Ao abordar, por exemplo, os sempre "enigmáticos" painéis do Museu de Arte Antiga, atribuídos ao pintor Nuno Gonçalves (século XV), Lima de Freitas suscita outra motivação para o olhar e coloca nova perspetiva analítica em torno dos célebres painéis. Um desafio que principia por aludir a Dante, o poeta da Divina Comédia, e ao seu misterioso 515 (Cinquecento dieci cinque), mensagem cifrada que, segundo Lima de Freitas, baseado também numa opinião maioritária, "trata-se de uma imagem de um salvador político que estabeleceria um Império universal de justiça, equivalente do Império do Espírito Santo ou Quinto Império, que tanto tem ocupado o imaginário lusitano."
De investigação em investigação, de simbologia em simbologia, tanto do ponto de vista divino como do político, social e artístico, Lima de Freitas defende, num dos ensaios, que o famoso políptico "de São Vicente" exposto no Museu das Janelas Verdes, em Lisboa, mergulha na "iconografia do Espírito Santo". O culto do Espírito Santo, tal como já havia sido advogado por José Luís Conceição Silva, teria de passar do mesmo modo pelo estudo profundo das "relações que existiam entre a Casa de Borgonha e a dinastia de Aviz, em especial o encontro histórico que reuniu D. Afonso V de Portugal e Carlos, o Temerário, pouco antes da derrota trágica deste".
Maria João Fernandes sublinha no prefácio que o "pintor alquimista desenvolveu, no século XX, um paradigma do conhecimento total, a adequação entre o pensamento e as figuras de uma gramática secreta das formas e dos símbolos que já preocupara Leonardo e onde se inscreve um sentido luminoso unindo os destinos do homem e do cosmos."
Por meio de uma entrevista de Maria João Fernandes a Lima de Freitas, o livro traça, entretanto, o percurso estético e humanista do pintor-filósofo que viveu intensamente a meditação, o "mundo interior do homem", e foi marcado — como ele próprio confessa — pelo pensador e antropólogo francês Gilbert Durand, "fundador da antropologia do imaginário". Durand dedicou, aliás, ao pintor português a sua obra Os Mitolusismos de Lima de Freitas.
O trabalho literário que reúne inéditos de Lima de Freitas abre com o poema Secreto Domínio, de António Salvado. Dele constam, também, reproduções de acrílicos sobre tela e madeira, entre os quais Aurora Consurgens, O Preste João, O Jardim das Hespérides, Anunciação, O Achado do 515, O Milagre das Rosas e Dante e Vergílio à Entrada do Purgatório". As fotografias do livro são de João Luís Dória, destacando-se ainda um autorretrato de Lima de Freitas e uma fotografia do pintor assinada por João Prates, datada de 1998, ano em que morre o pintor.
Lima de Freitas deixou uma obra invulgar, a do mestre que ajudou a formar muitas gerações e cedo foi encantado pela atmosfera de Bosch, o pintor de óleos como A Nave dos Loucos, O Jardim das Delícias e A Tentação de Santo Antão — tríptico que está no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa.
Ao longo de mais de cinquenta anos nas áreas das artes plásticas e do ensaísmo, Lima de Freitas, a quem não terá sido também indiferente um certo mundo de Bruegel — o d'A Queda dos Anjos Rebeldes — ofereceu-se-nos, porventura, como um visionário consciente da necessidade de o homem pugnar por "um novo humanismo", pela "convergência do sonho e da razão", pela "densidade dos sentidos", como acentua Maria João Fernandes.
Toda a pintura e obra literária de Lima de Freitas traduzem, afinal, essa busca de luz com que procurou, incessantemente, desconstruir estereótipos sob o signo da revelação cósmica e da comunhão do mistério. Em registos mais figurativos ou nas formas e cores mais subterrâneas, o sonho é nele claridade.
© MARIA AUGUSTA SILVA
«No funeral havia muita gente, familiares, poetas e escritores amigos, alguns pintores, e o luto chorante, obstinado, das mulheres da Nazaré. Num último adeus, muitas beijaram-no na testa. Raúl de Carvalho também o beijou. Eu não fui capaz: aquela era uma morte infame».
ANTÓNIO OSÓRIO
Descubro o olhar de um amigo suspenso das aguarelas, guaches e tintas-da-china de Mário Botas expostas na monumental Retrospetiva de 1999 (Centro Cultural de Belém). Vejo-o folhear, devagar, o livro evocativo. Quebra o silêncio: «Que pintura tão estranha...» E eu digo sim, é. A obra de Mário Botas é estranha, inquietante, suprema.
A Retrospetiva, intitulada Mário Botas — Visões Inquietantes, incluía cerca de 300 trabalhos de um vulto maior da arte contemporânea e da modernidade, amortalhado por uma leucemia aos trinta anos. Mário Botas nasceu na Nazaré, onde passou a sua infância e adolescência. Em Lisboa entra na Faculdade de Medicina e com altas classificações termina o curso em 1975; frequenta o estágio de psiquiatria, mas deixa a arte médica e transmigra todo o génio e sensibilidade para o diálogo pictórico. Realizou a primeira exposição individual em 1971, na Comissão Municipal de Turismo da Nazaré; em 1973 priva com Cruzeiro Seixas e concretiza a mostra em Lisboa, na Galeria São Mamede.
O mês de setembro de 1977 anuncia-lhe um outono de seis anos, traiçoeiro. Diagnóstico impiedoso: uma leucemia resistente a todas as terapêuticas. Mário Botas não fala da doença. Contorna a dor e a desesperança, batalha íntima que, no entanto, mergulha e emerge de uma criatividade ao mesmo tempo subtil, cáustica e provocatória no seu esplendor demoníaco; a 29 de Setembro de 1983, o sono tumular imiscuiu-se na sua aventura, qual aguilhão perverso a roubar-lhe a ternura e a raiva com que gostava de «sonhar acordado» o jogo da vida e da morte.
A mostra no CCB cruzava esse jogo em numerosas séries temáticas, desde a influência inicial do surrealismo à mitologia, da história à filosofia, do teatro à ilustração de livros e revistas (a literatura, presença constante na vida e obra de Mário Botas); do retrato aos autoretratos, do mito à realidade, por vezes numa relação de duplos enigmáticos que desafiam o absurdo, em particular nos últimos anos de vida; inseria, ainda, Spleen de moi-même. A melancolia. Uma melancolia próxima de Baudelaire, que ilustrara.
Os reencontros com Mário Botas suscitavam sempre estupefacção e deslumbramento. Um olhar cúmplice, meio santo, meio víbora, a tocar-lhe o sonho e as insónias, a esperança e o tédio, as agruras híbridas (as da noite secreta e as do sol submerso). Um olhar imaterial sobre as raízes-terra-mundo; sobre os ciprestes-morte e as palmeiras-vida — fragmentos errantes de uma acutilante unidade interventiva. Tempo para lhe perscrutarmos os deuses e demónios, as silhuetas da tragédia e da ironia, os monstros, as máscaras múltiplas, os enigmas, as penumbras e as claridades, itinerário de uma cromática de opostos, onírica e crepuscular. Introversão e revelação. O Eu e o Não-Eu, o Outro, o jogo do Nada e do Ser, da harmonia e do caos, da solidão oculta, do abismo, do grito inteligente, superior, em que a serenidade de azuis, dourados e rosa apazigua o arrepio dos contornos, das garras, da transfiguração.
Plástica do belo e do cruel, a de Mário Botas, desde o traço fino da tinta-da-china à interioridade das aguarelas e guaches. Inquietante despedida das nuvens amadas. E sempre o regresso do pintor-poeta que nos convoca para as interrogações, as dele e as nossas. Porque Mário Botas é o sujeito da sua arte, tal como Schiele, pintor decisivo na sua forma de encarar a pintura, e como o foi, também, Paul Klee.
Estranha a pintura de Mário Botas. Estrela vigilante que nos segreda a sabedoria da reflexão.
© MARIA AUGUSTA SILVA
Foi um dos maiores intérpretes do canto lírico. Arrebatou os públicos dos grandes teatros mundiais, nomeadamente o de São Carlos.
A morte aos 72 anos, em setembro de 1999, silenciou essa voz portentosa que nos deslumbrou durante meio século.
Nascido em Las Palmas, Alfredo Kraus sofria de depressão profunda desde a morte de sua mulher, Rosa, dois anos antes. Uma doença degenerativa levou-o a internamentos nos EUA e em Madrid. A última hospitalização, já em estado grave, ocorreu em maio de 1999. A 5 de janeiro fez a derradeira aparição pública, ao lado de Montserrat Caballé, no Teatro Real, em Madrid. A partir daí, cancelou todos os espetáculos e digressões.
Dele ficaram momentos eternos de uma técnica, timbre e sobriedade de uma voz magistral. Sublinhou, um dia, em entrevista assinada por Fernando Pires: «Lisboa e o Teatro de São Carlos constituem a mais longa e grata tradição da minha carreira.» Na sala lisboeta atuara pela primeira vez em 1958, ao lado de Maria Callas, na Traviata. O público português pôde escutá-lo ao vivo anos consecutivos. Quando da Expo'98, em Lisboa, o Teatro Camões esgotou, no Dia de Espanha, para ouvir, mais uma vez — e seria a última em Portugal —este expoente máximo da cena lírica. Por essa ocasião, o Presidente da República, Jorge Sampaio, condecorou-o com a grã-cruz da Ordem do Infante D. Henrique. Muitas outras distinções internacionais marcaram a sua carreira.
Alfredo Kraus. Um fascínio. Uma elegância insuperável. Tão-pouco a idade lhe apagava o brilho, a excelência que saía de uma voz superior nas diversas árias e canções de um reportório distinto, que Alfredo Kraus escolhia criteriosamente, de forma que a sua voz interpretasse o que mais e melhor se lhe ajustava. Uma voz de eleição que, fosse em Rigoletto ou Lucia, em Fausto ou Werter, enchia o espaço, criava o sonho e se instalava, apetecida e serenamente, na interioridade de quem o escutava maravilhado. As palmas, os «bravos» acentuaram nos teatros mundiais a apoteose de cada atuação. Nova Iorque, Viena, Berlim, Lisboa, Chicago, Londres, Barcelona, Paris, Turim, Tóquio, Bilbau, Buenos Aires, Trieste, tantos, tantos mais sítios, sem esquecer o Scala de Milão, renderam-se-lhe ao profissionalismo e à arte.
Gostava de levar uma vida tranquila; no seu ginásio, praticava regularmente exercícios dirigidos ao diafragma e abdominais. Cuidados indispensáveis. Rosa, um amor tranquilo, fazia parte da claridade do seu olhar. Completavam-se dando as mãos em defesa de uma privacidade que lhes fortalecia os sentimentos. Kraus nunca andou pelos trilhos do vedetismo. E, no entanto, ele era a estrela. Uma estrela que sabia estar no seu firmamento.
Quando Fernando Pires o questionou, em dado momento, se não achava que os shows televisivos para grandes massas poderiam ser um veículo para levar também esse público aos teatros líricos, Kraus respondeu: «As massas é que têm de estar ao nível da ópera. Como? — não sei, mas penso que esse é um trabalho de educação a fazer nas escolas. Tem de formar-se um público cada vez mais sensível e mais educado, apto tanto para ouvir ópera como para assistir a um concerto sinfónico ou para participar num espetáculo de rock. Porque é possível gostar de coisas tão distintas como estas».
Um pensamento que mantém toda a atualidade. Refletir sobre ele, ouvindo a sua voz será, porventura, a maior homenagem.
© MARIA AUGUSTA SILVA
O mundo do espetáculo foi o seu mundo sagrado. Habitava-o como se fosse o espaço feito à medida da sua sensibilidade. Do seu sonho. E o talento, esse, enchia os palcos e deles transbordava. João Villaret, ator e declamador. Uma gangrena fez-lhe parar o coração quando contava apenas 48 anos. Caso ímpar de popularidade, inclusive no teatro e no cinema, João Villaret continua vivo porque única é a sua arte de dizer poesia, de falar poesia, de comunicar poesia.
Mereceria ser reeditada a fabulosa série inscrita em «Os Vídeos da RTP» e divulgada outrora pela Lusomundo, incluindo os programas apresentados aos domingos nos primórdios da Radiotelevisão Portuguesa, por Villaret, com seu irmão Carlos ao piano, textos de Nelson Barros e Francisco Mata e realização de Bessa de Carvalho e Fernando Frazão. Filmes que mostram, de forma incontornável, como a imortalidade é real sempre que a arte é grande e o intérprete dessa arte se arreda de efémeros vedetismos e se torna gigante por mérito e inteligente humildade.
João Villaret estreou-se como ator na noite de 16 de Outubro de 1931, integrando o elenco do Teatro Nacional de D. Maria II na peça Leonor de Teles, de Marcelino Mesquita. Logo, um êxito. Outros mais em Portugal e no estrangeiro. E sempre uma vontade indomável de ler os poetas. E de fazer de cada poema eleito uma personagem ou várias personagens, que encarnava de jeito peculiar. A sua voz terá sido sempre, porventura, o grande trunfo artístico. Incandescente num dado instante, doce e sussurrante noutro andamento, forte e vibrante a cada apelo do verso, parecia modelar-se como barro e voar em todas as direções com um destino único: a humanidade. Essa versatilidade, esse dizer coloquial e um sentir a palavra dos poetas como carne e nervo e sangue e alma foram em João Villaret a paixão que o fez um intérprete inimitável da arte das emoções. Mesmo situando no tempo a forma de estar em cena, há uma intemporalidade na voz que disse Botto, António Nobre, Mário de Sá Carneiro, Fernando Pessoa, Luís de Camões, Augusto Gil, Guerra Junqueiro, António Sardinha, Olavo Bilac, Manuel Bandeira, Camilo Pessanha, Lorca, Afonso Lopes Vieira, Cesário Verde, João de Deus, Prevert, Florbela, Gomes Leal, Antero de Quental, Carlos Queiroz, José Galhardo e António Lopes Ribeiro, entre tantos mais. A voz que nos dá Torga: Tanto me apetecia agora ser / Alguém que não cantasse nem sentisse! / Alguém que visse padecer,/ E não visse...
A voz que nos dá José Régio: Ouve-me!, se é que ainda / Me podes tolerar (...)
É bom lembrar e ouvir a voz sempre viva de Villaret.
Sempre além das palavras.
Celebrando o centenário deste declamador de magistral talento, recuperamos um pequeno filme realizado pela RTP (3 minutos) reproduzindo uma das suas memoráveis interpretações: Procissão / Há Festa na Aldeia, de António Lopes Ribeiro (1955).
© MARIA AUGUSTA SILVA
Comemorações do Centenário
LISBOA
Galeria Carlos Paredes (SPA)
Rua Gonçalves Crespo, 62 – Lisboa
10 e 11 de maio
Sexta-feira: 21h30
Sábado: 16h30 / 21h30
Ciclo Homenagem Centenário de João Villaret.
Representação de Texto Teatral "A Carta" de F. Santos, com Francisco Valdez e Cecília Castro.
Grupo de Teatro Amador de Benfica.
Excertos de Programa de Poesia de João Villaret na RTP.
Comuna Teatro de Pesquisa
A partir de 10 de maio, de quinta a sábado, às 21h30.
Espetáculo com a duração de 50 minutos, com dois atores – Carlos Paulo e Ana Lúcia Palminha – e um músico, Hugo Franco, que recriam os grandes números que João Villaret protagonizou em vários espetáculos de revista e que se tornaram verdadeiros exemplos daquele género de teatro popular em meados do século passado.
AMADORA
Biblioteca Municipal Fernando Piteira Santos
11 de maio, 15hh30
Homenagem a João Villaret com sessão de poesia pelo grupo de jograis U…Tópico.
Evento coordenado por Maria de Lurdes Esteves.
INFANTADO (Loures)
Biblioteca Isabel Alçada
EB1/JI
10 de maio: festejos evocativos de João Villaret.
A Imprensa Nacional – Casa da Moeda emitirá no dia 22 de outubro uma moeda de
coleção, em cuproníquel, comemorativa do centenário de João Villaret.
17 JANEIRO 2012
«Acabo de saber do falecimento de José Alberto dos Reis Pereira, filho de Julio / Saúl Dias, sobrinho de José Régio, engenheiro civil, responsável, por exemplo, pela construção do Centro Cultural de Belém. Era um pintor tímido mas muito válido. Era um homem de caráter. Era meu amigo. Viveu entusiasmado com cumprir o sonho que o pai tinha de deixar uma casa museu, recolhendo como lhe foi possível o seu impressionante espólio. Acabou vivendo angustiado pelo impasse criado no acordo sempre mal-amanhado com a Câmara Municipal de Vila do Conde.
Não imagino a tristeza em que terá falecido por ficar tal espólio à deriva, digo, inevitavelmente condenado à dispersão. Como ficará a casa vulnerável à adulteração, construção, descaracterização, desmemória. Um revoltante desenlace.
(...)
Custa-me pensar que a ausência do José Alberto signifique o fim do sonho porque, acreditem, leva a um empobrecimento grave de Vila do Conde e do património de todos os homens.
(...)
Fico revoltado com esta situação, arrastada desde os anos 80, feita de promessas incumpridas, feita de uma espera insuportável. Fico triste que a morte seja apressada, que não tenha dado tempo à já longa paciência e à conquista. É uma merda a política da cultura. Uma política de segunda, medrosa, tão falhadora.
(...)
Vai estar mais desprotegida a Vila do Conde dos nossos dias. Correrá o risco de se desfazer de uma parte preciosa da sua obra. Perde-se. Perde-se Vila do Conde com a morte de uma pessoa resistente assim.
Estou fora. Regressarei triste, zangado, pobre. O natal da minha cultura estará de luto. Por José Alberto dos Reis, por Julio /Saúl Dias, por nós.
(...)
É uma pena. Devíamos todos ter sido mais ferozes. Temos a obrigação de uma maior ferocidade para um assunto assim.»
EXCERTOS DE UMA CRÓNICA DE
VALTER HUGO MÃE
PUBLICADA NO "JORNAL DE LETRAS"
EM 26 DE DEZEMBRO DE 2012.
NOTA: ALGUNS FRAGMENTOS DO TEXTO
FORAM DESTACADOS
POR INICIATIVA DOS EDITORES DESTE SÍTIO.
Conjuga ensaio, criatividade, afetos, deslumbramentos e memórias, o livro Julio / Saúl Dias — Um Destino Solar, de Maria João Fernandes, editado pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda. Uma nova edição desta obra (2004) ganhou espaço alargado, inserindo, pela primeira vez, uma pequena antologia de poemas de Saúl Dias, ilustrados por si mesmo, criador que, todavia, para as artes plásticas escolheu o nome Julio (saído do completo Júlio Maria dos Reis Pereira, mas gostava de não acentuar a primeira vogal de Julio). Destaque-se, igualmente, uma fotobiografia e uma bibliografia atualizada do poeta e pintor nascido em Vila do Conde, irmão de José Régio.
«Foi uma felicidade enorme poder, através deste trabalho, homenagear Julio / Saúl Dias, dois nomes da mesma pessoa, de alguém que continua a ser uma referência pela mensagem intemporal», sublinhou-me Maria João Fernandes na ocasião do lançamento. Para esta especialista, «na pintura de Julio (como na sua poesia) dá-se o reencantamento da modernidade».
Com esmerada qualidade gráfica, a obra integra (também pela primeira vez) poemas evocativos do pintor-poeta, nomeadamente de Sophia, José Augusto Seabra, José Gomes Ferreira, António Salvado, Albano Martins, António Ramos Rosa, Maria João Fernandes e Gonçalo Salvado. A obra, prefaciada pelo prof. Perfecto E. Cuadrado, foi apresentada por Pedro Roseta e Rui Mário Gonçalves, na Galeria São Mamede, em Lisboa, onde nesse mesmo dia se inaugurou uma exposição celebrativa da força criadora e do imaginário do autor d'O Menino e a Ave. O álbum acolhe, também, entre outros, desenhos, aguarelas, cartas e poemas de Julio / Saúl Dias dedicados e dirigidos à ensaísta Maria João Fernandes, nos anos 70/80. São diálogos de sensibilidades límpidas, conhecedoras da linguagem do belo e do quanto esta pode dilatar horizontes (consciências) culturais.
De Julio / Saúl Dias — Um Destino Solar foi ainda concretizada uma edição especial (275 exemplares), que inclui uma serigrafia feita por Rui Alves, a partir de um original inédito de Júlio; a impressão está autenticada pelo Centro Português de Serigrafia e por familiares do pintor, constituindo hoje uma valiosíssima raridade bibliográfica.
O universo sublime de Julio surge-nos, cada vez mais, como uma viagem que nunca termina, num movimento intimista não alheado do mundo-outro. Os caminhos do artista são esses, de reflexão e sonho, onde o pintor-poeta atira «um braço ao ar» para prender «uma estrela». Julio reinventou o mundo.
• "FAMÍLIA". Intitula-se assim o óleo sobre tela que reproduzimos na abertura deste texto. Pertence à coleção do cineasta Manoel de Oliveira e sobre o notável quadro escreveu José-Augusto França: «Nunca uma família assim com tanta felicidade se pintou em Portugal. [...] A própria cena, com a cidade do lado de fora da janela, prédios empinados na altura, resume essa satisfação, do tocar corneta, do pintar e do simples viver — imagem nacional, repita-se, da nossa rara felicidade...»
• "A IMAGEM QUE DE TI COMPUS". Esta frase extraída da obra poética de Saúl Dias foi escolhida para título da grande exposição dedicada a Julio, que pode ser visitada de 18 de janeiro a 7 de abril no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian, em Lisboa. A mostra incide sobre a época primordial de Julio, quando o percurso pictórico do artista se identificava com o surrealismo e o expressionismo.
© MARIA AUGUSTA SILVA
Fotografia de ANTÓNIO COTRIM por especial cortesia
De onde nasce a linguagem do gesto? Do princípio do ser humano, pode dizer-se. E por que não antes dele, se ela é, em si mesma, uma força irreprimível da natureza? Mas foi o ser humano, sem dúvida, quem dela melhor se apropriou para dar mais força e maior clareza a tumultos de sentimentos que, ditos de outro jeito, poder-se-iam perder no rebuliço das palavras, quantas vezes mastigadas, quantas vezes engolidas sem conseguirem espaço no céu ou no inferno das nossas almas.
Pouco importa, então, descobrir o sexo dos anjos. Muito menos se encontramos alguém que do silêncio do gesto, dessa linguagem universal de mímica chamada, faz um universo de sonho. De um sonho que pode doer, mas que não deixa de o ser na beleza e na ingenuidade da sua conceção. E Marcel Marceau foi esse alguém. Um gigante da vida. Um mestre inteiro, cinquenta anos a comunicar, por meio de uma arte única, os amores, os gritos, os desesperos e os encantamentos de mil rostos que são mil corações multiplicados até ao infinito da Terra.
A mímica é a arte de identificação do Homem com as personagens, os elementos e os objetos. Assim o dizia o criador de Bip, essa "personalidade" de rosto de linho que nos agarra pelos olhos, como se fosse um íman, e nos faz correr todos os caminhos. Os mesmos que Marcel Marceau trilhava no seu Jardim Público ou no Jogo da Corda, magnetizando-nos.
A mímica é isso – e sempre ¬– quando tem um intérprete com a estatura de um discípulo de Charles Dullin e de Etienne Decroux. Um discípulo nascido em Estrasburgo e aplaudido em todo o mundo: Marcel Marceau, um grande senhor da pantomina, muito cedo fascinado por Charles Chaplin.
Desde 1944, Marceau fez nascer do seu talento mais de seis dezenas de pantominas e participou em sete longas-metragens, entre as quais, Barbarela, de Roger Vadim, Shanks e o inesquecível Silent Movie, de Mel Brooks. Inesquecível por tudo e mais ainda porque nele se ouve a voz de um ator do silêncio, Marcel Marceau, dizer um curto e incisivo non, em resposta a um realizador que procura artistas para o seu filme mudo. Desconcertante este "monstro sagrado" da poesia gestual, que leva o seu génio também à pintura, espalhando, nas cores e nas formas, as mesmas sementes lunares e terrestes, tão longe e tão próximas das ambições mais queridas.
Em 1969, o público português teve a oportunidade de o ver de perto, na sala do Tivoli. A ele se referia, por essa ocasião, Tomaz Ribas, sublinhando que «Marcel Marceau é hoje um dos nomes de maior repercussão e prestígio universais».
Esse prestígio reforçou-se em cada atuação do antigo aluno da Escola de Artes Decorativas e do Conservatório de Limoges. Marceau nunca deixou por mãos alheias os seus inesgotáveis recursos. Do patético à vedeta desportiva, do herói ao escultor, do ator trágico ao caçador de borboletas, soube manter um traço de união entre o palco e as plateias universais. Os espectadores do nosso país voltaram a dispensar-lhe o calor das palmas em 1982 e 1985 (no Casino do Estoril e no Teatro São Luiz), e uma última vez em 1990, de novo no Estoril.
A máscara de Bip
Nos primórdios da sua companhia mímica, Marcel Marceau criou Bip, que o público jamais pôde desligar do seu progenitor. Um e outro confundem-se. Marceau dizia frequentemente que «Bip é uma personagem vogando ao sabor do tempo e do quotidiano; é um olhar maravilhado pelos mistérios e vicissitudes da odisseia humana». É, afinal, a odisseia humana que o mimo torna transparente no silêncio do gesto. Como se nesse silêncio não fosse permitida a opacidade dos corpos.
Costuma aludir-se à semelhança entre Bip e Pierrot, pela mesma candura e humanismo. Marcel Marceau explicou um dia a Pierre Desgraupes, numa das suas raras entrevistas, que «Bip manteve a máscara branca de Pierrot, mas criou a sua própria vestimenta». E com ela cruzou todas as fronteiras, de França a Israel, da China a África, da então União Soviética aos EUA, da Holanda ao Líbano, de Espanha ao Brasil, da Austrália a Portugal. Com a vida de Bip coabita harmoniosamente uma outra figura de Marceau: Don Guan. São dezenas de personagens que nos enleiam, reduzindo os rigores gramaticais à força dos sentidos.
Que mais se poderá dizer de Marceau?
Registando palavras ditas em tempos diferentes, deixamos neste espaço o retrato possível de um homem que transpôs todos os limites da comunicabilidade. Fê-lo, paradoxalmente, sem voz... Ou porque tinha uma voz por dentro dos nervos de cada gesto.
Questionado sobre o que desejaria ainda representar por mímica o que as palavras não dissessem, Marceau limitou-se a responder: «O tempo que passa. A mímica vive, em quatro minutos, a adolescência, a velhice e a morte de um homem». Assim aconteceu num dos momentos magistrais do seu reportório. Assim era quando o víamos no seu Jardim Público ou no Pesadelo do Larápio, ao admirá-lo como Fabricante de Máscaras ou nas personagens de David e Golias, ao senti-lo por dentro de toda a odisseia humana, no mais ínfimo pormenor. Chegava a parecer que algumas das suas coreografias tinham a velocidade da luz. Mas não fugiam. Ficavam, não se desvaneciam.
Foi, ainda, a Pierre Desgraupes que Marceau respondeu singularmente, ao ser-lhe perguntado se existia alguma coisa importante que a mímica não pudesse exprimir: «Existe, sim. É a mentira. Para a mentira, nada melhor do que a palavra».
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Memórias de afetos e culturas. Vozes, poemas e músicas que, juntas em CD, trazem-nos ritmos de uma Luanda das décadas de cinquenta e sessenta, em jeito de serenata. Eleutério Sanches, alguém que sempre trabalhou com paixão as cores da pintura e das melodias. Poeta, ainda. E uma voz que diz cada palavra como se fosse um glóbulo vital do seu sangue. Um trovador. E com ele seu irmão, Carlos Sanches, também nesta produção discográfica. Um percurso de vivências e cumplicidades, porque «o segredo somos nós» e «segredo são os teus seios / que escondem minha mukanda». Versos de Canto Híbrido, música, letra e interpretação de Eleutério. Uma voz sem tempo ou com todo o tempo de uma Luanda «à luz do luar». De uma Luanda-mulemba, sonhando a paz e a liberdade, partilhadas, comungadas. Os ritmos e os sabores tropicais igualmente cantados por Carlos Sanches, com «rimas felizes», com «delírios de liras», canto quente e doce, «os sons repetindo / reco-reco rindo».
A motivação aconteceu. E deu-se o re(encontro). Afinidades musicais. Uma estética melódica de incontornável qualidade. Com a voz, ainda, de uma grande senhora da rádio e da canção: Sara Chaves. Interpreta, a fechar este CD, Mulata É a Noite, uma das mais célebres composições com letra de Adelino Tavares da Silva, musicada por Ana Maria Mascarenhas. Um êxito que perdura.
Ninguém o cantará nunca como Sara Chaves: «(...) A noite / tem um travo de maboque / e a mulata é um retoque / na polpa da natureza». Uma voz inigualável, a de Sara Chaves: «(...) A noite / é como um pano de chita / que foi esteira de rebita / deixou missanga no chão». Um tema com orquestração de Casal Ribeiro, numa justíssima homenagem.
Escute-se, entretanto, «Coração do Pescador», na voz de Milita, a menina que foi crescendo com os sons do mar a bailar com os coqueiros, numa sensualidade festiva e ao mesmo tempo nostálgica. Refira-se, do mesmo modo, a presença de Vasco Rafael e Teresa Araújo, um duo nesta Serenata Luanda. Apesar de estar já muito doente, a voz de Vasco alcançou a força de um imbondeiro. Musseque Saudade terá sido, assim, a sua última gravação, pouco tempo antes de a morte lhe calar a pujança do timbre e das emoções.
A sublinhar, neste disco de «afetos intemporais», a inscrição de um poema de Cochat Osório, com música de Carlos Villaret, numa interpretação de Carlos e Eleutério Sanches: «Anda ver a minha terra meu amor / anda ver / anda ver que hás-de gostar». Um espaço plural num canto de lembranças e no qual participa, também, J. Conceição Gouveia, autor da letra e música de Serenata a Luanda; e o poema de Kuxixima Diámuxina a dar um toque especial à composição As Belas de Sangandombe. E uma outra letra, de Armando Miranda, que se tornou universal, musicada por Eleutério Sanches: «Luanda / debruçada sobre o mar / onde as ondas uma uma (...)». Eleutério, a voz do pintor das cores mestiças.
A «alquimia da árvore»
(Agosto 2004)
A intensidade pictórica de Eleutério Sanches continua a afirmar-se de modo surpreendente. Telas e desenhos (ultrapassam uma centena) integram esta mostra antológica [no Palácio Galveias] de um artista que tem alargado a sua criatividade também à poesia e à música, conjugação harmoniosa de diferentes estilos em que nenhum deles é secundário. Dialogam com um ideal estético que em Eleutério se cumpre na forma e conteúdo. Uma e outro consubstanciam uma preocupação com o belo conceptual, sem refutar, todavia, a vertigem humana, por vezes expressa na máscara, em particular a de uma negritude celebrada pelo lado mais luminoso do ser: o da vibração do corpo que sonda os mistérios, o da alquimia, o do ventre e do sémen criadores e transformadores.
«Não poderia realizar-se uma exposição desta dimensão se não tivesse havido em mim, sempre, o propósito de enriquecer a pesquisa laboratorial, procurando o equilíbrio com a temática», sublinhou-me Eleutério Sanches no dia inaugural. É, de facto, um longo e sólido percurso o deste pintor-poeta que se projetou internacionalmente de modo discreto, sereno, próprio de si, da sua coerência. «Sou um pintor ligado às raízes, às de uma África fecunda e generosa, contudo julgo haver em mim, ao mesmo tempo, uma universalidade que se dá naturalmente. Quanto mais se busca a tradição mais completos nos tornamos.»
Na sua poesia como nas artes plásticas manifesta-se um sentimento circular, cosmologia onde tudo é começo e recomeço. «Ninguém acaba nada. O mundo não é o lugar de acabar mas sim o de começar do grande Almada.» Almada Negreiros que não se cansa de referenciar. Influências? «Nenhum artista precisa de preocupar-se com a escola, mesmo que possa incluir-se numa dada arrumação estética. Somos um repositório de muitas influências e não tenho preconceitos em relação a isso. Se alguma influência acontece é porque há afinidades, ainda que se deem ao nível do inconsciente», adianta-me. Realça, porém: «Em toda a criação há algo de misterioso e aquilo que projetamos será, sempre, o reflexo da nossa inquietação mais profunda».
Eleutério Sanches, a força telúrica, a «alquimia da árvore», o «elogio da matéria». O da «grande peregrinação» que se realiza nas mãos do homem e da terra, na semente e no fruto, e na busca. E para quem «o ato criador é doloroso mas apaziguador». Porquê? «Porque chega a ser terapêutico quando nos confrontamos com dimensões contraditórias e estas se entrecruzam e são complementares na senda do conhecimento».
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MANIFESTAMOS A ELEUTÉRIO SANCHES O QUANTO NOS HONRA
REGISTAR AQUI O POEMA INÉDITO COM QUE DISTINGUIU ESTE SÍTIO DE ENCONTRO E DE PARTILHA
A festa dos Caretos em Podence
Fotografia de Armando Cardoso
Entre o cómico e o trágico, o profano e o sagrado, assumem mitos, deuses e diabos. Com todos os seus excessos protagonizam a caracterização e a transposição do «jogo da vida». As máscaras são, porventura, testemunho maior dos tempos, civilizações e culturas. Já assim era antes de Cristo. Continuam a ser a expressão de tradições e emoções, um cerimonial que nos mimetiza, teatro que em todos os palcos nos oculta e desoculta.
O álbum Máscaras em Portugal, de Helder Ferreira e Teresa Perdigão, oferece-nos suporte bastante para melhor se entender, sociológica e culturalmente, o disfarce com o qual o ser humano procura exorcizar os seus cultos, sonhos e medos, contradições, amores e desamores, alegrias e lutos, sem esquecermos a função de crítica que a máscara desempenha com arte e eficácia.
Máscaras em Portugal é um trabalho de pesquisa cobrindo diferentes regiões do País. Fala-nos de máscaras com gente dentro, em Bruçó ou Freixedo, no Sobrado ou Vale de Ílhavo, em Constantim ou Bemposta, no Vale de Porco ou em Vinhais, noutros sítios que não deixam os seus demónios e deuses por mãos alheias. Seja madeira, cortiça, palhinha, folha-de-flandres, rendas, plástico, lãs, sedas, papel, tudo é útil para a transfiguração e a subversão de que são exemplo festas como o Carnaval. Mas há mais: da Festa dos Rapazes à Bugiada, da Festa do Chocalheiro à Festa dos Velhos, do Dia dos Diabos à Festa dos Caretos, podem ver-se em Portugal máscaras contrastantes que na sua (aparente) gratuitidade e folguedos são um prodígio nos campos do imaginário e da própria realização artesanal.
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OUTUBRO 2004
O universo pictórico de Roberto Chichorro nasce de uma espécie de silêncio habitado por olhares que idealizam um sentimento superior: o do corpo possuído por um violão ou um pássaro, por uma serenata de «muitas cordas» ou por uma lua de enamoramentos. Essa fecunda magia que produz o prazer estético, a unidade da carne e do espírito, do subjetivo e do real. É com tal universo que o pintor moçambicano volta a contactar mais diretamente o público lisboeta, apresentando quinze novas telas com os seus azuis, amarelos, verdes e vermelhos conjugados por rostos de memórias e caminhos em que a poesia se materializa nos fluidos oníricos e sensuais, mas protagonizando igualmente uma reflexão do ser; do homem e da mulher envolvidos por uma musicalidade (próxima do traço de Chagall), que interpela mesmo quando afirma a autoridade do imaginário, fascinante nas emoções contidas, na expressão formal de sistemas e de reações estéticas comunicantes.
Depois de quatro décadas de entrega às cores e aos pincéis, apurando sentidos, Chichorro, vindo do útero-África que nunca renega, cria, no entanto, os seus ritmos universais, por certo de lembranças feitos, contudo de memórias não restritivas. «Vamos tendo a nossa forma de dizer, e, para mim, pintar é conversar - esses os meus diálogos», diz-me.
Enquanto forma ancestral de comunicação, as artes plásticas, nomeadamente a pintura e a escultura, são, no espaço africano, em particular Moçambique, uma «corrente forte, e de gente nova também a afirmar-se com muita qualidade».
As cores telúricas de Chichorro devem alguma coisa à sua terra-berço? Responde-me: «Por natureza, somos um país garrido, todavia não procuro as cores das minhas telas para que sejam África. Pinto como sinto. Sou um otimista com os meus momentos de tristeza, caminho por onde todos andamos.»
Roberto Chichorro trabalha horas a fio, sozinho, aplicado a «muito tempo de oficina». «Mas, se aparecer alguém e der para irmos conversando, então conversamos.» Uma coisa é obrigatória no seu atelier: «Trabalho sempre com música, regra geral clássica, muitas sonatas.» Não se julgue, porém, que Chichorro se fica por Schubert, Beethoven ou Vivaldi. «Há momentos em que me apetece música trepidante, africana e brasileira.»
A obra de Chichorro conheceu, entretanto, uma edição em álbum de esmerado tratamento gráfico, intitulado Roberto Chichorro. O volume reproduz diversas telas do pintor de que poderemos destacar Serenata em Azul, Pastores em Noite Enluarada, Noturno com Pássaros em Verde, Tempo de Festa com Lua ou as séries Anjos de Comer Peixe Frito e Os Musiqueiros. Realce, ainda, para Concerto de Passarinheiro ou a série Cabo Verde.
Edição bilingue (português e inglês), este álbum inclui textos de Ana Mafalda Leite, Maria Alexandre Dáskalos, Luís Carlos Patraquim, Edgardo Xavier, Luís Carmelo e Arlindo Barbeitos. As fotografias do pintor são assinadas por Danilo Guimarães.
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DEZEMBRO 2000
Baralhar e partir. Saca-se o trunfo: dama de paus. Aquele poderá ser um jogo contra o tempo. Ou contra nada quando o tempo, já sem a vertigem dos verdes anos, ainda tem a razão dos afetos. Talvez um jogo a favor do companheirismo e das lembranças, que são o património sagrado de quem viveu a glória das palmas ou o frenesim dos bastidores. Um encontro com gente de muitos palcos, na Casa do Artista.
Portas abertas voltadas para um teto redondo. Branco. Um círculo que reafirma a união de todos os pontos ou a união de todos os fios da alma. Está escrito: «Não é permitido envelhecer.» Entra-se nas veias de quatro palavras vitais, toma-se-lhes o pulso e descobre-se uma equivalência: É proibido não amar. «Tenho uma unha encravada no pé esquerdo. A minha mulher pisou-me sem querer, mas isto dói.» Logo o gesto terno de Manuela Maria. «A enfermeira vai tratá-lo, senhor Vilar.» Alberto Vilar sossega. Guitarrista foi ele, mãos ágeis, afinando as cordas para trinados de cortar a respiração. «A minha guitarra... Ai, dói-me a unha do pé, vai ficar bom, pois vai?!»
Na sala, perto de uma grande e sóbria árvore de Natal, continua-se a dar cartas e pedras de dominó. «Jogamos a feijões, assim um faz-de-conta; a gente distrai-se e ri-se, que dá saúde.» Pegar num sorriso e içá-lo serenamente no coração das coisas, haverá maior dignidade? Pegar numa lágrima e falar sem azedumes do corpo e do espírito, do trabalho dado e de mil histórias de uma existência, haverá maior dignidade?
Atores, músicos, bailarinos, pintores, coristas, cantores…
Os residentes na Casa do Artista são um mundo unido nos labirintos da idade e dos achaques e das alegrias possíveis. Atores, músicos, bailarinos, pintores, coristas, cantores, vozes da rádio e televisão, gente do cinema hoje no mesmo palco, o de uma solidariedade dinâmica e libertadora. «É um paraíso esta casa que a Apoiarte nos deu», dizem-me. «As recordações da vida andam cá dentro de nós e somos estimados.»
Uma outra voz: «Não deixem morrer o Parque Mayer. Havia sessões de revistas e comédias com salas esgotadas até de madrugada.» As luzes da ribalta, os cenários, os figurinos. Memórias em desfile. Por detrás do espetáculo outros artistas a coser mangas, bainhas, a ajustar as cinturas, a subir e a descer os coses, com cetins e organdi a escorregarem por entre as linhas e o dedal. Gente apressada mas meticulosa a cuidar das maquilhagens. A festa de uma cultura hoje infelizmente maltratada. «Talvez renasça, um destes dias.» Marlène, confiante. Ela que foi do circo, acrobata, equilibrista. Olhos claros. «Os equilibristas são como os jogadores de futebol: têm uma carreira curta, só que não ganham como eles. Quem faz aqueles números sabe o medo que se esconde debaixo da pele.» Depois, o peso, os ponteiros da balança a vingarem-se. Saída de cena. Abre-se a plateia das visitações. Circos e inesquecíveis noites no Coliseu! Os saltos mortais hoje num triplo pensamento. Ilda, contorcionista. «Penso muito, com saudades, às vezes tristeza e solidão, mas nem tudo são luzes apagadas se não nos esquecerem.» De saudade e compreensão é também o olhar de Maria Beatriz, viúva de uma voz de sempre, a de Luís Piçarra.
Camisa em xadrez azul e branco, Bento José da Câmara, bailarino principal em inúmeros espetáculos do São Carlos. «Tudo devo à professora Margarida de Abreu. Se no meu tempo já houvesse vídeo, hoje poderia recordar o que fiz. Só tenho fotografias, mas dão para ver como era jeitoso!» Em silêncio, o ator brasileiro Spina, rosto magro, e um apego às tábuas do Teatro Maria Vitória.
Fernando Gusmão, ator, encenador… um "galdério"…
Pelo corredor envidraçado vê-se a praça ajardinada da Casa do Artista. «E a rua, olhe além!, eu ando muito por aqui, gosto de olhar lá para fora, galdério como sempre fui, rua é comigo!» Este senhor alto, 81 anos, passeia-se apoiado à bengala acastanhada. Fernando Gusmão, ator e encenador. «Nada de saudosismos. O presente é que vale. Só me chateia este ácido úrico, que não me deixa ir para a rua, pá! Desculpe, minha senhora, eu disse pá, desculpe.» Nada a desculpar. «Ok, é das minhas, a gente fala com amizade, obrigado.» Gira o corpo para a esquerda, fazendo mais força na mão direita, que atira a bengala um pouco para a frente do pé. «Sabe o que é ácido úrico? Não me deixa andar por aí nas curvas, sempre fui um galdério, verdade, até me estreei em Curva Perigosa», no Teatro Nacional. Fernando Gusmão escreveu ainda A Fala da Memória. «Os atores falam muito. Têm coisas p’ra contar.»
Os artistas falam. É preciso que falem mais e mais, e nos chamem e nos sintam no seu palco sem idade. E nos ensinem como um beijo de amor acontece no amparo dos outonos. Um beijo como o do violinista Francisco Balsa a apaziguar ainda os ciúmes de Nice, grisalha, passos curtos, arrimada ao andarilho.
Outros três rostos, bem-dispostos. Cecília, Maria José, Ilda Figueiredo. Corpos que bailaram no teatro ligeiro. A beleza, a agilidade e o ritmo das coristas. A sua imensa graciosidade no espetáculo. Que fica depois das belas pernas? «Ficam as artroses, maldita coluna!» E fica «o desejo de se estar vivo e com saúde, e deem-nos festas. E ficam... ficam as palmas. Quem alguma vez as ouviu nunca mais as esquece.»
Chegam ao refeitório para o jantar. Há quem mude de indumentária com um sentido de vida e de requinte e de prazer. No prato, sonhos de peixe. Dentro do peito, sonhos do palco. Trunfo, humanização. Palmas. Bravo!
Sonho de muitas décadas, ganhou corpo e alma. A Casa do Artista é um exemplo de como a solidariedade passa pela dignidade. Manuela Maria, uma das nossas mais prestigiadas atrizes, traduz o sorriso, o amor e o respeito pelo outro. Veja-se a imagem com o poeta e dramaturgo António Manuel Couto Viana, também ele a restabelecer-se de uma maleita, mas a caminho do Pavilhão do Futuro para falar de artes. A realidade que é a Casa do Artista nasceu da Apoiarte (Associação de Apoio aos Artistas). Justo sublinhar-se aqui o empenho de Armando Cortez, o estímulo de Raul Solnado e a determinação dos sócios fundadores, entre os quais Maria Barroso, Cármen Dolores e Jacinto Ramos.
As lágrimas de Júlia Babo
Abeiro-me, mais com vontade de ouvir que de fazer perguntas. Os olhos de Júlia parecem-me ter o fundo misterioso dos seus quadros e, ao mesmo tempo, uma resignação avessa ao espírito de intervenção e de rebeldia que foi – e será sempre – o de Júlia Babo. «Uma trombose atraiçoou-me há dois anos. Nunca mais vou pintar, julgo que não..., não sei.» Emocionamo-nos. Uma emoção dolorosamente lúcida.
Júlia prende as minhas mãos na concha da sua mão direita. A caneta fica parada em cima do bloco de notas. Aproximo-me da cadeira de rodas. Falamos do teatro, para o qual a chamou Amélia Rey Colaço. Trabalhou no «Nacional». Falamos de pedagogia. Recordamos o Porto, onde nasceu em 1930. Falamos da PIDE, que a perseguiu. Viajamos pelo tempo, pelas suas cerâmicas e pelas cantigas, que na sua voz buscavam as raízes do folclore. Falamos das suas tapeçarias e dos azuis e vermelhos das suas telas. O traço largo, num alucinante movimento de vida, quase uma sede de absoluto ou talvez a fuga para um mundo superior, o da elevação de todos os sentidos. Ouso uma pergunta quase sussurrada: «Já tentou pintar em telas mais pequenas com a mão direita?» «Não consigo. A minha natureza é de espaços sem limites, os da grande viagem das cores para o abstrato, onde se dá a união e a transparência de tudo.»
Júlia deixa as lágrimas saltarem para a gola alta da camisola de Inverno. Preocupada e terna, uma empregada do refeitório quer saber: «Algum problema, senhora dona Júlia?, nunca chora...» Diz: «Chora-se tanto por dentro... Estou muito bem a conversar.» Vejo o queixo de Júlia Babo a estender-se com os lábios contraídos. Admiti que estivesse cansada e não quisesse falar mais. Estende mais a boca e aperta os lábios, levanta a mão direita em direção à minha cara, e só então percebo: era um beijo-testemunho de entendimento e partilha, que nunca mais esquecerei.
«Estão a chegar as minhas sobrinhas, que dia feliz, hoje!» Augusta, Nela e a sobrinha-neta, Alexandra, com dois anos. Afasto-me com um adeus de quem fica. Digo: «Não abandone os azuis e os vermelhos e o movimento largo das suas telas.» «A minha fé é só assim-assim. Mas quero muito voltar a caminhar e a pintar telas grandes. A fisioterapia deve ajudar-me, se calhar...» E a Casa do Artista tem uma bela sala, também, para as artes plásticas.
Na mesa de Júlia Babo está ainda Violete, que pertenceu ao corpo de baile do São Carlos. «Agora não ando.» Sorri, porém, ao lembrar a Festa da Aranha. «Tenho bicos-de-papagaio.» Sotaque francês, o de Violete. «Gosto da Casa do Artista, com salas e quartos grandes, muita claridade e não estamos sós.» Uma casa. Um lar no sentido mais nobre. Com pessoas a quem se dá amor e vida, respeitando a sua individualidade. A humanização é isso.
© MARIA AUGUSTA SILVA
Cada povo com os seus usos, artes, credos e sabedorias ao longo de séculos, património único, transmissível. Identidade total das pessoas. Porque as pessoas são de lugares e de culturas ainda que inseridas na dinâmica planetária que as move e transforma e, até, reinventa. De lugares e culturas, de rituais e tradições nos dá memória uma esmerada coleção com o título Festas e Tradições Portuguesas (Círculo de Leitores). Texto de Soledade Martinho Costa e fotografia de Jorge Barros. A introdução geral à obra é assinada por Clara Saraiva.
Os oito volumes da coleção convidam-nos para uma aliciante viagem às artes e aos hábitos festivo-culturais do profano e do sagrado nas mais diversas zonas do País, porventura com maior expressividade nos meios rurais, também eles sujeitos, por fatores vários, a grandes mudanças. De sublinhar o notável trabalho de investigação que preenche uma obra de incontornável valor histórico-cultural, com uma escrita fluente, rica na simplicidade, abrangência e rigor. A par do belo tecido textual, eis imagens que traduzem, em si mesmas, uma recolha cuidada e de excelente qualidade artística, testemunhos perenes de vivências e memórias. Re-encontros e celebrações que não se ficam pelo passado, porquanto desta obra emerge uma relação profunda com todos os tempos e com todas as diferenças, simbiose que alicerça um corpo identitário.
Do Minho ao Algarve, das Beiras às ilhas dos Açores e da Madeira saboreia-se um espantoso universo etnográfico, convive-se com gente que sabe protagonizar e partilhar afetos e a sua história, a nossa história. Gente de cânticos, de romarias, de arraiais e procissões, gente que tem nas veias a força do teatro, o artesanato, os paladares, os aromas, os foguetes e os andores, os celeiros e as rendas, os linhos e as azenhas, as máscaras da irreverência, as superstições e a música, os bailes e as travessuras.
Assim se recuperam e contam, com vivacidade, ritos e alegorias, solenidades e folias. Assim se contam raízes socioculturais (e seculares) de um povo, num trabalho de pesquisa que se afirma como uma obra de referência para todas as gerações, para as do futuro, também.
DEZEMBRO 1993
Lisboa gosta de madrugar. Talvez não chegue, sequer, a adormecer completamente. Calderon Dinis procura-lhe a voz e o cheiro manhã cedo, quando tudo está mais doce e menos gasto. Quando tudo parece mais verdade.
E nada melhor do que os seus desenhos e aguarelas para nos devolverem memórias ou transmitirem Tipos e Factos da Lisboa do Meu Tempo. Assim se chama o álbum de Calderon Dinis, notável obra distinguida, em 1986, com o prémio Júlio de Castilho, do município lisboeta.
Lisboa da mulher da fava-rica, das cegadas, dos quiosques e funileiro à porta; Lisboa fadista, do ferro-velho, do amolador e do boneco à la minuta; da ginjinha e das iscas, do fado cacilheiro; Lisboa do ardina mais veloz do que o vento; das modas e duelos; do doutor Anacleto, sabedor das maleitas da família inteira. Lisboa dos aguadeiros, das capelistas, das tertúlias e revoluções. E dos tremoços. Lisboa das fragatas largadas no Tejo. E dos «palhinhas» em terra. Dos namoros contrariados. Perseguidos. Do beijo roubado junto à escada.
Viagem grande, esta oferecida por Calderon Dinis. É como se nos levasse pela mão, sorrateiramente, até aos tempos sem idade. Olhem ali o azeiteiro-petrolino! Olhem azeitona nova! Quem quer figos?...
Lisboa admiravelmente contada por um amante de sempre. Apesar da boa-vai-ela!
Nascido na Travessa da Paz
A idade deste homem não tem somas. Antes a força de viver. Entrevistámo-lo quando acabara de festejar 91 anos. Calderon Dinis. Alberto Maria, também. Batismo na Igreja de Santos-o-Velho. Um homem de paz, na Travessa da Paz nascido. Lisboa a fazê-lo cair em todas as tentações. E o coração a render-se-lhe. Apaixonado. Irremediavelmente.
Escreve. Novela. Conto. Poesia. Fez romance policial usando o anagrama Mac Dennis: «O policial estava na moda, mas tinha de ser abalizado com nome a cheirar a estrangeiro». Desenha. Pinta. Por toda a sua arte, pelas mil aguarelas de lugares e gentes da cidade das colinas, repassa o movimento envolvente de uma memória única, a contar em cada traço os destinos finitos de uns e os vultos perenes de outros. É o jornalista (mais de meio século dedicado ao Diário de Notícias), a descrever factos e lembranças, sinais de uma carreira amada no bom e no mau, no risco e na vontade de acreditar.
Rosto largo num corpo alto e firme, Calderon Dinis, dois casamentos, duas vezes viúvo, não gosta de estar zangado mais de dez minutos. Eis um dos segredos da sua invejável juventude. Outro, liga-se diretamente ao sonho: «Quando são cor-de-rosa, é uma maravilha, que a gente até embirra de acordar». Às vezes, olha-se ao espelho e diz como o barbeiro da anedota: Também me saíste um bom malandro!
E logo segue, passo ligeiro, ruas fora, ou de autocarro com a senha de reformado até às cinco da tarde. Dos Olivais de hoje à infância do Bairro Alto, desfia tertúlias num diálogo íntimo. Há sempre um sítio por descobrir na forma de olhar. O Largo do Chafariz de Dentro, em Alfama; a Rua Vieira Portuense, em Belém, onde cada prédio é uma época. Depois, as telas. Um canário a cantarolar. E Calderon com o fado num assobio. Um mar revolto a emergir das tintas e pinceis.
Lisboa, a musa eterna de um homem que tem uma só idade: a da paixão.
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