Victor Oliveira Mateus

A perfeita unidade interior
na grande busca do poeta



Maria Augusta Silva

Novo livro de poesia, de Victor Oliveira Mateus, reafirma uma voz singular na construção do poema enquanto corpo de um EU que, por vezes, se desdobra na fala (interpelando o Outro que é o próprio EU, nomeadamente no domínio das intertextualidades), criando assim a perfeita unidade interior do poeta. Aquilo Que Não Tem Nome prolonga a busca de Victor Oliveira Mateus, essência da sua escrita, agora mais dirigida à pacificação, ao despojamento, do que à condição de prisioneira da dúvida.
O poeta imenso que Victor Oliveira Mateus é sabe hoje escutar «(…) um ruído na embriaguez do mundo», sentir «um cheiro a fim» ou lidar com a «raposa dissoluta», o espectro da morte (magistralmente metaforizado no poema «A Visita Adiada»), abdicando de qualquer fingimento gratuito, antes dando lugar e espaço largo à serenidade reveladora da inteireza do Ser. Porém, o poeta não deixa que essa serenidade seja um sentimento inerte. Olha à sua volta, vê, intimamente participa, desconstrói os seus registos com ética, mestria, elegância. Interroga-se (leia-se o poema «Balancete»), propõe a reflexão, faz a sua reflexão serena, rente à ausência, porque, porventura, na ausência mais sofrida existirá uma luz, um caminho que intensifica o aprofundamento ontológico, atento ao «azul do céu» e, igualmente, observando os trilhos mais terrenos, mais próximos da matriz humana, humanizante.
A formação do poeta em filosofia, ganha, naturalmente, relevância, neste como em livros anteriores. Contudo, a substância do verso de Victor Oliveira Mateus tem em si a indagação primordial, a que se realiza por meio da palavra individual, fundando os sentidos do poema entre a metáfora e a realidade, ambas tratadas com delicadeza, depuração, um admirável labor estético.
Os poemas de Victor Oliveira Mateus (sejam os de amor ou de morte) escrevem-se, pois, letra a letra, sem pressa, cuidando de uma arte (a da palavra significante) que para ter a riqueza da simplicidade obriga a um trabalho, esse, também sem nome. Ou terá um nome: a grande busca. E talvez essa busca seja sempre a renovação de uma carta fechada.  
Com minucioso posfácio da investigadora Ana Paula Dias, a nova obra poética de Victor Oliveira Mateus integra quatro dezenas de poemas e conta com a chancela de Coisas de Ler.

Maria Augusta Silva



Registamos o poema que dá nome ao livro:


Aquilo que não tem nome

Aquilo que não tem nome
abriga-se no silêncio das ruas
acena no topo dos prédios
fala nas desabrigadas páginas
que o desalento me traz
Aquilo que não tem nome
invade-me o corpo
enlouquece as memórias
com que insisto este casulo
raiado de melancolia
Aquilo que não tem nome
oculta-se por entre sinais
e luzes de despedida
pedaço desse mistério
para lá da morte e da vida.

Victor Oliveira Mateus
(Ed. Coisas de Ler, Outubro 2O18)
  
   







ALICE VIEIRA

A matinal e grande Alice




Palavras, muitas, braços, muitos, abraçando-te com admiração e apreço, vão marcar com inteira justiça a homenagem que te é prestada na Casa da Imprensa (20 de Março, 2018). Celebrando a energia dos teus 75 anos, celebra-se igualmente a tua longa e luminosa carreira de jornalista e escritora. A esse enaltecimento me associo (nos associamos, eu e o Pedro Foyos), dizendo-te com simplicidade: parabéns.
Entretanto, Alice, levo a memória aos finais da década de setenta e por aí adiante, na Redação do DN, não por patético saudosismo mas por achar saudável ligar múltiplos e diferentes fragmentos da vida e encontrar a unidade de uma camaradagem e de uma amizade transparentes, incontestáveis.
Bom dia, Alice. Às vezes, antes das oito (entrada pela porta das oficinas), tu já a batucar, à velocidade da luz, na máquina de escrever (uma espécie de dinossauro neste século XXI), aproveitando eu também ao máximo as primeiras duas horas mais ou menos salvas da barafunda de um jornal diário, tendo somente como música de fundo o cantar fadista, voz linda de uma das senhoras que limpavam o que todos sujávamos, dia e noite, no ritmo frenético da notícia, da entrevista, da crónica, da reportagem, atirando à balda para o chão montes de linguados (famosa expressão na gíria jornalística), papel rasgado, inutilizado, apontamentos amarrotados (era assim, a cada época o que lhe pertence, pronto). Recordo o teu prazer de «cedo erguer», matinal Alice, indo a pé de tua casa, pelos cantos, recantos, encantos e encruzilhadas das Picoas, Saldanha, São Sebastião da Pedreira, até ao Diário de Notícias da Avenida da Liberdade, essa avenida onde cresceste, a Teresa Gomes te passeava ao colo e a Beatriz Ferreira apanhava-te a brincar na rua.
Deliciavam-te os cheiros de Lisboa pela manhã, girando, girando, falando com gente de todos os credos.
Visitei agora uma extensa entrevista/reportagem que tive o privilégio de realizar contigo numa tarde outonal de 18 graus, publicada nas páginas do DN (18 Novembro, 1993) e valorizada fotograficamente pela Ana Baião. Assinala o teu notável álbum Esta Lisboa, ilustrado com fotografias de António Pedro Ferreira (edição da Caminho). Bolas, Alice, correr Lisboa de ponta a ponta, de beco em beco, de pátio em pátio, de bairro em bairro, de miradouro em miradouro (tua confessada paixão), olha aqui, olha ali, foi preciso fôlego, livra!, fôlego e aguentar de cara alegre as bolhas nos meus desgraçados pezinhos. Desconfio que os teus pés estão protegidos por um escudo invisível… Valeu a pena, contudo. Tu és Lisboa, Alice. Em Arroios nascida (Av. Almirante Reis e daí abalaste com apenas um anito), quantos como tu (ressalvando embora o respeito e afeição a que têm direito outros distintos olisipógrafos) quantos, repito, saberão o teu jeito de sentir e contar a história física, social e cultural desta cidade? (Como vês hoje Lisboa? Tá bem, tema e debate para outra ocasião…).  
Continuas com essa pedalada? A propósito de pedalada, o nosso Presidente Marcelo que me perdoe porque duvido que te chegue aos calcanhares na loucura das tuas andanças por Lisboa e por todo o País, de escola em escola, de comboio em comboio, de apeadeiro em apeadeiro, com as tuas inimitáveis gargalhadas a reforçarem as peripécias dessas maratonas.
Fragmentos das nossas vidas. Uma vez, noite diluviosa na tua Lisboa e na minha Loures, armadas em Santas Bárbaras tipo INEM, entupimos os nossos velhinhos telefones (fixos), permanentemente «ocupados» devido às nossas sobrepostas marcações; tu, porém, conseguiste apanhar primeiro o meu número. Quando te ouvi, estás bem, estás bem, respirei fundo, uma gargalhada tua acabou por afugentar as horas trovejadas, os medos sumiam-se no meio da nossa tagarelice, os relâmpagos foram para o raio que os partiu, a paz retornou às nossas almas.
Lembranças sem fim: os postais enviados aos amigos de qualquer terra onde fosses (manténs esses clássicos mimos ou… adeus CTT?...); um ou outro encontro nosso, casual, no Luso, lugar eleito por Mário Castrim para apanhar ares e águas benéficas; ali me ensinou nomes de pequeninas plantas, folhas e flores, espécies singulares de gestação espontânea. Saudades, saudades.
Alice, não tarda, por outro lado, a tradicional Feira do Livro no Parque Eduardo VII. Continuarás num virote. Ainda bem. Estou a ver-te, um dia, no longe do tempo mas na verdade do teu carácter sem idade, no meio da alameda, pasme-se, a vender tremoços, pessoas de olhos arregalados, incrédulas, espantadas. Tu pensaste numa marotice para os «apanhados», eu calculei um truque da tua editora. Qual quê? A vendedora dos ditos, aflita da bexiga e com a casa de banho distante, sem nada explicar, não hesitou. Ias a passar, rogou-te que lhe ficasses um instantinho a tomar conta do negócio. Quando te avistei já tinhas vendido qualquer coisita… Até que a criatura regressou aliviada da sua urgência. Só tu, Alice!
Aqui, nesta viagem à volta do teu nome, sendo fundamental sublinhar o teu percurso jornalístico e a tua superior obra literária, em particular no domínio do romance juvenil, na poesia, na crónica, o quanto representas no mundo cultural português, importa do mesmo modo reconhecer a tua força de mulher, a tua capacidade de relação humana, o teu gosto em ser igual ao comum dos mortais.
Por tudo isto és a nossa grande Alice.


© MARIA AUGUSTA SILVA


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ENTREVISTA / REPORTAGEM
COM ALICE VIEIRA
EM NOVEMBRO DE 1993

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Ana Hatherly e Albano Martins

Perfil de dois grandes poetas contemporâneos




Dois ensaios de referência, Poética do Sensível, de José Fernando Castro Branco, sobre a poesia de Albano Martins, e Interfaces do Olhar, da poeta e ensaísta Ana Hatherly, foram lançados pela Roma Editora. As obras inscrevem-se na coleção Faces de Vénus, coordenada pela Prof.ª Annabela Rita, doutorada em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea.
O encontro de apresentação dos ensaios decorreu no Instituto Camões, em Lisboa. Fernando J. B. Martinho sublinhou o «trabalho notável» que nasce da tese de mestrado de José Fernando Castro Branco, defendida, na Faculdade de Letras do Porto, em torno do que o próprio autor do ensaio define como a «coerência estético-literária que caracteriza, de ponta a ponta, a poesia de Albano Martins». Poética do Sensível inclui, ainda, uma antologia pessoal de Albano Martins, que abre com Secura Verde, versos do seu primeiro livro: «É verde esta secura, como verde / a raiz duma planta que secou. / Posso ter o corpo aberto / e não mostrar o que sou.» Outros poemas revelam-nos o percurso poético do autor de obras como Escrito a Vermelho e, mais recentemente, Frágeis São as Palavras (Asa). Um poeta que à intensidade do significante alia o despojamento. Mais poemas de Albano Martins passam pela antologia, dois dedicados a José Bento e Luís Amaro (também eles nomes maiores da cultura portuguesa). Esta parte encerra com excertos de Três Poemas de Amor Seguidos de Livro Quarto, editado pela Quasi. O poeta assim diz: «Ao contrário das árvores, / dizes, / é o amor. Mais altas / do que os ramos são / as raízes.»
A coletânea de ensaios Interfaces do Olhar foi, por seu turno, apresentada por Casimiro de Brito. Ao enunciar a obra de Ana Hatherly, fala da «mão que escreve» e prolonga «a vivência do corpo autoral», e abre «o destino da palavra essencial», esse em que participa igualmente o leitor. Uma coletânea em que é traçado o perfil da poeta, ensaísta e investigadora. Organizada em moldes diferentes, opta por uma antologia crítica que engloba textos de vários autores sobre a criatividade multifacetada da escritora e pintora. Desse núcleo constam trabalhos de Ana Gabriela Macedo, Ana Marques Gastão, Casimiro de Brito, Elfriede Engelmayer, Fernando J. B. Martinho, Maria João Fernandes, Pedro Sena-Lino, Rogério Barbosa da Silva e Ruth Rosengarten. A ponta final de Interfaces do Olhar integra uma antologia poética de Ana Hatherly, abrindo com o poema História da Menina Louca: «Procuraram toda a casa, toda a terra, / Ninguém a achava. / Ela estava no telhado atrás da chaminé. / Olhava as estrelas e cantava. / Estava tão feliz e sossegada! / Olhava as estrelas e cantava.// Meu Deus, está louca! / Vamos levá-la. // Estava tão feliz! /Olhava as estrelas e cantava...». Poemas visuais de Ana Hatherly completam Interfaces do Olhar, uma outra caligrafia da palavra inovadora, sábia e vital da autora d'O Pavão Negro (Assírio & Advim) ou de Fibrilações (Quimera).


© MARIA AUGUSTA SILVA


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António Manuel Couto Viana

A festa da criatividade infinita



Ao longo de seis décadas quase se perdeu a conta ao número de livros de poesia e contos da autoria de António Manuel Couto Viana. A esse infinito juntam-se obras para crianças, ensaios e textos dramatúrgicos com que marcou o teatro português do século XX. Essa figura da nossa cultura foi homenageada, no dia em que completou 82 anos, na sede da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), em Lisboa.
Ouviram-se mais uma vez as palmas merecidas pelo poeta, pelo dramaturgo, pelo homem com pudor de convidar alguém para estar com ele neste momento grande, mas que gostou de ver companheiros e amigos junto de si. Da sua obra falaram o escritor Urbano Tavares Rodrigues e a investigadora Glória Bastos.

OBRA. Couto Viana, em termos de publicação, estreou-se na poesia com O Avestruz Lírico (1948), seguindo-se-lhe No Sossego da Hora, vencedor do Prémio Antero de Quental (1949). Outros galardões lhe têm destacado a arte, entre os quais o Prémio Nacional de Poesia (1965) e o Prémio da Academia das Ciências de Lisboa (1971). Muita da sua poesia está antologiada no álbum O Velho de Novo, prefaciado por Pedro Mexia, com aguarelas de Paulo Ossião (edição da Caixotim). Quanto ao teatro, começou nele antes dos versos, foi o primeiro amor e ajudou-o a perder a timidez. Dramaturgo, ator-encenador, recebeu distinções sem fim, que incluem o Prémio da Crítica (1960), e desempenhou, nomeadamente, o cargo de mestre de cena do Teatro Nacional de São Carlos.

MEMÓRIA. Ir à SPA receber a fraternidade das palavras e dos abraços "é motivo de orgulho e satisfação" — adiantou-me Couto Viana, na véspera —, mas preferia trocar as letras ao termo homenagem e conjugar "festejar", "conviver". Porquê? "Porque homenagem é uma coisa solene, muito engravatada". E saiu-se com esta, coerente consigo mesmo: "Lembro-me de Afonso Lopes Vieira ao dizer que o verbo homenagear é republicano". Na sua voz não havia, porém, ponta de incomodidade. Era subtil, elegante, ternurento. Recordava-se da primeira peça, A Golpes de Tesoura, que encenou em finais dos anos trinta e foi representada no Teatro Sá de Miranda, em Viana do Castelo. Por essa ocasião, a pedido da mãe, criou A Rosa Verde, a sua primeira peça de teatro infantil. Outra lembrança mais: vestiu a pele de poeta inspirado n'A Fábula do Ovo, no Teatro Estúdio do Salitre, levado até lá por David Mourão-Ferreira, ambos responsáveis pelas "folhas de poesia" Távola Redonda (com Luiz de Macedo).
Urbano Tavares Rodrigues caracterizou-me, por seu turno, Couto Viana. "Um grande poeta, com um conhecimento profundo da ciência do verso. Prestou também bons serviços ao teatro português, formando atores e criando peças de muita qualidade".

© MARIA AUGUSTA SILVA



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GRANDE ENTREVISTA
A ANTÓNIO MANUEL COUTO VIANA
EM AGOSTO DE 2004
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Rabindranath Tagore

Os destinos do amor na cultura hindu



Rede complexa de destinos e emoções tendo por cenário a cultura hindu e as diferentes vivências. Destacamos O Naufrágio, de Rabindranath Tagore, «mestre» do pensamento espiritual que aproximou as culturas indiana e ocidental, mostrando de forma simples mas literariamente cuidada os comportamentos tradicionais das famílias, nomeadamente quanto ao casamento dos filhos.
Tagore, distinguido com o Nobel (1913), poeta por excelência, trabalha os conflitos calados dos jovens, em particular das mulheres, com grande delicadeza sem deixar de fazer sangrar muitas feridas sócio religiosas para elevar o amor e os sonhos quase sempre acorrentados.
Nesta obra, Ramesh acaba o curso de Direito. Repara em Hemnalini, aparecia à hora do chá em casa dela, uma família ligada ao Brahmo-Samaj (seita hindu liberal). Mas o pai de Ramesh impõe-lhe outro rumo. Escolhera Kamala para o novo advogado. O casamento celebrou-se conforme os rituais, todavia não foi trocado sequer o «olhar favorável» entre os noivos. Depois das bodas, partiram em barcos. Um trovão inesperado, um ciclone. O pavor. «Quando Ramesh recuperou os sentidos, encontrou-se estendido nas margens de uma ilha arenosa». Conseguiu reanimar a jovem esposa, Kamala, que tinha um segredo, «um destino adverso». Ramesh ficou confuso com a revelação. Que acontecera ao que fora marido de Kamala, o médico Nalinaksha?
Hemnalini sofre, também, a vida conturbada do seu amado Ramesh. E outro noivo surge para si: Nalin. Entre melancolias, resignações e lágrimas, a teia romanesca faz com que as duas jovens, Kamala e Hemnalini, se encontrem e estimem. Falam do «verdadeiro amor». Ramesh escreve depois a Hemnalini que o rejeitara por se julgar traída. «As circunstâncias romperam os laços pelos quais o céu tinha ligado a tua vida à minha. Tu destes o teu coração a outro; crê que não te censuro por isso, nem tu própria te deves censurar. Embora Kamala e eu nunca tivéssemos vivido como marido e mulher, devo confessar, contudo, que, à medida que o tempo ia passando, eu sentia-me cada vez mais atraído por ela. Quanto ao estado atual dos meus sentimentos, ignoro-o». Ramesh, porém, sabe: «Nunca poderei esquecer as duas únicas mulheres que tiveram lugar no meu coração e acarinhar durante toda a minha vida a sua lembrança que será para mim uma bênção inestimável».
E quem era afinal o destinado agora à jovem Hemnalini? A surpresa não tardou. Nali era Nalinaksha, o outro esposo de Kamala. Um dia, ao cair da tarde, Nalinaksha levou a Kamala «uma braçada de grandes flores de aruns».



© MARIA AUGUSTA SILVA






Juan Ramón Jiménez

Cem anos depois, o burrito Platero
continua a entrar no coração dos leitores



  


A narrativa poética de Platero e Eu (Platero y Yo) integra elementos bastantes para nos levar a uma reflexão sobre o mundo. Escrito no princípio do século XX, o célebre livro do escritor espanhol Juan Ramón Jiménez é intemporal.
A primeira publicação surgiu em 1914 com apenas oito dos 138 capítulos; a edição completa apareceu em 1917, um êxito invulgar que perturbou a natureza introspetiva de um autor que valorizava sobremaneira a sua interioridade. O narrador não poderá dissociar-se de Jiménez, contemplativo, vivenciando a beleza obsessivamente sem deixar, porém, de a descobrir no plural das coisas.
Platero e Eu é um monólogo-diálogo com um burrito e tem como cenário principal a terra natal do poeta: Moguer (Huelva), o povo, o mundo campesino e alguns contrastes socioculturais. Os mares, os rios (personagens que dominam toda a sua vasta obra), são para o autor de Eternidades e de Pedra e Céu a viagem constante mas igualmente o encontro com os mais simples. Os espaços, as ruas, as cenas do quotidiano ganham no imaginário de Juan Ramón Jiménez uma representação peculiar, como se houvesse em cada registo, em cada palavra a necessidade, a urgência de espalhar e compreender os afetos, de sublimar a beleza e o amor. Pela sua escrita passa, todavia, uma crítica social discreta, dorida.
Jiménez, Prémio Nobel (1956), tem no seu burro Platero um confidente especial. Ao personalizar os animais, não pretende um «ser inferior» para fazer transbordar os seus pensamentos; cria, sobretudo, um silêncio que diz e desperta; Platero entrou assim — e continua a entrar — no coração dos leitores. José Saramago foi um deles. Amava Platero, tanto que o acolheu no romance A Jangada de Pedra.
Algumas figuras do meio intelectual espanhol chegaram a ironizar Jiménez, tentando, de certo modo, atingir o poeta quando este se distanciou da geração de 27 e procurou também amachucá-la dirigindo-lhe o epíteto «mariconcillos de playa». Foi então que Buñuel e Dali lhe enviaram um telegrama cruel: «Amigavelmente, felicitamos-te pelo teu Platero y Yo. É o burro mais burro que conhecemos». São as tricas literárias que sempre existiram. Mas em nada beliscaram a arte de um dos maiores nomes da literatura universal.
Ler (ou reler) Platero e Eu é um momento único de interioridade e de sensibilidade. Cada capítulo, breve, quantifica o talento do poeta que soube entender e impulsionou a modernidade nas letras espanholas. Embora independentes no fio narrativo, uma história liga-se à outra pela coesão do tecido textual, pela caracterização, pelo elemento dialético. Em 1916, Jiménez escreveu, em Moguer, o último capítulo deste livro belo, emocionante: Platero morre mas continua vivo.

© MARIA AUGUSTA SILVA

Convite:
Desfrute alguns trechos do cap. 1 de Platero
musicados por Vicente Monera



       (4m50s)








Vinícius de Moraes

Como quem saboreia um fruto bom



Com as palavras dá-nos as imagens, os ritmos, os sons, o corpo, a alma. E as emoções a circularem na pele. E a pele a viver o diálogo mais íntimo com o mundo das emoções, do amor, do enamoramento, do jogo que joga os bocados da vida em cada um de nós. Uma lírica sem modelos, avessa a preconceitos. A poética de Vinícius de Moraes é assim, feita de carícias e de angústias, de alegrias e de inquietudes. Vibrante.

Vinícius lê-se como quem saboreia um fruto bom, sem pressa, sem medos. Vinícius lê-se como se fosse água para muitas sedes, para muitos sonhos, a água do seu rio: Uma gota de chuva / A mais, e o ventre grávido / Estremeceu, da terra. / Através de antigos / Sedimentos, rochas / Ignoradas, ouro / Carvão, ferro e mármore / Um frio cristalino / Distantes milénios / Partiu fragilmente / Sequioso de espaço / Em busca da luz. / Um rio nasceu.

E com o poeta do Brasil nasceu uma musicalidade singular. Muitos dos seus versos projetaram-se em vozes carismáticas do canto brasileiro e trouxeram, por exemplo, a modernidade da bossa nova à geração de sessenta. Havia uma magia doce e quente ao dançar-se o verso de Vinícius, a música que inspirava, libertando todos os silêncios.

Durante algum tempo, e à semelhança do que aconteceu — e ainda acontece — com poetas que se deram (e dão) ao movimento das melodias, ao canto do ser e das coisas, Vinícius foi criticado por quem da cultura tem uma noção fechada no seu umbigo. Mas não faltou, igualmente, quem desde logo lhe reconhecesse o génio e a bendita loucura de ser poeta como ele, descomplexado, sensível, irreverente, místico e sensual, contraditório, ousado e sábio. Tão capaz de exaltar a mulher como de falar do escravo; tão capaz de ser o poeta do efémero, do riso, da balada, da aurora, do mendigo e do falso mendigo, como o poeta que enaltece Rilke: Alguém que me espia do fundo da noite / Com os olhos imóveis brilhando na noite / Me quer. / Alguém que me espia do fundo da noite / (Mulher que me ama, perdida da noite?) / Me chama. / Alguém que me espia do fundo da noite / (És tu, Poesia, velando na noite?) / Me quer / Alguém que me espia do fundo da noite / (Também chega a Morte dos ermos da noite...) / Quem é?
A este poema, Vinícius deu o título Imitação de Rilke. Há nele uma interrogação cósmica, porventura a grande interrogação de Vinícius sobre si mesmo, crente e descrente, transcendental e terreno, idealista e realista. Nestes opostos viveu, errante, com seu violão no interior da carne. Errante, com seu verso desgravatado, um verso feito arco-íris, a tornar-lhe, decerto, mais suportáveis as cerimónias enfarpeladas de uma diplomacia que, mundo fora, lhe garantia alguma estabilidade económica e dela terá colhido, apesar de tudo, outros horizontes culturais; outras partilhas que o levam a Baudelaire, a Rimbaud, a Verlaine ou a Lorca, ou a poetas da sua língua-mãe como Carlos de Oliveira ou David Mourão-Ferreira. Mas sempre com a «Saudade de Manuel Bandeira»: Não foste apenas um segredo / De poesia e de emoção / Foste uma estrela em meu degredo / Poeta, pai! áspero irmão. / Não me abraçaste só no peito / Puseste a mão na minha mão / Eu, pequenino — tu, eleito / Poeta!, pai, áspero irmão. / Lúcido, alto e ascético amigo / De triste e claro coração / Que sonhas tanto a sós contigo / Poeta, pai, áspero irmão? As palavras ganham neste dizer de Vinícius o tamanho da fraternidade que a poesia estabelece entre os grandes. Fraternidade e cumplicidade. É, pois, necessário saber ler (e escutar) Vinícius. Nunca será tarde, mesmo anos depois da sua despedida das horas amantes, da explosão do beijo e do espasmo, do espanto que morava nos seus olhos de infância nunca morta. Pelos vitrais da sua poesia (e também da prosa, em especial da crónica jornalística), poder-se-á encontrar uma lírica intemporal, «o operário em construção», em permanente construção, como foi ele próprio, poema a poema, em cada poema-tijolo com que soube erguer as casas do amor e mais amor querer: (...) Vem. Meus músculos estão doces para os teus dentes / E áspera é minha barba. Vem mergulhar em mim /Como no mar, vem nadar em mim como no mar / Vem te afogar em mim, amiga minha / Em mim como mo mar...

Vinícius, um pulsar sedento e desperto, clamando: (...) Pensem nas feridas / como rosas cálidas / Mas oh não se esqueçam / Da rosa da rosa / Da rosa de Hiroshima. Não se esqueçam de Vinícius.


© MARIA AUGUSTA SILVA






Principezinho septuagenário

Maria da Conceição Coelho e Ana Teresa Louro
revelam-nos as prendas de aniversário


  


Faz este mês [setembro 2013] setenta anos. O Principezinho, criado por Antoine Saint-Exupéry, continua a ser um fenómeno de comunicação. Um livro intemporal, para sempre. Muito oportunamente, em época de regresso às aulas, a editora Verso de Kapa acaba de lançar O Principezinho Explicado às Crianças, escrito por duas renomadas professoras, Maria da Conceição Coelho e Ana Teresa Louro. Perguntámos às autoras que prendas de anos tinham planeado oferecer ao Principezinho septuagenário. As respostas não tardaram. Maria da Conceição considera que a prenda mais merecida pelo aniversariante «é a manutenção do sufixo "inho", ou seja, um septuagenário que continue a usufruir do elixir da eterna juventude. O nosso mundo precisa desse olhar jovem, inocente e espontâneo para recuperar a força anímica que impulsione a harmonia com a natureza e a solidariedade universal. Todos nós precisamos desse Principezinho para alimentar os sonhos que, teimosos, insistem em acordar as nossas consciências. Mito e imortalidade já tem. Que outra prenda pode superar o infinito?»

Quanto a Ana Teresa Louro, a prenda de anos não será menos original: «Gostaria de lhe dar um pôr-do-sol igual aos da Terra, coisa impossível no seu minúsculo planeta. Ele gostava tanto de os observar!».  

 


A minha prenda foi o próprio livro
Aguarela inconfundível na capa. «Olha O Principezinho!», exclama uma leitora de idade aproximada à do príncipe aparecido na Segunda Guerra Mundial. E o senhor por detrás de um balcão do empoeirado Chiado sorria-me. «Embrulho de oferta?»
Eu disse que sim, para uma menina que festejava 72 anos. E antecipadamente alegrou-me o brilho da surpresa nos olhos de minha mãe. Por ficar, também ela, a conhecer de perto a raposa e a rosa de Saint-Exupéry, e a ovelha, e o asteroide B 612, e o planeta muito pequenino onde só cabia um acendedor de candeeiros. E tantos sonhos, de que as pessoas grandes «tão grandes como embondeiros» às vezes se esquecem.

Qual o segredo d'O Principezinho, que continua a vender milhões no mundo inteiro? (editado em Portugal pela Presença). Fui perguntar a figuras da literatura juvenil portuguesa e a uma socióloga.

Tímido como é, não gostará de festejar aniversários
Alice Vieira reagiu assim: «O Principezinho tem a minha idade, mais mês, menos mês. Lá no asteróide B, onde vive, terá possivelmente instalado um grande campo de golfe, pacientemente praticando todos os dias, para encarar a eternidade em plena forma. Plantará rosas, assistirá ao pôr-do-sol, e por vezes olhará o céu, à espera de por ali ver chegar alguém que, finalmente, saiba desenhar um carneiro como deve ser».
Acredita a autora de Rosa, Minha Irmã Rosa, que «o principezinho terá sempre muitas saudades do outro, do que só sabia desenhar carneiros dentro de caixas ou de cobras, do que vivia num estranho planeta chamado Terra — e tinha a voz magnífica do Gérard Philipe, naquele disco ouvido vezes sem conta na minha infância».
Sendo um príncipe tímido, Alice Vieira calcula que não gostará de festejar aniversários. Mas constou-lhe que «está a preparar-se uma enorme excursão para aterrar no asteróide B no dia do seu centenário». Alice Vieira já reservou lugar.

Estrada de Damasco
E querem saber o que pensa António Torrado d'O Principezinho? «Um livro que ilustra a asserção de Pessoa: nenhum livro para crianças deve ser escrito para crianças.» Por feitio, António Torrado é menos perentório do que o poeta do chapéu preto: «Não seria tão radical, embora admita que muitos dos melhores exemplos de literatura para crianças não foram escritos a olhar para elas».
E diz por sua conta: «Nenhum livro para crianças faz sentido se não for lido, também com aprazimento, por adultos.» Recorda O Príncipe Feliz, de Oscar Wilde, «que me comove ainda até às lágrimas». Mais este Principezinho, «que foi a minha decisiva estrada de Damasco, por onde ingressei na escrita para os mais novos, quando, já de barba cerrada, pela primeira vez o li, na tradução preciosa de Alice Gomes». Um livro que António Torrado define como «novela filosófica e lírica, dotada da auréola mágica, paradigmática das obras universais, que se desprendem das contingências do tempo». Recomenda-o e oferece-o «sempre a jovens e muito especialmente a adultos, se permeáveis às alusões da inocência. Aos outros não dou prendas».

Reinventar a infância
Atentem agora na confissão de José Jorge Letria: «O Principezinho não foi dos primeiros livros que li, mas foi dos que mais me marcaram.» Também dos que o «ajudaram a perceber que só cresce verdadeiramente quem nunca se aparta do legado da infância, reinventando-o todos os dias num trocadilho, num instante de sonho, numa centelha de irreverência».
O autor d'Os Dias Cantados interessou-se pela «figura humana» de Saint-Exupéry, «com os seus afetos e temores, com as suas utopias e mistérios».

Um deslumbramento
Que aconteceu a Luísa Ducla Soares aos 14 anos? Apenas isto: comprou O Principezinho, contrafeita. Porquê? Por ser, então, livro obrigatório das aulas de Religião e Moral. Para uma agnóstica que «repudiava a moral vigente com todas as forças da adolescência» dava para ficar «de pé atrás». Depois, «comecei a lê-lo e foi um deslumbramento». Releu-o mais tarde, «tendo em vista incluí-lo numa seleção de obras para crianças e jovens». Que emoção? «É não só um belíssimo livro destinado à juventude mas uma subtil, límpida, ingénua e sábia mensagem à criança que subsiste em cada um de nós».
Interroga depois: «Quem não tem um dia uma avaria num deserto (neste deserto de cimento e gentes) e não encontra de repente um pequeno príncipe, caído sabe-se lá de onde, que nos pede para desenhar, para criar uma ovelha, uma borboleta ou um sol? Um menino que aprendeu que a amizade é cativar os outros e ser por eles cativado, cuja felicidade depende de uma rosa, da sua rosa...» E aguardemos resposta esperançada a outra interrogação da escritora d'O Gato e o Rato: «Numa noite mágica de estrelas cadentes, quantos o irão recordar, frágil, luminoso e só na sua trajetória por entre os planetas?»

Poço no deserto
Maria Alberta Meneres assinala três circunstâncias convergentes para a existência d'O Principezinho: «O facto de o seu autor ser um entusiasta aviador; a sua habilidade para o desenho e a sua sensibilidade e estilo próprio de escritor adulto que nunca esqueceu os mistérios e deslumbramentos da sua infância».
 — O deserto é bonito — disse o Principezinho.
E era verdade. Sempre gostei do deserto. Uma pessoa senta-se numa duna. Não vê nada. Não ouve nada. E, no entanto, há qualquer coisa a brilhar em silêncio.
 — O que torna o deserto bonito — disse o Principezinho — é haver um poço escondido em qualquer parte...
Diálogo que Maria Alberta Meneres traz à memória, ao falar deste «belíssimo livro, aberto a crianças e adultos, que guarda, na sua evidência de descobrir a poesia por entre o quotidiano, a certeza de saber que o deserto é bonito por haver um poço escondido em qualquer parte. Ou uma palavra amiga. Ou um pôr-do-sol. Ou um sonho que não se esquece. Um livro de ler sempre».

Simplicidade e sonho
Posto isto, ninguém melhor do que uma socióloga especializada na área da comunicação para nos fazer a síntese possível deste «fenómeno de leitura» que é O Principezinho.
Maria Helena Filipe Monteiro admitiu que teria de reler o livro para corresponder ao nosso pedido. «Passado tanto tempo sobre a última leitura, já na idade adulta, supunha ser difícil falar sobre ele, embora não me pedissem pormenores, mas sim impressões, marcas, e essas eu tinha-as, claro. Para quem conhece esta obra de Saint-Exupéry, sabe o que quero dizer».
A decisão de Maria Helena acabou, todavia, por ser a de não reler. Preferiu a memória:
«Foi só abrir um pouco a caixinha onde guardo as surpresas e lá estava ele, de novo, presente.» A socióloga reconhece que «não é fácil esquecer uma figura tão encantadora, tão inteligente e tão luminosa como este Principezinho; como é possível esquecermos uma estrela?»
Mas «para se compreender a incrível atualidade de uma história de crianças para seduzir os adultos, sobretudo estes (as esquisitas pessoas crescidas, como diria o pequeno príncipe)», Maria Helena acha melhor «não nos perdermos com análises complicadas; porque, como alguém também disse (quem seria?), o essencial nem sempre se vê, devemos procurar com o coração. No caso, serve perfeitamente».
Considera, assim, que «o segredo desta narrativa que esgota sucessivas edições reside nisto: comunica connosco com simplicidade, com emoção, com sonho e com fantasia».
Faz uma pergunta oportuna: «Deixarmo-nos encantar e emocionar está fora de moda? Claro que não. Por muito que os tempos atuais sejam dados a pragmatismos diversos, seria leviandade resistir a uma figura que nos encanta e nos torna mais sabedores. Ah!, a propósito, afinal vou reler o livro, ou melhor, O Principezinho», e ele e eu vamos passar a noite juntos. Vou olhar as estrelas para ver se elas me sorriem».
Vamos todos?


© MARIA AUGUSTA SILVA




Luciana Picchio

Portugal ignora a escritora italiana que mais divulgou a cultura portuguesa



A dimensão cultural, científica e humana de Luciana Stegagno Picchio poderá algum dia ser totalmente descrita? Talvez nunca seja possível dizer-se tudo o que esta grande senhora italiana representa no conhecimento do mundo, em especial na investigação e divulgação de Portugal, com realce nos domínios da literatura e da história do teatro. Luciana Picchio, tão desconhecida no nosso país, é autora de mais de 500 (quinhentas) publicações dedicadas à cultura portuguesa. É pouco chamar gigante a quem personifica os mares do saber, navegados com invulgar sensibilidade.
Prestaram-lhe homenagem na ocasião em que completou oitenta anos, tendo recebido das mãos do ministro dos Negócios Estrangeiros, Jaime Gama, o Diploma de Mérito do Instituto Camões. Momento também do lançamento da fotobiografia A Língua Outra, realizada por Alessandra Mauro, com extensa bibliografia temática coordenada por Guia Boni. Notável documento cujo fio condutor é uma entrevista com Luciana Picchio, permitindo acompanhar o percurso cultural e cívico da historiadora. São retratos de uma «arqueóloga das letras», nascida em Alessandria (Piemonte) e diplomada em Arqueologia Grega; são igualmente breves mas significantes retratos de figuras da intelectualidade, de Eduardo Lourenço a Carlos Drummond de Andrade; de Murilo Mendes e Miguel Torga a António Tabucchi; de Maria de Lourdes Belchior e José Saramago a Jorge Amado e Jorge de Sena; de Roman Jacobson e Krystyna Pomorsky a Rafael Alberti ou O’Neill; de Celso Cunha a José Lins do Rego. Uma obra que o Instituto Camões promoveu fazendo justiça a uma estudiosa ímpar da língua e de autores portugueses, personalidade de renome internacional, que diz: «Portugal é o meu trabalho, o meu quotidiano, terra de escolha e língua de todos os dias. Faz parte da minha ação no mundo. Muitas coisas aprendi em português.» O presidente do Instituto Camões, Jorge Couto, destacou, entretanto, «uma personalidade que pioneiramente muito contribuiu para desenvolver o conceito multicultural como elemento fundamental da cultura contemporânea».
Autora de trabalhos como Mar Aberto – Viagens dos Portugueses, Luciana Picchio, professora de mérito internacional, incansável historiadora das letras e da arte teatral, ensaísta, tradutora, cidadã da liberdade e democracia, foi condecorada em 1988 por Mário Soares com a Ordem de Santiago da Espada.
Os últimos anos de vida passou-os a trabalhar em novos projetos relacionados sempre com a história e cultura de Portugal: obras sobre o Abade Faria e Goa, estudos "compactados" sobre Camões e Pessoa, uma atualização da sua História do Teatro Português e informatização dos seus riquíssimos arquivos. Se mais mundo houvera... Luciana lá chegara.



Luciana Stegagno Picchio morreu aos 88 anos, em 28 de agosto de 2008. Raríssimos órgãos da comunicação social portuguesa noticiaram com relevo o seu falecimento.

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Gil Vicente

Bem-vindo, Mestre, ao admirável mundo digital!


Acontecimento assinalável. Está disponível um CD-ROM com a obra completa de Gil Vicente, trabalho coordenado por José Camões, professor do Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Por feliz coincidência, este trabalho, centrado na arte vicentina, surge no momento em que se comemoram os quinhentos anos da primeira representação de Visitação (ou Monólogo do Vaqueiro), dedicado ao nascimento (1502) do que viria a ser o rei D. João III de Portugal. O CD-ROM, intitulado Gil Vicente – Todas as Obras, ousa uma «revolução, no modo de editar uma produção literária com as características ímpares de Gil Vicente, considerado «o maior inventor de teatro português».
Uma rigorosa pesquisa foi levada a cabo pela equipa coordenada por José Camões, de forma a oferecer ao grande público um autor quinhentista que marcou para sempre a dramaturgia portuguesa. O resultado aí está, com o apoio do Centro de Estudos de Teatro da Universidade de Lisboa e da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.
«Gil Vicente é o primeiro autor português moderno. O seu teatro constrói-se com estruturas formais e conceptuais que fazem dele um clássico visitável sempre que se queira», afirma-me José Camões, especialista da obra de Gil Vicente, a qual passa por "autos" que nos dão tempos, pensamentos, costumes e contextos históricos, com uma singular expressão dramática. A edição do CD-ROM, não só inscreve toda a obra vicentina constante da Copilação de todas as obras, de 1562, como insere, igualmente, os folhetos Barca do Inferno (1517), Maria Parda (1522), Inês Pereira (1523), História de Deos e Ressurreição de Cristo (1527), Festa (sem data), Processo de Vasco Abul (contendo um parecer de Gil Vicente), publicado no Cancioneiro Geral em 1516; ainda Dom Duardos, da Copilação de 1586. Integra-se uma reprodução fotográfica da custódia de Belém. Num mesmo suporte, diz José Camões, «reúne-se a totalidade da produção artística de Gil Vicente que chegou até aos nossos dias».
A edição Gil Vicente – Todas as Obras privilegia, nos textos vicentinos, «a sua especificidade de objetos de teatro», ao mesmo tempo que «a transcrição procura dar conta do que poderá ter sido a realidade fonética da língua da época do autor». Cria-se, paralelamente, um glossário de 6 200 entradas. O ponto de vista lexical também não foi descurado: 22 500 palavras permitem «relacionar termos afins». No que respeita aos domínios temáticos, a equipa de José Camões estabeleceu 29 campos, que se afiguram relevantes no conjunto da obra de Gil Vicente, nomeadamente o mundo rural e campestre, profecias, astrologia, alimentação, feitiços, mitologia, medicina, grupos sociais, toponímia e vestuário. O CD-ROM apresenta outros elementos de interesse: uma vasta bibliografia e uma coleção de imagens direta ou indiretamente relacionadas com as obras, o autor e a época, bem como «um conjunto de composições musicais interpretadas por músicos que se dedicam à investigação da música antiga e recuperaram ou reconstruíram partituras de música que Gil Vicente terá utilizado nos seus autos»; músicas recolhidas em cancioneiros ibéricos dos finais do século XV e princípios do XVI.
Para celebrar Gil Vicente, a sua dramaturgia e a sua poética, deverá sair ainda uma edição em livro com a obra completa do autor, publicada pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda e, do mesmo modo, coordenada por José Camões. Gil Vicente, espantoso observador e intérprete do ser social. Autos, farsa, comédia e lírica, exaltantes e críticos. A arte de que só o teatro é capaz.

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Cerejas – Poemas de Amor

Celebração do corpo total


  

À direita: Esplendor, 2004 – desenho sobre papel de Gonçalo Salvado


A palavra e o fruto criam o lugar do amor, celebram o corpo total. Essa unidade e esse espanto enchem as páginas de Cerejas – Poemas de Amor de Autores Contemporâneos, antologia poética organizada por Gonçalo Salvado e Maria João Fernandes, prefaciada por Eduardo Lourenço e com posfácio de António Ramos Rosa. Abre com o verso iluminado de António Salvado: «Surgiu com a beleza – nos confins / do tempo em que nasceu a Primavera». Folheia-se e encontramos, entre muitos, poemas de Pascoaes e Sophia a Gedeão; de Eugénio a Ramos Rosa; de Fiama a O'Neill; de Albano Martins a Echevarria; de Torga a Pedro da Silveira; de João Rui de Sousa a Maria Teresa Horta; de José Gomes Ferreira a Casimiro de Brito; de Pedro Homem de Melo a Egito Gonçalves ou a Armindo Rodrigues.
«Quanto à cereja não tenho que se veja / mas a carne da cereja / faz inveja», inédito de Cruzeiro Seixas numa antologia que inscreve ainda poemas de autores como Liberto Cruz, Mário Dionísio, Ana Hatherly, Pedro Tamen, Natália Correia, Lídia Jorge, Mésseder, Al Berto, Francisco Duarte Mangas, Fernando Grade, Orlando Neves ou Pedro Mexia. Dão-nos a terra de «regaços de lírios» – de Ruy Belo, ou «saberes, sabores de que se fazem mitos» – de E. M. de Melo e Castro; ou «a maré cheia da manhã» – de Nuno Júdice, ou «Aquele fogo de carne» – de Joaquim Pessoa.
Da poesia de Cerejas – Poemas de Amor irrompe «a serenidade de pólen» – de Gonçalo Salvado, ou «Um tempo de cerejas / nos labirintos da ausência» – de Maria João Fernandes. Tocam-se «(...) as teias / da renda mais linda» – de José Correia Tavares, sente-se «a rosa de rubis em quente lava» – de Vasco Graça Moura. Antologia original e esmerada, insere, também, textos de António Lourenço Marques, Gonçalo Salvado e Maria João Fernandes, celebrando a palavra e o fruto, a cereja, em si mesma poema da sensualidade. No volume patrocinado pela Câmara Municipal do Fundão (edição da Tágide), somam-se, entre outros, desenhos de Pomar, Júlio, Ana Hatherly, Cutileiro, Graça Moraes, Francisco Simões, Siza Vieira, José Rodrigues, Lima de Freitas, Júlio Resende, José de Guimarães, Ângelo de Sousa e António Carmo.

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Pär Lagerkvist

Um anão-filósofo no reino das traições


Uma narrativa acutilante, a do sueco Pär Lagerkvist, Nobel de Literatura em 1951. É o autor de O Anão, obra superlativa no panorama da moderna literatura mundial. A palavra é usada por Lagerkvist na medida exata para dissecar com inventiva literária os paradoxos da humanidade, as contradições, a hipocrisia e a perversidade dos seres humanos.
Poder-se-á ser tentado a vê-lo num quadro de pendor moralista, todavia parece mais justo olhá-lo como um filósofo que, por meio das suas personagens, lança a substância do pensamento, cruzando o consciente e o subjetivo sem os confinar ao óbvio, pelo contrário, gere surpreendentemente os conflitos das emoções.
O Anão é um livro de apenas 160 páginas (excelente tradução de João Pedro de Andrade) que nos dá, sem angústias dilacerantes, os choques de comportamentos, o espetáculo sórdido entre o cinismo e o amor, entre as cumplicidades e os ódios, sendo a figura do anão uma das maiores personagens alguma vez criadas por Pär Lagerkvist Ele não existe para provocar «o riso dos seus senhores». Avisa logo no início da obra: «Tenho uma língua mordaz, que pode agradar a certas pessoas do meu convívio. Não é a mesma coisa que ser bobo.» Bobo não é, de facto. Conhece a corte em que vive nas suas grandezas e misérias, na sabedoria e nas traições. Faz uma autópsia implacável de vivos e mortos. A humilhação deixa-o um dia à beira do desmaio, mas mantém a sua dignidade, o seu orgulho, e, também, a sua costela sarcástica, no entanto de uma fidelidade (quase severa) à princesa libertina.
Um romance com povos em contenda, no qual a violência dos sentimentos é talvez maior do que as espadas e os exércitos. Angélica, a filha dos príncipes, ama e o seu amante é morto pelo pai. Uma peste vai, entretanto, arrasando outras vidas. Logo as consciências procuram o sinal de um «castigo divino». Do mesmo modo que a velha princesa se debate, por fim, com o dilema da punição dos seus pecados amorosos, sentindo-se igualmente responsável pela morte da filha Angélica que se deixa levar pelas águas do rio ao encontro do amado assassinado.
O anão diz: «Ignoramos tudo acerca do amor». Por que acabará ele encarcerado? Ele que tudo sabia sobre a princesa e nada dissera. Amor-ódio-paixão? Foi ele, afinal, quem protagonizou o «flagelo de Deus» suplicado pela «mulher diabólica».

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María Victoria Atencia

A voz fotográfica do poema


Corpo. Alma. Voz. Terra. Água. Memória. Contemplação. Amor. Comunhão. Partilha. A poesia de María Victoria Atencia surge-nos, desde o soneto «Sazón» (1953), como uma melodia delicadamente incorporada no acontecer dos dias; forma carris de afetos por onde viajam as luzes e as sombras do verso, derramando salmos e dragões, inocências e exílios ao longo de todos os destinos. Uma lírica que sabe abrir as cortinas da pele para olhar a plenitude dos espaços da interioridade e daí partir, segura e sólida, rumo às «pupilas acesas» ou ao encontro dos silêncios mais profundos.
Sussurros capazes de transfigurar o degelo e as pombas, erguendo-se, entrelaçados, até ao cume do sonho, os poemas de Victoria Atencia são por ela própria definidos assim: «A minha poesia, e quero dizer com isto o meu cerco ao seu acampamento e o seu assédio ao meu (esse assédio que costuma conhecer-se como inspiração, termo que há de reinstaurar-se), parte sempre de um facto biográfico ou de um facto cultural mas escolhido biograficamente e do qual não seja preciso outra referência. Quero dizer que a minha poesia parte sempre de uma vivência própria ou assumida e com a qual me identifico ou a qual recuso. Mas essa aceitação ou essa repulsa, que na sua redação podem antecipar-se até ao título do poema, carecem de valor. Porque o que importa é o modo de execução, não o seu desenlace; não o grau de aceitação, de negação ou de perplexidade perante o facto vívido ou assumido. Acreditei sempre que tudo isso a que chamo "desenlace" é uma mutilação – circunstancial, ocasional, conjuntural – das infinitas possibilidades que o poema oferece. Deixai-me dizer: de todas as infinitas possibilidades de um sonho. (...) Não há nada oculto ou fechado numa poesia que me mostra espoliada, despojada, transparente diante de uma ilusão alcançada ou a melancolia da sua perda transitória; porque somente nua se aguarda o amor. Se falei de uma chave não é para me encerrar, mas para esperar dela que me abra a porta que proíbe esse encontro.» Eis o olhar de Atencia sobre si mesma, inscrito no prólogo da antologia agora publicada em Portugal com uma excelente tradução de José Bento.
Nascida em Málaga (1931), a autora de Marta e María habita a palavra, e com ela e dentro dela foi crescendo esteticamente, sem desligar-se da voz quotidiana, de uma voz fotográfica, de um porto de abrigos e de buscas, de enamoramentos e abismos, ao qual se acolhe, porventura, um «Ventre grávido, útero maternal sob a água, / barco de muita noite e longa formosura, / continuarás sulcando um oceano de lodo».
Tal como o poema contido de Victoria Atencia vai sulcando a pedra, revelando-nos: «Com os dedos ergui o cristal destas águas, / contemplei seu silêncio e adentrei-me em mim mesma.» Fá-lo com toda a arte. E imensa sensibilidade.

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Alentejanas de Moura

Um olhar fundo e limpo sobre o Alentejo


A memória está para a humanidade do mesmo modo que o pão e a água para a fome e a sede. É linear, comezinho dizer isto, mas não deixará de ser, porventura, a forma mais chã e mais entendível, mais directa. Contar os tempos e os protagonistas dos tempos é, por isso mesmo, dar riqueza ao tecido e ao fermento da própria história do ser humano. Sem a focalização de tempos, sem os caracterizar nas suas diferentes culturas e costumes, sem espelhar os vários feitos e discursos sociopolíticos, todo o processo evolutivo restará amputado. Assinale-se, então, com gosto, a iniciativa da Associação de Mulheres do Concelho de Moura de deitar mãos à obra para uma obra fazer nascer em nome da memória que não só dá firmeza estrutural à História como igualmente possibilita um melhor entendimento dos contrastes vivenciais. E sendo verdade que o conhecimento nada é sem a função da memória, logo acções deste género sensibilizam e merecem todos os estímulos.
Falando de costumes geracionais do Alentejo, da região de Moura em particular e da mulher em especial enquanto sujeito paradigmático de tempos e saberes múltiplos, este livro oferece-nos na sua singeleza um olhar fundo e limpo sobre um povo que das adversidades soube levantar um canto à vida, canto dorido, canto de alma e de nervos, de revoltas e sonhos, mas canto de energia. Canto erguido a uma "charneca em flor" cantada por Florbela Espanca, ou às páginas impressivas de Suão, de Antunes da Silva, testemunho de um tempo-social martirizado; canto igual à brilhante espontaneidade de Aleixo ou à espantosa Seara de Vento, de Manuel da Fonseca; canto do Fado Alentejano, de Régio: « (...) Oceano de ondas de oiro! / (...) Alentejo, ai solidão / (...) Nos teus claustros me fiz monge, / (...) Perdeu-se-me a terra ao longe, / Chegou-se-me o céu mais perto.»
Gentes de duros sóis, minguadas jornas, magras bem-aventuranças, todavia de infinitos cheios de afeições e labutas e de orgulhos incontornáveis, mulheres e homens de distâncias sem muros e de escarolados e brancos casarios ensinam-nos o calor das veias, a força do espírito. Diz-nos Torga, ele, raiz transmontana do mesmo modo encantado por terras alentejanas: «(...) Não são apenas (...) as subtis razões éticas e geográficas que me fizeram gostar do Alentejo. Amo também nele os frutos palpáveis duma harmonia feliz entre o barro e o oleiro. Amo igualmente o que o homem fez e a terra deixou fazer».
O livro que temos nas mãos, Alentejanas de Moura – Modos de vida, lidas e saberes, é a linguagem sã do espaço do conhecimento. «Não há nenhum lugar sem linguagem», defende Roland Barthes. E não há. Esta obra é um lugar ou muitos lugares. Vai do nascimento à morte. Tem a linguagem do parto, dos brinquedos, da escola, sexualidade, namoro, casamento; tem a voz da guerra colonial, da família, da velhice e da viuvez, dos emigrantes, dos contrabandistas; passam por estas folhas a burguesia, as lavadeiras e bordadeiras, a convivência social, a prostituição; fala-se da gastronomia, das rendas, da criação artística, literatura, muita poesia; mostram-se os trajes e a tecelagem; conta-se o que se contava nas histórias à lareira; entra-se nas lendas, caminha-se pelas ruas e abrem-se janelas floridas; chama-se a terreiro o dia da espiga, crenças, superstições e fé; escreve-se, descreve-se o Natal, a Páscoa, a terra, a cal branca, o Carnaval e a Feira de Moura. E vive-se um momento impressionante que nos leva ao século XVIII e às crianças enjeitadas. «A roda passou a ser uma espécie de posta-restante utilizada com a maior discrição quase sempre a coberto da noite, porque a vergonha de enjeitar era tão grande para a maioria das classes altas que assim procurava furtar-se ao labéu como para a mãe pobre que assim abdicava da sua maternidade, já que só na roda tinha a garantia mínima de sobrevivência para o filho que sabia não poder sustentar». Vale a pena reflectir, hoje mais do que nunca, sobre um tempo que dramaticamente se torna intemporal ainda que a roda possa ter outra configuração. «Sempre que alguém punha uma criança na roda fazia soar uma sineta. Era o sinal de que mais um enjeitado entrava na roda, vindo a freira rodeira rapidamente recolhê-lo».
Não se julgue, no entanto, que este é um livro de mágoas e melancolias. É, sobretudo, um trabalho de visitação e pesquisa com rigor e amor «para que a terra não esqueça» nem a lágrima nem o riso, nem o fel nem o doce. Um livro sociologicamente importante. Documento marcado pelo labor de uma investigação séria, cuidada. Um livro humano. Esse o seu princípio e o seu destino: a humanidade. Com memória.

(PREFÁCIO AO LIVRO CITADO)

© MARIA AUGUSTA SILVA