SOBRE  EM NOME DA VIDA

Conselho Nacional de Oncologia: «Este é um trabalho ímpar, de que o jornalismo português se pode orgulhar. Esta reportagem contribuiu de forma exemplar para a luta contra a terrível doença que é o cancro. […] O Conselho deliberou atribuir à jornalista Maria Augusta Silva um voto de louvor.»

SOBRE  Corino Andrade – Excelência de uma Vida e Obra


Homenagem do Prof. Daniel Serrão
Alocução do Prof. Daniel Serrão na sessão de apresentação do livro-álbum  "Corino Andrade – Excelência de uma Vida e Obra", no Museu Nacional de Soares dos Reis, no Porto, em 18 de Junho de 2002. A obra foi então apresentada pelo Prof. Nuno Grande e pelo escritor Mário Cláudio.

prof daniel serrao

Com todo o respeito pelas ilustres personalidades que, em tão grande número, nos honram com a sua presença, as minhas breves palavras nesta cerimónia de apresentação do seu livro são, contudo, para si, Maria Augusta Silva.
E são duas perguntas.

  • Tem a noção de que "inventou" um novo género literário?
  • Sabe que escreveu o livro definitivo sobre Corino de Andrade?

Vou explicar-me melhor.
A biografia é, reconhecidamente, um género literário. Há as autobiografias, em regra narcisistas e insuportáveis, distorcidas pelo viés da auto-psicografia, e há as hetero-biografias, escritas por amigos, familiares, discípulos, correligionários políticos, cívicos ou religiosos, que todas oscilam entre o panegírico do herói e o panfleto da ideologia.
Também há fotobiografias quando o biografado teve o cuidado de se registar em imagens e de as arquivar cuidadosamente ad posteritatem.
Peguei no seu livro, Maria Augusta, li-o apaixonadamente, de fio a pavio, e fiquei surpreendido. Tem fotografias mas não é fotobiografia; não é panegírico de amigo, familiar ou dependente, não faz juízos de valor do alto de uma postura ética, de uma convicção religiosa ou de uma doutrina política – é, para mim, um género novo ao qual vou chamar, com algum atrevimento, "Biografia global". Porquê global?

Porque a Maria Augusta desenha, com pinceladas de mestre, que me fizeram lembrar o Van Gogh da última fase, um grande afresco, dinâmico, de Portugal e da Europa, desde os anos 40 até aos nossos dias, afresco pelo qual Corino circula, fala, gesticula, intervém, é interpelado pelos outros e pelas circunstâncias e é julgado, avaliado, elogiado, criticado, por esses outros e pelas tais circunstâncias. Das páginas do seu livro, escritas com um inexcedível rigor de investigação jornalística, emerge um Corino vivo, de corpo inteiro e espírito solto, irónico, mordaz e às vezes sensível, terno, emocionado até às lágrimas. A Maria Augusta acompanha-o discretamente, com subtileza, com cuidado; e até com algum pudor quando aflora, na intimidade de Corino, o mistério da morte e os segredos da vida intelectual e afetiva dos humanos.

Claro está que Corino não é figura solitária neste esplêndido afresco mural e global que é o seu livro. Lá estão os antigos e os novos, os do Alentejo, de Estrasburgo, de Lisboa e do Porto, dos Açores e da Póvoa de Varzim, os que lhe são próximos e os que o contemplam à distância, todos nas posturas adequadas a cada um, mais entusiásticas ou mais serenas, e tudo sobre um fundo azul revolto tormentoso como em Van Gogh e que é o Portugal governado por Salazar, é a 2ª Grande Guerra, é o 25 de Abril e é a Segunda República Democrática Portuguesa.

É um novo género, Maria Augusta; género tão exigente na investigação e confirmação dos factos e das fontes, tão complexo na organização de todo o material recolhido, tão delicado na tessitura do fio do discurso que a tudo dará encanto de leitura e lógica formal, tão generoso na ocultação do autor para que o biografado seja verdadeiro protagonista, que não prevejo que este novo género de biografia global venha a ter muitos cultores entre nós. Para já saudamos o primeiro com o louvor e o respeito que merece.

A segunda questão, Maria Augusta, é agora quase tautológica: está escrito o livro definitivo sobre Corino Andrade. Ninguém o poderá ignorar no futuro, não será nunca ultrapassado, nem ficará "démodé" com a passagem dos anos.
Corino está nele e nele permanecerá com a sua forma peculiar de estar na vida e nos tempos em que lhe coube existir, com o seu universo relacional de pessoas, animais, culturas e paisagens, com as suas paixões, os seus desgostos e os seus triunfos.
Corino Andrade tem o livro biográfico definitivo que merecia.

Parabéns, Maria Augusta Silva, pelo seu talento e pelo seu trabalho. E também pela sua coragem criativa.


SOBRE  DANÇA DE MATISSE

Apresentação pública da obra pela Prof.ª Teresa Rita Lopes
(Maio 2005
)

Não entrevistei a Maria Augusta para fazer esta singela apresentação do seu livro... Ouso suposições. Perguntar-lhe-ei depois se errei ou acertei. O que mais queria era conseguir guiar-vos durante uns quinze ou vinte minutos através deste universo que só se revela àqueles que o pisam com pés dançantes, sentidos todos despertos mas olhos, às vezes, semicerrados, para melhor sonhar. Porque esta poesia tem um universo próprio, transfigurado. Apesar de ter, frequentemente, uma feição diarística: o sujeito situa-se num tempo e num lugar e dá-nos disso notícia. Ficamos, assim, a saber que, no momento do poema, é Junho, ou Dezembro, e que "faz muito escuro", ou que "já escureceu". A densa atmosfera deste universo – a que é preciso o leitor ou ouvinte adaptar-se – é, sobretudo, nocturna ou crepuscular. (É um universo fêmeo a que a lua preside.)
Rapidamente nos damos conta que, mesmo quando algumas anotações remetem para um real quotidiano, há sempre uma tendência para destruir as fronteiras que o separam do "mistério", para "infinitizar" o real (neologismo proposto pela autora, p.42). Embora vigore também a tendência oposta: a de "quotidianizar" o mistério (agora o neologismo é meu). O poema significativamente intitulado "Sem Importância" é flagrante exemplo desta tendência: faz-nos visualizar uma cena caseira, a de descarregar "as compras do mês", e ouvir a recomendação dele ou dela: "Cuidado com o azeite!". Mas a autora desta anotação – a que não falta a precisão diarística: "Some-se entretanto a luz da tarde" – não deixa de insinuar que "na fragilidade deste dizer / há qualquer coisa de vago e enigmático" , e faz pairar por sobre esta atmosfera aparentemente banal e quotidiana a "sabedoria dos mortos / que partilham a nossa mesa". Dá então lugar de primeiro plano aos "frutos maduros", encarregados de "contar" o que chama "a nossa história sem importância" (p.22). Outros poemas falam da íntima relação com as coisas e os seres da casa, do "nosso apego às pedras da casa" (p.77), e do Tejo, que "não era um rio, era um cão grande" , recordação da infância, que "mordia a terra se não ouvia o avô cantar entre as searas". Às vezes, as coisas impõem a sua ausência: "Deixou de haver laranjas no quintal".
Dir-se-ia que alguns poemas deste livro são escritos com o olhar, o que faz deles pequenos quadros dinâmicos, como o que se intitula "Golpe" (p.76):

Um golpe condensado
em tinta preta
no muro da padaria. Um sexo
arqueado
ferido. Afrouxa o passo
o vizinho
que vai ao pão antes das oito.
Sacode
a chuva. Sacode o ombro
o peso
do ombro. Conta os pães
um a um.
Tem dúvidas quanto à cor da cal

Por vezes o olhar conta – descreve - uma situação no breve instante do arder de um fósforo, como neste poema intitulado "Casaco de lã" (p.45):

Dói-me o casaco
de lã preta nas mãos.
Dor como deve ser a dor
das crias abandonadas.

Mas chegas, pegas-me
no casaco, sorris.

Amo-te

Sei quase nada da vida da Maria Augusta – quase só o que nos diz a badana do livro.
Sendo este livro de poesia o seu primeiro, nesta modalidade, também nada sabia da sua poesia. Quando o abri fiquei à espera de encontrar vestígios da sua vida em África. Mas só encontrei três: "um beijo com sabor a caju" (p.56), a presença de "imbondeiros" (p.60) e uma contadora de histórias, Ía, que, ia jurar, era africana: "Conhecem a Ía?" (p.67).
Creio que isso acontece porque fez dessa África em que viveu coisa sua, que incorporou e que transformou em matéria poética, como os outros sítios e factos da sua existência. Vem a propósito avançar com outra suposição minha: este livro reúne poemas de uma vida. É admirável a unidade que consegue, apesar de estarem, imagino, distanciados uns dos outros, no tempo.
A escrita deste livro oscila entre dois polos opostos, conciliando-os: esse quotidiano que quer "infinitizar" e o "infinito", frequentemente convocado e nomeado, que acaba por "quotidianizar". O poema "Telhados" (p. 34) faz-nos assistir à difícil conciliação entre o impulso da asa, para "ilimitar" o corpo, e o aconchego do ninho – da casa – Grande Ventre que acolhe o regresso de todos os voos:

(...) Todos os pássaros
adormecem
fazendo das penas o seu repouso natural.
Infinitos
de ninhos, de caminhos. Se um pássaro
vier deitar-se
a meu lado, não temerei o escuro

Outro poema, com o significativo título "Do corpo ilimitado" (p.15), exprime o mesmo anseio do que aí chama " a reconstrução do ilimitado", especificando: "Do corpo ilimitado. Do amor ilimitado.", definindo o "sonho" como "cavalo sem freio na palavra salva". (A oposição aqui é entre o quotidiano corpo, sujeito às leis da gravidade e da morte, e o sonho, que, através da palavra, o liberta – o ilimita.)
No poema "Uma luz adiante" (p.18), a ânsia de ilimitação faz dizer que "o inacessível é uma luz por nós habitada desde o princípio".
Será que é também essa ânsia de ilimitação que leva a autora a nunca pôr um ponto final no último verso de todos os seus poemas, apesar de todos os outros versos estarem pontuados com vírgulas e pontos, convencionalmente?
A vida é sentida como um "exílio" mas o amor devolve-a ao "infinito" primordial.
Poder-se-á dizer que o amor e a morte estão sempre presentes neste livro. "Amar-nos-emos / distraídos da morte", propõe (p.43)
A morte espreita e ameaça sempre: "a morte rente aos vidros" (p.24) Só o amor luta contra o efémero: "Nada é efémero, estás." (p.56) "Só os amantes descobrem os atalhos / que vão dar à espuma" (a "espuma" aparecendo aqui, a meu ver, como o anseio de ilimitação das ondas).
A "desmesura do enigma" (p.24) paira sobre tudo. E o homem é esse "animal aflito" de que fala António Gedeão. Mas o deus que a personagem destes poemas procura, incessantemente, é também um deus aflito (p.78):

Quem sabe?
encontrarei um deus
numa enseada
saído da noite, aflito
como eu estou

Noutro poema, o deus que oficia ao amor é "um deus clandestino" (p.30):

(...) Um deus
clandestino
vem dar-nos a taça e o vinho.
Por um momento
acredito na ressurreição
das pedras

Será este deus uma ficção do amor, que até faz acreditar "na ressurreição das pedras"?
Num outro poema, "Anjo" (p.72), esse ser celestial, em estátua de pedra, aparece cúmplice do amor, de "um namoro de meninos e amoras". É também em situação de cumplicidade que São Francisco de Assis assiste a um enlace amoroso, em cima de um móvel do quarto, "não sei se caridoso ou fascinado" (p.14). Mas a única divindade reconhecida é a dos meninos brincando descalços, "à roda dos imbondeiros", com "um arco e uma flor" (p. 60)
A busca da ilimitação da vida não conduz ao mesmo céu que a ogiva gótica: dir-se-ia que acontece em sentido contrário, no da profundidade – como diz um dos mais belos poemas deste livro, "No interior de ti" (p.62):

Um dia, devagar, subiremos
ao ponto
mais alto da nossa profundidade.
Tu, chave
longa, macia, abrindo janelas
orvalhadas.
Eu no interior de ti, guardada
entre
paredes de água, a soletrar : mãe

Aqui caminha-se para a infinitude (deus? perfeição? beleza? amor?) no sentido da fundura e não da altura. No poema anterior, "Insubmissos", a autora tinha escrito:

Dias tenho em que me afundo
na terra
como toupeira escavando sonos
longos.

Dir-se-ia que a autora busca uma espécie de consanguinidade com o universo, anulando a fronteira que separa o espírito da matéria. Não deve ser para jogar com as palavras que escreve (p.52): "Terramoto de almas, terramoto de lamas.", mas para estabelecer o trânsito entre a alma e a lama.
No poema "Eternidades" (p.64) é com o mar que restabelece uma contiguidade perdida:

Mar e eu somos meios-irmãos
filhos
de um pai que o mistério
adensa
na lamentação da morte.
Silenciosas
as estrelas do mar desafiam-me
vindas
não sei de quantas eternidades

Perdido de si (do seu mais fundo si) o homem só na palavra busca salvação. Mas, curiosamente, a palavra apresenta-se ora alada: "É o voo/ do poema acima do mundo. Palavras/ dentro das pombas/ rumo à origem do verbo" (p.74) ora "manufacturada":
"Passeio por dentro de pequenas/ gavetas./ Desamarro fios de seda, desembrulho / ditongos / vogais manufacturadas." (p.75)
Seja como for, pomba ou artefacto, é a palavra que arranca a cada coisa, a cada ser a "desmesura" que o habita. Só ela "torna as sombras habitáveis" (p.31) Só ela povoa o silêncio todo-poderoso que envolve este universo.
Esta poesia que busca a ilimitação pratica o despojamento das palavras e dos gestos. Não há nunca nesta escrita o rompante, a estridência de um ponto de exclamação. Tudo é concentração e intensidade. É nesta atitude que a temos que frequentar.

Teresa Rita Lopes