Fernando Echevarría

Novo livro «Via Analítica»:
o labor e o rigor de um poeta singular

echevarria


Mais de seis décadas a escrever poesia, Fernando Echevarría é, inquestionavelmente, dos maiores nomes da cultura em língua portuguesa. A 26 de Fevereiro (2019), completa 90 anos. Novo livro da sua autoria, Via Analítica, (Edições Afrontamento) reúne mais de 500 poemas, e, assinala, de certo modo, a vida e obra de um poeta que fez um caminho singular, vendo a sua criatividade distinguida por diversas vezes, nomeadamente com o Prémio de Cultura Padre Manuel Antunes.
Num apontamento jornalístico que dedicámos a Echevarría, nas páginas do Diário de Notícias, ao ser-lhe entregue o Prémio Luís Miguel Nava (1999) pela obra Geórgicas (também galardoada com o Prémio Pen Club Português de Poesia e Prémio António Ramos Rosa -1998), sublinhámos o labor de um poeta que organiza a forma, a imagem, o ritmo do poema numa busca em nome da essencialidade, marca indelével da sua arte.
 Realçámos, então, o rigor da linguagem, o verso depurado. Voltamos às mesmas palavras: O estrondo da interioridade de Echevarría dá-se na cintilação de uma escrita que sabe romper a inércia para contaminar o espírito sem fantasmas nem inflamados apaziguamentos. Mesmo quando é a morte a tomar lugar na poética do autor de Sobre os Mortos, há na inquietação do ser a interrogação lúcida; o real-opaco levanta-se com subtileza, abstrai-se das sombras e namora o ventre filosofal num prodigioso silêncio, esse silêncio que ajuda a estruturar a análise, que pronuncia a metafísica e procura gerir a complexidade maior do processo criativo até se operar a «transparência enigmática» — como se lhe referiu a ensaísta Maria João Reynaud.

Maria Augusta Silva

Do volume agora editado, registamos o poema seguinte:

É NA VELHICE QUE O AMOR
resplandece. Abstrai a flama
do corpo, compenetrado
até se cumprir em alma.
A partir dela, o que vê
também sobe. E, aí, ganha
luminescência, talvez
forma nítida de graça
e nostalgia a reter
sua transparente mágoa.

Plena, então, rompe a velhice
os selos da inteligência.
A dos afectos, a abrir-se,
dá com a clara surpresa
de sumirem-se limites
por onde as imagens entram
e se amam mútuas. Felizes
como o arroubo que as sustenta.


Fernando Echevarría
(in Via Analítica. Edições Afrontamento)





Sophia

Centenário do nascimento de um nome supremo
da cultura portuguesa



Basta dizer o seu nome: Sophia. E tudo, na palavra despojada, é imenso, luminoso. Ao longo de 2019 assinala-se o centenário do nascimento de um nome supremo da nossa cultura. Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu a 6 de Novembro de 1919, no Porto. Morreu em Julho de 2004, em Lisboa. Repousa no Panteão Nacional.
Neste sítio de partilha, associamo-nos, de jeito simples, aos cem anos da escritora que nos legou uma obra ímpar (de projeção mundial), tanto a de poesia como a de ficção, ressaltando, de igual modo, a da literatura infanto-juvenil.
Inscrevemos seis poemas de Sophia, celebrando-a.
E dizemos: Sophia, eternamente Sophia.

                  A FORMA JUSTA

Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos — se ninguém atraiçoasse — proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
— Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo

--------


                   POEMA

A minha vida é o mar o Abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita

Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará

Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento

A terra o sol o vento o mar
São minha biografia e são meu rosto

Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento

E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada

-----


       EM TODOS OS JARDINS

Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.

Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.

------

               ESCUTO

Escuto mas não sei
Se o que oiço é silêncio
Ou deus

Escuto sem saber se estou ouvindo
O ressoar das planícies do vazio
Ou a consciência atenta
Que nos confins do universo
Me decifra e fita

Apenas sei que caminho como quem
É olhado amado e conhecido
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco

----
                  INSTANTE

Deixai-me limpo
O ar dos quartos
E liso
O branco das paredes

Deixai-me com as coisas
Fundadas no silêncio

-----

                INSCRIÇÃO

Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar

Sophia de Mello Breyner Andresen

(In Obra Poética, Editorial Caminho)

-----

De textos que, entretanto, a Sophia dedicámos, recordamos, também aqui, o que aborda dez anos (2014) da sua partida em 2004; outro (2005) registando um inesquecível recital no Teatro D. Maria II, organizado pela Professora Maria Teresa Dias Furtado. Relembramos igualmente a decisão da Assembleia da República ao aprovar por unanimidade a concessão de honras de Panteão Nacional aos restos mortais de Sophia de Mello Breyner Andresen.



  Maria Augusta Silva
Janeiro, 2019



A estética e a ética
DEZ ANOS SEM SOPHIA

Estética e ética, verbo desdobrado em luz e musicalidade, em reflexão e urgência, assim é a obra de Sophia, da escritora e da mulher.
Sophia de Mello Breyner Andresen, criadora da palavra límpida na poesia e prosa, despediu-se da «geografia» terrestre aos 84 anos, deixando de si uma obra imorredoura, premiada a nível mundial. Imorredoura como neste poema de Sophia: «Há muito que deixei aquela praia / De grandes areais e grandes vagas / Mas sou eu ainda quem na brisa respira / E é por mim que espera cintilando a maré vasa».
Nascida no Porto, Sophia, de origem dinamarquesa pelo lado paterno, recebeu o mais importante galardão literário da língua portuguesa, o Prémio Camões, 1999; Prémio Max Jacob, 2002, e em 2003 venceu o Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-americana. Ergueu a voz contra o regime salazarista. Foi cofundadora da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, durante a ditadura, e, após o 25 de Abril, seria eleita deputada à Assembleia Constituinte.
Ao longo de seis décadas de vida literária, poeta do «primordial», a sua poesia esteve na rua, está nos livros, porque «O poema é / A liberdade».
Coube-me fazer, há dez anos, a reportagem do seu funeral para o DN. Recordo-a.
A igreja da Graça estava cheia. Celebrou-se a obra e a mulher, vulto da cultura portuguesa. Presentes numerosíssimas individualidades: o Presidente da República, Jorge Sampaio, o ministro da Cultura, Pedro Roseta, figuras das letras e das artes, nomes dos mais diferentes quadrantes políticos.
Olhos vivendo a emoção comungaram as palavras bíblicas e a poesia de Sophia. O poema Carta aos Amigos Mortos, da autora de Livro Sexto, na voz de Maria Barroso: «Eis que morreste — agora já não bate / O vosso coração cujo bater / Dava ritmo e esperança ao meu viver / Agora estais perdidos para mim / — O olhar não atravessa esta distância — / Nem irei procurar-vos pois não sou / Orpheu tendo escolhido para mim / Estar presente aqui onde estou viva / Eu vos desejo a paz nesse caminho / Fora do mundo que respiro e vejo / Porém aqui eu escolhi viver / Nada me resta senão olhar de frente / Neste país de dor e incerteza / Aqui eu escolhi permanecer / Onde a visão é dura e mais difícil // Aqui me resta apenas fazer frente / Ao rosto sujo de ódio e de injustiça / A lucidez me serve para ver / A cidade a cair muro por muro / E as faces a morrerem uma a uma / E a morte que me corta ela me ensina / Que o sinal do homem não é uma coluna // E eu vos peço por este amor cortado / Que vos lembreis de mim lá onde o amor / Já não pode morrer nem ser quebrado / Que o vosso coração que já não bate / O tempo denso de sangue e de saudade / Mas vive a perfeição da claridade / Se compadeça de mim e de meu pranto / Se compadeça de mim e de meu canto».
Depois, Manuel Alegre e a profundidade do livro Dual, do qual irrompe a grandeza da mulher-poeta: «Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos / A paz sem vencedor e sem vencidos / Que o tempo que nos deste seja um novo / Recomeço de esperança e de justiça / Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos // A paz sem vencedor e sem vencidos // Erguei o nosso ser à transparência / Para podermos ler melhor a vida / Para entendermos vosso mandamento / Para que venha a nós o vosso reino / Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos // A paz sem vencedor e sem vencidos // Fazei Senhor que a paz seja de todos / Dai-nos a paz que nasce da verdade / Dai-nos a paz que nasce da justiça / Dai-nos a paz chamada liberdade / Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos // A paz sem vencedor e sem vencidos».
Comovido, Sampaio recolhia-se no silêncio. Mário Soares dava-me uma definição de Sophia: «Dignidade». O ministro da Cultura, Pedro Roseta, destacava «uma luz que fica, morreu mas não morre, a sua obra está viva, na poesia, nos contos, na literatura para crianças que acompanha velhas e novas gerações, na sua ação cívica, corajosa e determinante em defesa dos direitos humanos». Ferro Rodrigues acentuava «uma referência na poesia e um exemplo de cidadania».
Entre companheiros das letras e das artes, rostos de um sentimento de respeito e saudade, de muita admiração, como os do presidente da Associação Portuguesa de Escritores, José Manuel Mendes, ou Urbano Tavares Rodrigues, Maria Alberta Menéres, Gastão Cruz, José Tolentino de Mendonça, Graça Morais, Igrejas Caeiro, Nicolau Breyner. Ainda a voz de Maria Velho da Costa em palavras límpidas, no altar rodeado de flores, um ramo de gladíolos em escuta: «Perdemos a menina do mar alto, fica o claro sopro».
Na memória, na reflexão, guardavam todos o poema Quando, dito na igreja por Miguel Sousa Tavares: «Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta / Continuará o jardim, o céu e o mar, / E como hoje igualmente hão-de bailar / As quatro estações à minha porta. // Outros em Abril passarão no pomar / Em que eu tantas vezes passei, / Haverá longos poentes sobre o mar, / Outros amarão as coisas que eu amei. // Será o mesmo brilho, a mesma festa, / Será o mesmo jardim à minha porta, / E os cabelos doirados da floresta, / Como se eu não estivesse morta.»
Um mundo de corações para um adeus tão sentido. O arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles, criador do jardim da casa de Sophia, sublinhava-me: «Desejo que não o estraguem». A professora Suzete Barros, admiradora de Sophia, levou-lhe um cravo vermelho, e recordou: «Li muitos poemas seus a pessoas do campo». Do Porto, onde a escritora nasceu, vieram rosas do Jardim Botânico. E houve quem mandasse cartas para Sophia. Gente anónima olhava, despedia-se da «musa» que vivia na Graça. Lembro-me ainda hoje do rosto sereno de uma mulher um tanto acima da metade da vida, mulher simples, que passava por ali e a quem perguntei: Sabe quem morreu? Respondeu-me com uma voz igualmente de simplicidade feita: uma pessoa importante, escrevia, muito bonita, agora já tinha uma idadezinha mas a morte faz pena.
A urna de Sophia era abraçada por um lenço azul.

Maria Augusta Silva




Encontro no Teatro D. Maria II

Em Março de 2005, foi marcante um encontro organizado pela Professora Maria Teresa Dias Furtado realizado no Teatro D. Maria II, em Lisboa. Uma enchente. Recital emocionante. Na ocasião, num breve apontamento em jeito de entrevista, Maria Teresa Dias Furtado falou-me da importância de levar a um público diversificado «a personalidade literária e humana» de Sophia, de melhor se conhecer uma autora única, «a inteireza da sua personalidade aberta, sempre em escuta atenta, captando a essência das coisas». Maria Teresa, também poeta, realçava: «Sophia devolve-nos a capacidade de nos maravilharmos, de recusarmos o que é fácil, abrindo-nos horizontes de descoberta e de identidade. Tanta coisa escreveu que nos ficou no ouvido, na alma, no nosso modo de ser com o mundo e a vida».
E definia-nos a escrita de Sophia: «Límpida e rítmica, parte do real mais concreto e eleva-o às alturas do espírito. Espírito onde convergem, em unidade, o legado da cultura clássica e do cristianismo, matrizes da cultura europeia». Prosseguia: «Sophia é e continuará a ser na literatura portuguesa e na literatura mundial uma filigrana de luz, uma epopeia poética e dramática, uma voz que nos desperta e nos confia o que de mais genuíno tem a realidade». Lembrava a propósito palavras de Sophia: «O poema é o selo da aliança do homem com as coisas».
Outro poeta, Casimiro de Brito, de Sophia me falou: «Grande poeta é esse que resume o mundo e toda a poesia em cada um dos seus poemas. Sophia, entre nós, é um dos melhores exemplos. A origem da poesia passa pela sua poesia: os gregos, os mitos, a tradição peninsular, a aura e o sofrimento dos humanos, a natureza e a sua inteireza, a aurora e a noite, o conhecimento e a grande saudável ignorância».
Casimiro de Brito completava o seu olhar sobre Sophia: «Mas cada grande poeta é também esse que inicia, em que tudo são começos, e Sophia, entre nós, é o poeta da palavra inaugural, a que foi bebida junto ao mar, sofrida junto dos homens, a palavra do canto antigo todos os dias renovado como se em cada poema dela, Sophia, as palavras dissessem: começa aqui a casa primitiva. Poucos poetas alcançam essa grandeza, a de ser solista numa orquestra sempre multiplicada e tão plena de energia como é a poesia portuguesa».


MAS

PS: Obrigada, Sophia. Cinco versos seus caminham comigo todos os dias:

Apesar das ruínas e da morte, / Onde sempre acabou cada ilusão, / A força dos meus sonhos é tão   forte, / Que de tudo renasce a exaltação / E nunca as minhas mãos ficam vazias.




Honras de Panteão Nacional nos dez anos da morte

A Assembleia da República aprovou por unanimidade a concessão de honras de Panteão Nacional aos restos mortais de Sophia de Mello Breyner Andresen, assinalando os dez anos da morte da escritora e os quarenta anos do 25 de Abril.
No projeto de resolução lê-se que a concessão de honras de Panteão Nacional a Sophia de Mello Breyner Andresen é uma forma de homenagear «a escritora universal, a mulher digna, a cidadã corajosa, a portuguesa insigne» e uma evocação do seu exemplo de «fidelidade aos valores da liberdade e da justiça».
Assinala-se no texto aprovado por todas as bancadas parlamentares: «Grande poeta, cidadã exemplar, portuguesa ilustre, europeia consciente, Sophia de Mello Breyner Andresen foi uma das grandes figuras do nosso tempo. Na sua vida e na sua obra, há uma grandeza de ideais, de valores e de qualidades em que o País se reconhece e em que a democracia se revê».

JULHO 2014








manta

José David Lopes

Nascido para grande repórter

Zé David,

Não sei se a vida te proporcionou tudo o que, porventura, desejaste, porém de uma coisa estou certa: deste de ti tudo à vida, no teu modo de sonhares o mundo, um mundo que a nossa geração, a da utopia, quis incomodar para tentar criar dinâmicas defensoras da liberdade, desenvolvimento, justiça e fraternidade; um mundo com valores humanos, sociais e culturais em prol dos países, dos povos.
Viveste, Zé, como te agradou viver as facetas do teu ser, os ideais, o trabalho: o gosto e a garra com que exerceste o jornalismo, não hesitando na escolha do caminho, deixando a universidade em seu sossego. Tu precisavas de outros desafios; precisavas que um olhar de jovem irreverentemente atento fosse mais longe, mais fundo, com aquela inquietude de espírito e de inteligência que os grandes repórteres têm. E tu, meu caro José David Lopes, pertenceste (pertences) à primeira linha dos jornalistas portugueses. Nascido para grande repórter, afirmaste a tua excelência profissional. Sabias todos os segredos de uma reportagem; sabias a ordem da notícia, dominavas um estilo de crónica saborosa, eficaz, palavra enxuta. A escrita morava na tua respiração. De mão cheia a passavas para as páginas do Diário de Notícias.
Viveste a amizade e a camaradagem com intensidade. Viveste a família, o amor, a paixão (as paixões) com a força e a beleza dos nobres sentimentos e o inevitável desassossego que, por vezes, o enamoramento provoca.        
Como bom observador e com grande honestidade, estarás já a perguntar-me: Eu não tinha defeitos, nunca errei? Respondo-te, Zé, ao meu jeito (sem querer magoar nenhum credo): Perfeito, nem Deus! (e ao dizer assim, sei que Deus me entende).
Partiste, Zé David, com a coragem, a indescritível coragem necessária para um adeus à vida e aos que amamos. O Diário de Notícias foi a tua vida, naturalmente vivida com envolvimentos (ora mais serenos, ora abrangendo excessos), com virtudes e fragilidades próprias da natureza humana, próprias também dos diferentes tempos da história, de convicções e circunstâncias (como acontece a todos nós), mas vivida com um ideal maior: o de servir o jornal e os seus leitores. O facto, no entanto, de o DN ter sido a tua vida não diminuiu a tua outra realidade, a tua verdade intocável: o orgulho e o amor de pai (cinco filhos), de avô e bisavô. Admirava-te igualmente por isso, meu doidão...
Zé, aos 75 anos, não ganhaste a luta contra o cancro, todavia ganhaste o respeito de quantos te eram (e são dedicados). De quantos reconheciam o teu mérito enquanto jornalista e homem de sólida cultura.
Agora, Zé, sorri com aquele sorriso calmo e sedutor a que nos habituaste, veste o teu juvenil blusão de ganga azul, ajeita os óculos (sempre a escorregarem-te) e prepara nova reportagem, combinado?    


Maria Augusta Silva



albano

Albano Martins num desenho de Jorge Pinheiro

Albano Martins

O poeta solar que esconjurava a morte

Há pessoas que em mim jamais morrerão porque a morte física não anulará a vida, o quanto as suas vidas significaram no mais íntimo dos meus sentimentos. Albano Martins, meu poeta, meu amigo, é um desses casos. Por isso me tem sido muito difícil vir a este espaço com algumas palavras sobre o Albano, que, em Junho (2018), partiu à beira de completar 88 anos (nasceu em terras do Fundão / Telhado, a 24 de Julho, 1930, embora registado a 6 de Agosto) e prestes a somar sete décadas de escritor. Albano que, um dia, numa entrevista para o Diário de Notícias e, depois, num longo diálogo inscrito no álbum Poetas Visitados (2004, Edições Caixotim), me vincava cada sílaba: A morte na minha poesia é uma forma de esconjuro. Uma tentativa de ab-rogação do absurdo. De um absurdo que é este: a consciência de que se nasce para a morte e de que sobrevivemos a custo, à beira do abismo.
Pois, quem da arte poética fez «uma companheira, uma confidente» com o coração a marcar o rumo (bússola ímpar a apontar o caminho); quem detestava cedências à facilidade estéril; quem no poema mínimo conseguia lavrar a essência; quem no verso depurado, na estética e na ética das palavras escrevia a imensidão do amor, a delicadeza do amor, a espantosa melodia da relação dos corpos amados, a profunda e bela comunicação com a Natureza; quem não abdicava de uma consciência íntegra, de um comportamento discreto e autêntico, só poderia legar-nos (legar à cultura, à Humanidade) uma obra singular, talentosa, enriquecedora. A obra solar de um homem que iluminava múltiplas sombras e partilhava uma generosidade incontornável.
Volto ao seu encontro, Albano, e não estranhará o que lhe conto, mais uma vez, hoje que está no silêncio próprio dos que se despedem mas permanecem em nós com a sua totalidade. Sabe, assim, que já o admirava antes de o conhecer pessoalmente e de nos tornarmos amigos. Contactara com o seu Coração de Bússola numa Luanda da minha juventude/adulta (despontavam os anos 70). Trazia então comigo, num papelinho guardado na malinha de mão, três versos da sua autoria, que me guiavam, que me guiam: A vida / essa invenção magnífica / da morte. Confessei-lhe isso na Carta Sem Data que enviei para a coletânea celebrativa dos seus 80 anos e 60 de carreira (edição da Universidade Fernando Pessoa). Confessei-lhe isso, também, na homenagem pública que lhe prestaram na Sociedade Portuguesa de Autores, em Lisboa; mostrei-lhe, nessa ocasião, o tal pedacinho de papel que o tempo foi envelhecendo (envelheceu o papel e envelheceu-me) mas os seus versos continuam sem idade na força interior com que os preservo nas minhas orações sem doutrinas.
Meu poeta, meu querido amigo, quero acreditar que não tardará, neste país, uma edição alargada e esmerada em torno da sua obra completa, seguindo o trilho do volume Assim São as Algas – poesia 1950 -2000 (editora Campo das Letras, Porto), agora, naturalmente, abrangendo o muito que em mais dezoito anos ofereceu ao nosso património cultural, nomeadamente esse trabalho único e a todos os títulos notável que é a Antologia da Poesia Grega Clássica, 2009 (tradução e notas complementares testemunhando o timbre da sua investigação, sabedoria e engenho), com a chancela da Portugália Editora. Uma edição que de igual modo considere toda a sua criação literária (multifacetada) dos períodos antes e pós 2000 e, porventura, poemas inéditos.
Distinguido a nível nacional e internacional, traduzido em diversas línguas, conheço de si, contudo, o bastante para saber que as vénias, as honrarias, não o deslumbravam. Porém, não é de vénias que falo, sim de justiça. Temos obrigação de colocar o seu nome — o seu labor, a sua criatividade literária — entre os grandes da nossa história na escrita (poesia e prosa), no ensino, ensaio, no ofício de tradutor (de Pablo Neruda a Giacomo Leopardi, de Salomão – Cântico dos Cânticos – a Rafael Alberti, de Zhang Kejiu a Mahmud Darwich, de Nicolás Guillén a Lourdes Espínola, passando, entre outros, por O Essencial de Alceu e Safo); lembrando, entretanto, uma surpreendente viagem pela literatura infanto-juvenil. Recordo de uma obra vastíssima (cito de memória apenas alguns) livros como o de estreia, Secura Verde (1950), Coração de Bússola, Rodomel Rododendro, Uma Colina para os Lábios, Escrito a Vermelho, Três Poemas de Amor Seguidos de Livro Quarto ou o mais recente Dicionário Privativo seguido de Um Punhado de Areia. Devemos-lhe, repito, um reconhecimento maior.
Aqui lhe dou, Albano, o meu abraço de saudade (e o do Pedro Foyos), toda a amizade e gratidão. É grande a perda, a dor. Perda, dor e luto que a Kay (a sua amada, tão lindo o vosso amor de sempre e para sempre, e a sua filha Isabel sofrem como ninguém). Igualmente a ambas digo: há pessoas que nunca morrerão em nós porque a morte física jamais anulará a vida, o quanto as suas vidas significou no mais íntimo dos nossos sentimentos. O Albano tem essa imortalidade.
Meu poeta, meu amigo, bem-haja por tudo, pelos seus versos salvadores: A vida / essa invenção magnífica / da morte.


Maria Augusta Silva



manta

Júlio Pomar numa pintura de Helena Jardim

Júlio Pomar

Arte, a paixão de que nunca se curou. Ainda bem

Basta pronunciar o seu nome: Júlio Pomar, e tudo é imenso — continua imenso — na arte de fazer, pois «(…) É fazendo que faço. E ao fazer transformo. Para mim, fazer é transformar». Imenso na sabedoria de ser, traçando o rumo: «(…) não desisto de existir», ciente, entretanto, de que «(…) viver é, exatamente, uma transcendência do físico». Imenso, do mesmo modo, numa busca constante, definindo a sua pintura como «(…) uma tentativa de circular através do caos. Não uma vontade de aceitar o caos, mas um procurar perceber e circular sem ser esmagado pelo caos. O que caracteriza a minha deslocação no mundo é essa tentativa de ir de um ponto a outro pelo meio de uma quantidade de máquinas e de seres que se agitam descontroladamente e num sentido que muitas vezes nos escapa». Assim me disse na longa entrevista que realizei para o Diário de Notícias, em Dezembro de 2002, a qual está, também, inscrita no Casal das Letras, neste sítio de cultura, partilha e memória.
Numa sala onde dominava a quietude, Pomar manteve os olhos fechados do princípio ao fim deste diálogo. Interroguei, porquê? «Para me concentrar no interior da cabeça. Para tentar ver o que digo». Tudo isto a contrastar com a vivacidade de outros instantes no lugar do seu fazer, tintas e pincéis por todo o lado, telas com um espelho próximo. Um espelho, intrigante pormenor, todavia tão simples de explicar: «O espelho está colocado ali como uma ratoeira, funciona, até, como uma boa traição. Deve dar-me uma imagem do quadro quando não a procuro. Nunca deixo o quadro para ir ao espelho ver se a imagem se apresenta ou não equilibrada. Gosto de ser surpreendido».
Pomar, o pintor igualmente fascinado pelo circo. «Que é o circo senão um modelo do mundo? Pensar-se que o circo é um espetáculo para crianças denota o vício de tentarmos um qualquer entendimento para reduzir as coisas. O circo não é uma simplificação da existência das pessoas ou do mundo em que vivem, será talvez a exaltação do excesso».
E nesse circo que a vida é, o tempo adensou em Júlio Pomar mais os medos ou o sonho? Eloquente, o mestre que mestre não se julgava: «Entre medos se nasce, entre medos se vive. O problema não é negar a existência do medo mas sim o de o pobre ser humano não se deixar esmagar por esse medo, procurando usar o próprio medo como uma espécie de gasolina que faz andar uma parte do seu motor».
Pomar, óculos arredondados a acentuarem-lhe o sorriso de menino-homem que nunca apagou das mais queridas recordações «os barcos de papel que me fazia o meu avô materno»; Pomar, para quem «o vazio é uma dimensão respirável, o espaço entre as palavras, uma cor da atmosfera ou uma atmosfera de cor»; Pomar que nunca desistiu de existir, deixou-nos agora (com 92 anos) um outro vazio, o de uma perda irreparável.
Júlio Pomar partiu neste Maio de flores e frutos (2018). A obra multifacetada, transbordante (do desenho à pintura, da escultura às colagens, da ilustração à poesia) fica, património cultural irrepetível, renovando-se no olhar da nossa admiração. Havendo na sua plasticidade a energia do tigre, o engrandecimento dos contrários, o desafio entre a harmonia e o conflito, entre a calma e a ira, todo esse fulgor pictórico de Pomar personifica uma verdade: paixão. Ao perguntar-lhe um dia se a arte era uma droga que cria habituação (como a ela, por exemplo, se referia Duchamp) e se, nesse contexto, se sentia drogado, respondeu sem rodeios: «Sinto-me dependente. Mas, na maior parte dos casos, a droga é um substituto pouco imaginativo da paixão. A paixão é outra coisa, nunca se sabe onde vai dar, o que é muito mais divertido. Neste aspeto, não quero a cura».
Ainda bem, Júlio Pomar, que nunca se curou dessa paixão.  


Maria Augusta Silva

TAMBÉM NESTE SÍTIO:
Entrevista a Júlio Pomar (2002)





manta

Abel Manta numa caricatura recente
de outro notável artista, Nelson Santos

João Abel Manta

Celebração dos 90 anos de um artista maior

João Abel Manta, que acaba de completar 90 anos, é, inquestionavelmente, dos maiores artistas de todos os tempos e, porventura, o maior da nossa contemporaneidade, no desenho como no traço ímpar da sua linguagem gráfica, à qual se entregou com invulgar talento, sem fazer cedências à facilidade ou sequer ser tentado pela ribalta. Em toda a sua obra, minuciosa, trabalhada, atenta, desde a tinta-da-china à pintura, dos cartoons à ilustração, da caricatura às artes aplicadas, do azulejo à tapeçaria, da cenografia aos logótipos, João Abel Manta é bem o exemplo da força e da razão da qualidade, que é perene quando lúcida e fundamentada numa formação sólida como a que desfruta um artista com a dimensão cultural e o rigor estético do autor das Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar. Essa série famosa integrou uma grande exposição na capital, tendo na ocasião Abel Manta proporcionado à autora destas linhas uma inesquecível «visita guiada» da qual resultaria uma extensa reportagem no Diário de Notícias. O artista sublinhou então ter sido aquela série «das coisas mais importantes que realizei na vida, porque contém a minha visão de um regime e de um tempo que senti até aos meus quarenta e tal anos, metade de uma vida» — palavras que revelam todo o inconformismo e frontalidade que sempre o caracterizaram e cedo o levaram a ser um cidadão interventor, tanto cívica como culturalmente, chegando a ser levado a tribunal.


manta_salazar
Salazar e os clérigos, as personagens mais representadas por Abel Manta durante décadas

  Vale a pena citar as palavras de Mário Dionísio sobre a atitude e a obra de João Abel Manta: «Parece-me estar para o fascismo ibérico, e particularmente o português, como Goya esteve para a Revolução Francesa; um Goya, naturalmente, pós-Picasso, como julgo ver em muitas destas mãos — ora garras, ora estrutura óssea deformada, ora massa de carne já sem possível articulação dos dedos — todas elas significantes anómalos de um significado diretamente ligado a uma prática social de relações humanas desumanizantes (...)».
Filho dos pintores Abel Manta e Maria Clementina Carneiro de Moura, o autor desses inesquecíveis e deliciosos Diálogos Confidenciais, homem avesso ao exibicionismo e aos cocktails, é por natureza uma pessoa humorada, arguta, ao mesmo tempo discreta e de um notável bom gosto. A sua crítica acutilante, os elementos da sua criação artística jamais resvalaram para a grosseria, e a ironia ressalta do seu traço — onde o arquiteto acaba por estar sempre presente —como uma espada quase mágica, subtil, por isso mais pedagógica, intemporal e certeira. Também talvez por isso dirigida à inteligência onde dialogam as ideias e os testemunhos, sem inculcações de discursos moralistas, antes espaço de enriquecimento constante do saber que leva as pessoas a discernir.
As quatro centenas de obras que estiveram expostas nos dois pisos das amplas galerias do Museu Rafael Bordalo Pinheiro representavam um património valiosíssimo, memória essencial do mundo e, particularmente, da nossa história social, política e cultural do último meio século. E cabe, de facto, uma nova chamada de atenção para a importância de que se reveste a intervenção de João Abel Manta na área da cultura, divulgando nos seus carvões perfis como os de Aquilino ou Stravinsky, Arpad Szènes ou Manuela Porto, Almada Negreiros ou Pessoa, Camões ou Damião de Gois, Fialho de Almeida, Botto, Pessanha ou António Nobre, João de Barros, Namora, Vinicius, Stendhal, Torga, Cardoso Pires, Sartre ou Jaime Cortesão, entre tantos mais. Faceta que marcou sobremaneira os primeiros números do Jornal de Letras, de que foi um dos impulsionadores e ao qual esporadicamente continuou a dar o seu contributo, porque «eu digo que não faço mais artes gráficas, mas, qual quê?, acabo sempre por aceder a uma ou outra solicitação».


Maria Augusta Silva






Natália Nunes

Um abraço de admiração


De si, Natália, lembro-me com apreço. Há mais de vinte anos tive o privilégio de estar em sua casa, num «encontro histórico» com António Gedeão, entrevistando-o para o Diário de Notícias (1995). Afável, discreta, afastou-se, deixou-me (deixou-nos) num frente a frente que, sabia bem, não era pera doce com um vulto fascinante como Gedeão, de trato elegante, franco, todavia de uma incrível expressão contida, respostas breves, mínimas, acutilantes, ficando eu quase sem fôlego para lhe apanhar (acompanhar) a inteligência de cada palavra, de um pensamento brilhante e ao mesmo tempo desarmante. Não escondo que, a dado momento, temi ser derrotada, perder capacidade para a sequência de mais perguntas, quando Gedeão me atira: «A senhora quer-me confessar mas não me confesso».
Agarrei-me então com todas as forças ao enunciado do poeta da Pedra Filosofal, (ele mesmo, António Gedeão), ou seja, «o sonho comanda a vida», e continuei a sonhar, a sonhar muito, e a entrevista tornou-se longa, imensa, marcante.
No final, Gedeão chamou-a, voz perfeita em toda a sua gentileza e afeição. Natália apareceu com um chá gostoso, uns bolinhos simples, sorriso amigável. Instantes inesquecíveis. Como inesquecível o telefonema que tão inesperadamente me chegou de vós no dia em que a entrevista saiu nas páginas do DN. Como inesquecível a colaboração que a Natália prontamente me prestou, depois da morte de Gedeão, tentando corresponder ao meu desejo de incluir um poema inédito junto àquela entrevista transposta para o meu livro Poetas Visitados (Edições Caixotim, Outubro 2004), entrevista que do mesmo modo se encontra neste Casal das Letras. As pesquisas que teve de fazer!... para descobrir um «original salvado», provavelmente de Setembro de 1954, escrito em Coimbra, poema intitulado «Certezas, Precisam-se».
Agora, Natália, que partiu (96 anos, num Fevereiro frio, pois num Fevereiro/1997 de nós se despediu também Gedeão), agora que talvez vá ao encontro da «estrela polar» do poeta António Gedeão por quem se encantou (casando-se em 1945), tem-me aqui (tem-nos aqui, a mim e ao Pedro), neste sítio de partilha, a enviar-lhe um abraço de estima e admiração.
Recordamos, singelamente, a mulher, a escritora, a sua grandeza e firmeza nos valores cívicos e culturais, sem exibicionismos. Sublinhamos a valia da sua obra literária logo a partir de Horas Vivas: Memórias da Minha Infância (1952), prolongando-se em romances como Assembleia de Mulheres, Regresso ao Caos ou Vénus Turbulenta; ou em contos de que nos permitimos destacar Louca por Sapatos e Da Natureza das Coisas. Uma escrita límpida, harmoniosa, sólida no interesse por questões sociais sem demandar palavras de efeitos supérfluos, igualmente esplêndida no género mais confessional ou na abordagem do psiquismo humano.
Sendo importante e justo realçar-se todo o labor que dispensou à narrativa de ficção, às memórias, ao teatro, ainda à tradução de autores como Dostoievsky, Tolstoi, Violette Leduc ou Balzac, não menos relevante foi, porém, o seu apego a trabalhos ensaísticos que ao nosso panorama cultural acrescentaram mais conhecimento, uma admirável capacidade de análise, rigor e exigência. Bastará, entre outros, assinalarem-se As Batalhas que Nós Perdemos – Estudos sobre as obras de Augusto Abelaira, José Cardoso Pires e Raul Brandão, A Ressurreição das Florestas – Estudos sobre a obra de ficção de Carlos Oliveira, e o quanto observou e escreveu sobre o companheiro de uma vida, Rómulo de Carvalho/António Gedeão, nome incontornável das áreas da ciência e para todos o eternamente vivo poeta Gedeão.
A somar à sua formação em Ciências Histórico-Filosóficas, dever-se-á da mesma maneira salientar a competência com que desempenhou funções no Arquivo Nacional da Torre do Tombo e na Escola Superior de Belas Arte, desenvolvendo ali a sua aptidão académica superior de Bibliotecária–Arquivista.
Redobramos o nosso abraço de admiração.


Maria Augusta Silva



Manuela Alves

Um xaile, um almoço e duas dedicatórias


Recordo-te, Manuela, olhar inteligente, rosto cuidado (sem excessos); olhar que bastava para te escutarmos as palavras nem sempre ditas. Lembro, e continuo a respeitar, o modo como gostavas de preservar a tua individualidade. Zelosamente. Não por sustentares (eu sei) um individualismo caprichoso ou inumano (isso não cabia na grandeza do teu carácter nascido para a amizade, a camaradagem) mas, porventura, como maneira de protegeres uma reserva pessoal: não desbaratavas sentimentos, não abdicavas da tua voz mais íntima, firme, tão firme e importante quanto a voz que erguias em nome da ética, da dignidade do ser, de valores inalienáveis da Humanidade.
Uma ou outra vez pareceste-me esquiva, o mesmo, por certo, de mim pensaste em quaisquer momentos, tão defeituosos somos todos nós nas lavouras das nossas vidas. Ter-se-á dado um ou outro equívoco natural numa vivência de tantos e tantos anos no turbilhão das Redações, no ritmo desgastante, sufocante, dos jornais diários, no DN em especial, onde mais convivemos. Nada, todavia, que pusesse em causa ou sequer esmorecesse o apreço mútuo, a fraternidade que ganhara em ambas uma palavra-chave, uma espécie de código muito nosso e reforçado em fases sobremaneira difíceis da nossa precária matéria física, da nossa, não raro, impotente força de espírito perante os nossos corpos (ou de familiares queridos) atraiçoados por achaques que nos inquietavam. Essa palavra-chave: coragem. Quantas vezes a gritámos num grito mudo, saído mais do olhar do que da boca, deveras puro, mesmo que não estivéssemos perto uma da outra; mesmo nestes últimos anos setentonicamente resguardados,resignando-me com espinhosos percalços (não sei, confesso-te, se resignada se pacificamente revoltada), ciente, no entanto, desta insignificância no meio de milhões de sofrimentos tão penosos. Pronto, nada de lamechices: coragem, coragem! Mas, de vez em quando, um desabafo ajuda-nos, depois voltamos a embrulhá-lo naquele tradicional e empolgante «… estás com bom aspeto…», e assim seja.
Hoje (12 de Janeiro), data do teu aniversário. Uma energia qualquer levará até ti, a esse lugar invisível ao qual a saudade se une, um abraço grande, grande, de quantos continuam a expressar-te imorredoura afeição. E sinto vontade de oferecer-te mais um xaile igual àquele de tons azulados. Agradava-me ver-te com ele, agasalhando-te os ombros no teu trajar sóbrio, contudo não tristonho. Descobri-te aí uma emoção de alegria, contida, própria de ti, num simples dizer: gosto muito.
Manuela, permite-me, entretanto, voltar a tua casa para almoçarmos as duas, repasto saudável, claro, eu a ajudar-te a pôr o doméstico banquete na mesinha, e, pumba!, foi-se-me das mãos a taça da salada, felizmente não temperada, o que nos facilitou a limpeza rápida do chão. Uma tarde com vagar reconfortante, prestimoso, demorada nas nossas reflexões a propósito de tudo e de nada, filosofias em catadupa, desencadeando mais perguntas do que respostas, recordações da nossa geração da utopia, ideais entusiásticos, sabendo da impossibilidade de um mundo perfeito, porém teimando em não desistir-se da essência e objetivos do sonho. Um diálogo saboroso que passou, inevitavelmente, pelos trilhos do Sindicato dos Jornalistas (tu, detentora da carteira profissional nº 79, admitida em Fevereiro de 1969); mais de trinta anos de atividade em jornais, uma passagem ainda pela RTP; até ao fim, somando meio século de jornalismo nas tuas veias, no teu pensamento, no teu coração. Um diálogo impagável que estendemos à Casa da Imprensa (tu, associada há cerca de cinco décadas, nº 53, e na qual chegaste a integrar os corpos diretivos). Tarde inesquecível, Manuela. Naqueles instantes, assentava-nos como uma luva a nossa palavra-chave: coragem, em particular a coragem das circunstâncias com que íamos aprendendo a desconstruir uma ou outra apoquentação. Encontro que a memória arrecada e protege.
E ao falarmos de ensino/educação, ciência, história, artes, literatura, música, teatro, tudo o que tivesse matriz cultural, sociocultural, tudo o que, em dada medida, entroncasse na tua formação académica (filologia), então as palavras saíam de ti com o afinco e o rigor inexcedíveis que entregavas aos trabalhos jornalísticos. A pressa desmedida dos jornais diários e o curto espaço nas páginas para dares às peças a respiração necessária, arreliavam-te, protestando sem exibicionismo, sem espalhafato, mas com razão. Serás sempre, também por essa inabalável e salutar rebeldia, uma referência como jornalista, como cidadã, doando-nos um exemplo de competência, deontologia, coerência. Sem esquecermos a elegância, a graciosidade, a serena pedagogia dos teus livros infanto-juvenis, como Salpico ou O Ministro da Paciência.
Tenho este último à minha frente: comove-me a (imerecida) dedicatória que lhe juntaste; cito-a para referir o episódio incrível que gerou (cunho das nossas personalidades): Para a Maria (Augusta Silva), cuja paciência sem limites é uma das razões da minha admiração. Pedi-te que reconsiderasses sobre a minha paciência sem limites. Rapidamente, num sinal intercalar, aquele de V alçado, meteste um quase, lavrando: cuja paciência quase sem limites (…), mas, num subtil impulso, desarmaste-me. Foste ao final da linha e, toma lá: à afetuosa e gratificante expressão, já em si bastante, «uma das razões da minha admiração», adicionaste: «sem limites!». Obrigada, Manuela. O quase ficou, sim, mais de acordo com a minha paciência, especialmente agora que vai faltando a pachorra sobretudo para me aturar. Quanto à tua admiração por mim «sem limites», escuta, querias que esse tocante aditamento deixasse os meus olhos enxutos? Ninguém imaginará esta cena. Julgo que, igualmente, jamais duvidaste da minha admiração por ti, dobrando-a, redobrando-a. E perdurará.
Relembro uma outra dedicatória, a que te escrevi num dos meus livros. Rematava eu: da tua velha, Maria Augusta. Pegaste-me na mão, perguntaste velha, que velha?, vá, acrescenta: amiga, velha amiga. O significado era esse, acredita, mas tu não aceitavas que pudesse haver (mesmo numa singela dedicatória), um pormenor a desmoralizar o meu bilhete de identidade. Espantoso o vigor da tua exigência; inimitável a minúcia dos teus escrúpulos por tão poucas primaveras de diferença entre nós (primaveras, Manuela!).
Bem te conhecia (conhece), também, o nosso veterano Appio Sottomayor que, neste sítio de partilha, tão justamente te evoca. Bem te conheciam (conhecem) e retratam as nossas estimadas colegas Leonor Figueiredo, Céu Neves e Filomena Naves nos testemunhos recolhidos por Ana Bela Ferreira para o DN na hora da tua partida, com 76 anos, em véspera natalícia. (À Ana Bela agradeço a imensa sensibilidade com que me deu a dolorosa notícia e me escutou as lágrimas e as palavras).
Para ti, Manuela, hoje, dia dos teus anos, o meu abraço em forma de xaile azulado, como aquele outro, é bonito, vês, fica-te bem.

Maria Augusta Silva

TAMBÉM NESTE SÍTIO:
UMA EVOCAÇÃO POR APPIO SOTTOMAYOR





Irene Lisboa

Celebrar a vida e a obra num centenário


O tempo que sempre correu por um olhar tão distante e tão perto de tudo faz cumprir agora o centenário do seu nascimento: Irene Lisboa, a menina que teve por berço Arruda dos Vinhos, a 25 de Dezembro de 1892. A escritora e pedagoga. Uma vida, uma obra. Muitas obras. Por dentro delas a solidão de alguém que os amigos compreenderam e amaram. Fraternidade recíproca. E uma solidão que teve na autora de Outono Havias de Vir um sentido dinâmico, mesmo se o cansaço ameaçava. Irene morreu em Novembro 1958, à beira de completar 66 anos.
Inteligente, sensível, marcada por uma personalidade firme e discreta (como ressalta de toda a sua obra), Irene Lisboa questionou e deu palavras ao pensamento. Viajou pela memória e escreveu. Olhava em redor e sentia. Pressentia. Depois ousou. Contou-se. Interpelava-se. Com uma lucidez espantosa. Acutilante. Desassossegada. Por vezes amarga, inquieta. Mas sempre autêntica, seja a escrita na primeira ou na terceira pessoa. Expressiva e impressiva. Fiel a si mesma e a certeza de não ser falsa com ninguém.
Em meados dos anos 20 edita o primeiro título: 13 Contarelos, ilustrado pela sua amiga maior, Ilda Moreira, pedagoga igualmente prestigiada. Seguem-se mais duas dezenas de obras: poesia, novela, crónica, diários sem data. Narrativas do «eu», memorialistas umas, projetadas outras. Um estilo que desafiava, de algum jeito, o neorrealismo dos anos 40. Irene não ficcionava. Não pertencia a escolas literárias. Não queria romances. Escrevia o real ou os contornos desse realismo. Dava espaço à desordem interior das coisas.
Estranhamente, Irene Lisboa acabaria quase ignorada. Fala-se dela,  quando em quando, por haver quem nunca a esqueça, além de vultos das letras e do ensino a referenciarem como um dos maiores nomes da literatura portuguesa.
A catedrática Paula Morão, ao escolher a vida e a escrita de Irene Lisboa para a sua tese de doutoramento, há cinco anos, fez de algum modo «ressurgir» a escritora de Um Dia e Outro Dia, inteira na sua interior complexidade, e não mito, tamanho o universo de Irene na poesia como na prosa ou na prosa-poema. As obras da autora de Uma Mão Cheia de Nada, Outra de Coisa Nenhuma começaram, assim, a ser reeditadas pela Presença; publicado o primeiro volume de poesia, vai agora ser lançado Solidão, obra que Régio diz ser um «diário, e, certamente, um dos mais vivos, dos mais sinceros, dos mais tocantes, dos mais penetrantes, dos mais inteligentes documentos humanos que existem em língua portuguesa».
Paula Morão dá o seu apoio à exposição na Biblioteca Nacional, inscrita nas comemorações que assinalam o centenário da autora de Voltar Atrás para Quê?
O uso de pseudónimos por Irene Lisboa traduz, na opinião desta professora universitária e investigadora da obra da escritora, alguma arbitrariedade, «correspondendo, porventura, a uma experimentação de estilos».
Paula Morão discorda dos que julgam que os pseudónimos foram a maneira de Irene Lisboa se afirmar numa época-macho das nossas letras. «Não acredito nessa teoria porque, nos meios literários, todos sabiam quem era João Falco ou Maria Moira, por exemplo. A crítica mais esclarecida também sabia e muitas obras de Irene foram bem recebidas. A questão talvez pudesse colocar-se mais ao nível do leitor. O pseudónimo que, certamente, teve uma forte razão de ser foi o de Manuel Soares para as obras pedagógicas».
Esta interpretação de Paula Morão é pertinente, sabendo-se como eram, ao tempo, inovadoras e mexiam com o sistema as propostas de Irene para o ensino em Portugal.

Irene vista por Inês
Lembranças de Irene Lisboa são muitos a tê-las. Companheiros de todos os momentos. Mas se alguém a pode recordar em toda a sua dimensão, Inês Gouveia é uma dessas pessoas. Foram quase 30 anos a viver junto de Irene. «Uma amizade enraizada mais longe, que vinha já da minha avó e da minha mãe.» A mãe de Inês foi Ilda Moreira, colega de ensino de Irene. Conheceram-se quando Ilda contava 13 e Irene 15 anos. A família de Ilda passou a ser, também, a de Irene Lisboa, que tivera uma infância e adolescência com afetos, mas alguns desencontrados, outros ausentes. Irene, na sua obra de cariz autobiográfico, não deixa de falar do pai, da madrinha. E a mãe, os irmãos pertencem à sua escrita confessional. Uma escrita na qual as pessoas são identificadas (ou ocultadas) por uma letra maiúscula.
Na casa da Rua de São Bernardo, à Estrela — a última onde Irene Lisboa viveu —, Inês Gouveia, arquiteta, afilhada da escritora, fala-nos (DN, Novembro, 1992) de «uma amiga espantosa, dialogante, e que sabia ouvir os outros». Inês guarda a custo a emoção: «Não sei como é, tenho sentido tantas saudades de Irene, das suas palavras, do seu regaço.»
Quem era, afinal, aquela mulher de silhueta altiva, solitária?
«Levantava-se cedo, escrevia todas as manhãs umas quatro horas, na sua mesa estreita. Tinha uma força interior admirável e não se prendia a coisas supérfluas. Não era pessoa para colecionar isto ou aquilo. Era simples, mas tudo o que comprava tinha uma nota de bom gosto.» Inês chama-nos a atenção para o casario do Príncipe Real e do Bairro Alto, que Irene contemplava. «Gostava da cidade embora fosse muito campestre, muito serrana».

Ávida de aprender
Maria da Graça Amado da Cunha, outra grande amiga de Irene Lisboa, disse à nossa reportagem: «Para além de uma profunda amizade, tinha respeito e admiração por ela. Partilhei muitos dos sítios que Irene revisitava. Falávamos muito. Sendo alguém com uma escrita tão intimista, a curiosidade por tudo à sua volta era imensa, uma observadora das atmosferas da vida. Ávida de conhecer e ouvir, de aprender, tinha uma enorme capacidade de comunicação e uma fraternidade imbatível. Um calor humano que continuo a sentir nas saudades, nas recordações».

«Era grande, grande»
Também a escritora e pedagoga Matilde Rosa Araújo conviveu com Irene Lisboa e deu-nos então (1992) o seu testemunho: «Estou a vê-la. A doçura tímida dos seus gestos. Uma figura linda, despojada de riquezas. Era grande, grande. A solidão de Irene foi uma sede fraterna, água incontida contra tal secura. Sede a brilhar-lhe, palpitante, nos olhos percucientes, perguntando pelo mundo que ela tinha olhado na cidade, na serra, com paixão e lucidez».
Cem anos depois, Irene Lisboa renasce. Apaixonada do sensível e do fundamentado, como ela própria se definia. Desassossegada. Pássaro esquivo à procura do ninho no terreno do sonho.

Síntese das celebrações
Nota: na reportagem que realizámos para o Diário e Notícias (DN) por ocasião do centenário de nascimento de Irene Lisboa (21 de Novembro, 1992), e aqui registamos, constam, naturalmente, em pormenor, as diversas iniciativas celebrativas, os dias, horas, locais, nomes dos conferencistas e entidades organizadores. À distância do tempo, ao transpormos esse trabalho para o Casal das Letras, seria desajustado manter nesta peça jornalística a minúcia da informação temporal. Já os testemunhos então recolhidos sobre Irene Lisboa afiguram-se-nos intemporais, imperecíveis, e continuam a ajudar-nos a compreender melhor a obra  da escritora, da professora, da mulher. Fazemos, porém, uma síntese dos acontecimentos desse centenário: uma exposição sobre Irene Lisboa, no átrio principal da Biblioteca Nacional (ao Campo Grande), incluiu diversas fotografias da escritora, manuscritos, trabalhos inéditos e objetos pessoais que foram explicados ao DN por Manuela Rego, daquela entidade. O espólio incluía, nomeadamente, um inédito de poesia e o Livro da 2ª., com ilustrações de Ilda Moreira. Mais os óculos e a máquina de escrever da autora de Apontamentos e Solidão II. Destaque ainda para a Ordem da Liberdade com que o Presidente da República, Mário Soares, distinguiu, a título póstumo, Irene Lisboa, em 1989.
Decorreram igualmente relevantes colóquios e seminários tanto em Lisboa como em Arruda dos Vinhos (terra berço da escritora, tendo aqui sido inaugurado um parque com o nome de Irene Lisboa, o qual recebeu um busto da homenageada da autoria do escultor Armindo Ribeiro.
O então vereador da Cultura da Câmara Municipal de Arruda dos Vinhos, José Tiago, expressou um desejo ao DN: «Que estas comemorações sirvam para que a obra de Irene Lisboa seja mais divulgada, mais lida e estudada».
Entre outros eventos, a que se associou também o Sindicato de Professores da Grande Lisboa, do mesmo modo o Instituto Irene Lisboa (IIL), vocacionado para a formação de professores e investigação, dinamizou a efeméride. Graça Aníbal, àquela data (1992) membro da direção do IIL, adiantou à nossa reportagem que, num período de dois anos, tinham passado pelos três núcleos do instituto (Lisboa, Porto e Coimbra) 1500 professores-formandos.

separador

Entrevista póstuma a Irene Lisboa


A voz da Obra que fica é a voz perene dos que partem. A de Irene Lisboa é de tal forma que permite traçar o seu perfil naquilo a que, de jeito simbólico, nos permitimos chamar de entrevista póstuma (DN, 1992), realizada a partir do livro Solidão. A pergunta funda-se assim no pensamento expresso da escritora (como se a estivéssemos a ouvir).

A vida nem sempre terá sido fácil para Irene Lisboa. Tê-la-ia amado?

Amamo-la através de tudo e de todos. Amamo-la até quando a renegamos e dela desesperamos.

O ser humano, eterno mistério?

Cada ser que vive é um mistério! A sua rota é obscura e sinuosa, sempre complicada… Mas o mistério não está no ser, no ser estrutural, está antes na maleabilidade e na finura dos seus interesses, na divisão e na harmonia destes! Aí, aí é que ele está…

Alguma ambição, Irene?

Ambiciono a mais extraordinária arte, a de pôr a nu a desordem do espírito, a confusão, não a tranquilidade. Mas de a pôr a nu com as suas expressões e aparências próprias.

Solidão, uma aprendizagem?

Tenho cá a minha suspeita de que todas as elegantes considerações que se têm vulgarizado sobre a solidão partem muito mais dos precisados de solidão do que dos seus conhecedores. Nunca li uma verdadeira queixa contra a solidão… Para essa palavra tenho uma extraordinária variedade de sinónimos, ou por outra, de desdobramentos.

Que significa o trabalho para Irene Lisboa?

Trabalhar, é, por exemplo, mostrar que penso, que tenho opinião, que assento uma ideia. O trabalho obstinado do meu pensamento é o desarticular as causas do meu mal-estar, mas  é um trabalho importante, de pancadas cegas.

Sempre insatisfeita?
 
Sim, a insatisfação é em mim uma espécie de espinho permanente.

Alguma vez a escritora de Solidão foi tentada a dramatizar a vida?

Eu não dou ao drama todo o seu relevo porque, íntima e humanamente, me defendo dele. Não é só a compressão social que me oprime, sou eu mesma que me acobardo. E a minha atitude é tão espontânea, tão natural, que contrariá-la não podia produzir o tal efeito útil de revelação. Não sei se me engano, mas julgo que os dramas me não avigoram o espírito, pelo contrário, mo enfraquecem.

A infância é um tempo invencível?

Ponho-me às voltas com essa velha história da minha infância desconsolada, da minha adolescência vexada!, eu só gostava de poder tomar as atitudes de um campino no encalço do seu boi manhoso…

Por que fugiu sempre das luzes da ribalta?

Escrever assim como escrevo, sem qualquer ambição de notoriedade, parece-me extremamente útil. Mas não o sei pôr em linguagem clara.

Que razões para usar tantos pseudónimos?

Qualquer coisa mais grave e mais indeterminada me tem levado a adotar o anonimato, os pseudónimos. Talvez um subtil espírito utilitário de defesa. De inversão da arrogância, da combatividade também. De timidez ou de fuga à responsabilidade intelectual, ainda… Não posso precisar perfeitamente o que seja!

Como se sentia a pedagoga perante novas alunas?

Já pensei acerca das minhas jovens alunas o que todos os Sócrates, grandes e pequenos, hão de ter pensado dos seus discípulos: que é grato o convívio dos novos. Que é um convívio animador. A sua curiosidade anima-nos e é discreta.

Um escritor que mais tenha admirado?

… Ando a ler uma novela de T. Mann que me desarma e me enche de admiração.

E Eça?
A ironia de Eça é de combate, de oposição, e a de Mann é serena, de pura especulação.

Entre o mundo da intelectualidade e o dos afetos, qual escolhe?

Devo ser prudente. Com a minha gente é que me tenho sempre encontrado, dela é que eu sou um ruim e claudicante membro, mas, ainda assim, não desprezado. Esquecê-lo seria ingratidão.


MARIA AUGUSTA SILVA
DN, Novembro 1992






Armando Silva Carvalho

Singela homenagem


Deixou-nos distante de multidões vazias, amorfas. Armando Silva Carvalho demandava a «transparência dos rios» rumo à «síntese do nada», olhando o mar, os campos, sentido o cruel adeus do corpo sem nunca, porém, desistir da palavra sábia (por vezes ácida, irónica, contundente) e sempre depurada, bela, que fez a sua poesia e ficção afirmarem-se como uma referência incontestável no mundo contemporâneo da literatura portuguesa.
Devemos-lhe, neste sítio de encontro e de partilha, uma singela homenagem, lendo-o e relendo-o com eterna admiração. E assim recordamos do livro A Sombra do Mar opoema que a seguir transcrevemos:


MÚLTIPLAS MÃOS

As mãos amadurecem, sorvem todo o sol
a que cada corpo tem direito
apenas porque nasce.

Mas há mãos excessivas e maduras de sonhos,
conchas duma maré que erra nas dunas
e se arrasta entre as areias mortas
e as nuvens térreas, brônzeas,
não santificadas.

Eu vejo-me nas mãos dos outros animais,
castigam-me   pesadas
contra os umbrais da noite.
São as graças do chumbo, fotos negativas
da alegria do mundo,
recolhem todo o peso dos corpos
naufragados.

E são as mãos da alma, mãos recolhidas da vida,
tão belas e tão fúnebres,
que o fogo, o fogo apenas as acaricia
com a leve e muda labareda
de deus.
  

in A SOMBRA DO MAR
(Assírio & Alvim)



Armando Lacerda

Para um amigo lá longe


Recordo agora, dr. Armando Lacerda, a entrevista que lhe fiz há quase vinte anos, no Instituto Português de Oncologia (IPO), em Lisboa. Éramos ambos jovens sonhadores cinquentões. E dou por mim a falar com as memórias guardadas no meu coração: não, não pode ser verdade que nos tenha deixado.
Um “homem de esperança” — então me confessou sê-lo, alargando essa esperança a quantos trabalham no combate à doença, nomeadamente na luta contra o cancro —, um homem que respirava a vida amando vivê-la, não consentiria que um safado intruso o vencesse de forma tão inesperada e traiçoeira.
A Inês Rodrigues, com a sua habitual delicadeza, deu-me a penosa notícia naquele lugar da Avenida da Liberdade, onde, há tanto, tanto tempo, me acho (nos achamos, eu e o Pedro, todos por certo) entre amigos.
A dor da perda abateu-me. Dor logo amparada pelo terno abraço do dr. Tiago Saldanha: a sua dor é a dor que todos aqui estamos a sentir.
O Pedro terminara entretanto o seu exame auxiliar de diagnóstico. Ao sairmos daquela porta da Liberdade, apenas dissemos de mãos dadas: chove muito…
No dia seguinte, quando, ainda incrédula, telefonei ao dr. David Coutinho para lhe testemunhar o meu pesar, afetuosamente conforta-me: já está em paz.
Sim, paz, libertação de impiedoso sofrimento.
Falo de novo, Armando Lacerda, com as lembranças que de si tenho.
Lá longe, escute-me, querido amigo, meu doutor atento aos ecos de mim passados para as suas ecos iluminadas de sabedoria, profissionalismo e sensibilidade: num destes dias iremos arranjar meia dúzia de minutos para, mais uma vez, deliciados, filosofarmos sobre coisas da cultura, de todas as artes, também de medicina.
Vejo-lhe, Armando Lacerda, os olhos distraídos de si, cuidando apaixonadamente dos outros, os seus olhos de esperança, de incansável esperança. E repito às memórias guardadas no meu coração: os homens de esperança não morrem. De um ou de outro modo, continuarão a ser futuro.
O meu bem haja (unido ao do Pedro Foyos), a nossa homenagem neste espaço de partilha, a nossa gratidão por haver sempre escolhido a esperança para bússola do seu caminho, dos nossos caminhos, mesmo sabendo-nos à morte destinados.


MARIA AUGUSTA SILVA
Fevereiro 2017


TAMBÉM NESTE SÍTIO:
ENTREVISTA A ARMANDO LACERDA





Fernando Assis Pacheco

Saudades nossas


Um ser imenso no modo como se entregou ao jornalismo, à poesia, ficção, crónica, crítica literária e tradução de autores consagrados.
Nascido em Coimbra, completaria oitenta anos neste 1 de fevereiro de 2017. Deixou-nos em novembro de 1995, quando o coração lhe tolheu o caminhar à saída de uma livraria em Lisboa.
Nas bancas está agora o volume “tenho cinco minutos para contar uma história” (editado pela Tinta da China), com prefácio de João Pacheco.
São 41 crónicas radiofónicas emitidas pela RDP entre 1977 e 1978, aos domingos de manhã. Crónicas que nos transmitem o talento de um excelente contador de histórias, aquele que, na perfeição, conciliava o quotidiano, a cultura, a arte literária. Desta obra e da crónica “Essa Aldeia Solar que me Bate nas Têmporas” registamos o trecho que a finaliza: 

Amigos meus que me aturais, para quem já não tenho muitos segredos, nem sequer os do miocárdio, desculpai-me esta divagação no terceiro quartel do século XX, a 22 anos e meio do ano 2000, que trará o fim do mundo, garantem as novas pitonisas, agarrado à cauda de um queimante cometa. Eu levar-vos-ia a todos para Utopos, essa aldeia solar que me bate nas têmporas. «De automóvel…» — sussurra-me aqui ao lado uma voz escarninha.
Se quiserdes escrever, dizei-me depressa «onde está a felicidade». Um homem de 40 anos, baralhado até mais não, espera ansioso qualquer indicação útil.

Para Fernando Assis Pacheco vão saudades nossas, recordando, também, a sua poesia.


RESPIRAÇÃO ASSISTIDA

Eu vi a morte
de noite — névoa branca —
entre os frascos do soro
rondar a minha cama

era um trasgo
e como tal metera-se
pelas frinchas; noutra versão
coando-se através
dos nós da madeira
ou noutra ainda
imitando à perfeição
o gorgolejar da água
nos ralos: eu tremia
covardemente enquanto
ela raspava a parede
com unhas muito lentas

eu vi? ouvi a morte?
com toda a probabilidade
e por instantes
era ela — luz negra —
tentando cegar-me


in RESPIRAÇÃO ASSISTIDA


PESO DE OUTONO

Eu vi o Outono desprender suas folhas,
cair no regaço de mulheres muito loucas.
Cem duzentas pessoas num café cheio de fumo
na cidade de Heidelberg pronta para a neve
saboreavam tepidamente a sua ignorância.

Eu vi as amantes ensandecerem
com esse peso de Outono. Perderem as forças
com o Outono masculino e sangrento.
Os gritos a meio da noite
das amantes a meio da loucura voavam
como facas para o meu peito.

Alguns poetas li-os melhor no Outono,
certos amores só poderia tê-los,
como tive, nos dias doces da vindima.


in A MUSA IRREGULAR



Corino Andrade

A ciência de uma vida



Em junho de 2002, o Prof. Daniel Serrão apresentou no Porto a obra «Corino Andrade –
Excelência de uma Vida e Obra», de Maria Augusta Silva


Cientista. Mário Corino da Costa Andrade, 87 anos. Casado duas vezes. Viúvo duas vezes. Três filhos. Quatro netos. O pulso começou a ficar fraco. «Os senhores doutores puseram-me um pace-maker e cá estou.» Uma vida dada à investigação. Figura marcante das neurociências em Portugal. Vulto de uma geração inesquecível de pioneiros e mestres: Almeida Lima, Egas Moniz, António Flores, Lobo Antunes (pai). E recorde-se, também aqui, nesta Década do Cérebro, o professor Nunes Vicente.
Corino Andrade recebe-nos na sala larga e soalheira da sua vivenda de muros altos, no Porto. Um triciclo à entrada, do neto mais novo. Rodeia-se de livros. Horas de leitura, que uma diplopia não consegue desmotivar. Espera-se dele sempre uma opinião ponderada.
De memória prodigiosa, enlaça as palavras e desata as ideias. Responde e interroga. Perspicaz, ao mesmo passo sereno e inquieto. Sereno, porque defensor inabalável da integridade do indivíduo; inquieto, por não saber até onde nos levará a eterna contradição do homem.
Alentejano (de Moura) concluiu a licenciatura em 1929 na Faculdade de Medicina de Lisboa. Seguiu para Estrasburgo, onde se empenhou na investigação, sobretudo das meninges, apoiado pelo professor Barré. Relacionou-se, ao tempo, com os maiores nomes da neurologia europeia. O desejo de contactar com outras escolas levam-no a dividir-se entre Estrasburgo e a Alemanha para trabalhar com Oskar Vogt. Um problema de saúde do pai fá-lo regressar a Portugal. Sedimenta uma grande amizade com Abel Salazar.
Corino Andrade fixou residência no Porto. Entra para o Hospital de Santo António e impulsionou serviços no âmbito da neurologia. O estudo das meninges requeria laboratórios dispendiosos e ei-lo em neurocirurgia, mas atuante na investigação. Deve-se-lhe a descoberta da «doença dos pezinhos» (paramiloidose), até então tida como «lepra nervosa» e internacionalmente batizada de «doença de Andrade».
O dinamismo de Corino Andrade ficou igualmente ligado ao Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar e à criação do Centro de Estudo da Paramiloidose. Em 1979, Ramalho Eanes distinguiu-o com o grau de oficial da Ordem de Santiago e Espada; em 1990, Mário Soares conferiu-lhe a grã-cruz da Ordem de Mérito e entregou-lhe o primeiro Grande Prémio de Ciência da Fundação Oriente. Vicissitudes? Muitas. Combativo? Sempre, ao lado de investigadores prestigiados. Fala do contributo da neurologia portuguesa para maior compreensão do comportamento do cérebro.
Tudo valeu a pena?
«Não me queixo. Peguei em alguns problemas e ajudei outras pessoas que tive o gosto de ver chegar mais longe do que eu próprio.»
Corino Andrade aprendeu a ler na guerra de 1914. Estava na Alemanha quando eclodiu a Segunda Guerra Mundial. Escapou ao nazismo, mas não à PIDE. Apoiou a candidatura de Norton de Matos à Presidência da República. Investigou centenas de cérebros. Conheceu muita gente. Lidou com diversas situações. Com a mesma argúcia e lucidez continua a aprofundar o conhecimento. «Nunca deixarei de estudar.»

MARIA AUGUSTA SILVA


TAMBÉM NESTE SÍTIO:
ENTREVISTA A CORINO ANDRADE





Manuela de Azevedo

Carta à jornalista que lança novo livro aos 104 anos

FOTO RECENTE DE GONÇALO ROSA DA SILVA
POR ESPECIAL CORTESIA DO AUTOR


Querida Manuela, Excelentíssima:
Se alguém merece ser tratado por excelência / excelentíssima, a Manuela cabe na primeira linha. Não apenas por completar 104 admiráveis primaveras (embora, convenhamos, seja vida, caramba!), mas porque o seu exemplo de cidadã, de mulher do jornalismo, da arte literária, do ensino, da cultura, se definiu assim: obra de excelência, uma dedicação insuperável.
Guardo da Manuela gostosos diálogos e inofensivas tagarelices na redação do Diário de Notícias. Momentos únicos. Um deles marcante — quando ali ficámos a saber um pouco mais sobre ambas, pois até então só nos conhecíamos por nos lermos nas colunas dos diferentes jornais das andanças jornalísticas. Foi um dia em que nos cruzámos no corredor que ligava as salas do DN nas quais funcionavam as diversas secções (o open space chegaria mais tarde), cumprimentámo-nos, sorriso franco, a Manuela conteve por instantes o andar veloz em passo miúdo, deu-me um abraço e disse-me com uma voz entre o professoral e o ternurento: «Defenda sempre a liberdade». Recordo o meu quase tímido: Obrigada, Manuela.
Repito hoje — obrigada, Manuela — Excelentíssima, acrescento.
E redobro o abraço de camaradagem e estima, significando-lhe uma vez mais, amizade e gratidão.
Saberão as novas gerações do jornalismo, os governantes de agora, o que a Manuela de Azevedo fez pela Cultura do nosso país, do nosso povo? O quanto lhe custou (quanto penou) para dar corpo e alma nomeadamente à Casa-Memória de Camões, em Constância?
Acho que só Camões, lá no seu «assento etéreo» reconhecerá a «fortuna» de existir neste confuso mundo uma criatura maior com a capacidade de paixão, de iniciativa e trabalho, de resistência e engenho como a Manuela; predicados que tão cedo cultivou logo na sua adolescência vivida em Mangualde (terra do meu nascimento e infância que puxávamos para as nossas recordações, não obstante situadas em idades desiguais).
Afinal, o que é a idade? A Manuela não poderia dar às margens dos meus setenta um pouco da energia do grande rio dos seus 104? Que alegria imensa vê-la atuante, decidida.
Ao lançar em plena juventude centenária mais um livro — O Pão que o Diabo Amassou —a Manuela volta a testemunhar a sua garra (o nosso Camões está igualmente orgulhoso de si). O seu talento renova-se na poesia, na ficção, no ensaio, na dramaturgia, em resumo: nas letras contemporâneas. Quando publica o próximo?
Obrigada, querida Manuela. Ainda obrigada pelos valores que têm norteado o seu caminho: contra todas as opressões, a defesa da democracia, o sentido da dignidade do Ser, o desejo de justiça, o sonho como alimento imprescindível ao pensamento e ao coração, a vontade de contribuir — social e culturalmente — para o desenvolvimento saudável da humanidade.
Quem de modo honesto quiser falar da história portuguesa do jornalismo — da reportagem à crónica, da entrevista à crítica literária ou das artes plásticas, do teatro à dança, deverá honrar a memória e celebrar o nome de Manuela de Azevedo.
Obrigada, Manuela, Excelentíssima.



© MARIA AUGUSTA SILVA



Rui Camacho

Última grande reportagem com o mesmo brio e serenidade




Rui

Temos dias em que não sabemos se as lágrimas são ainda capazes de nos chegar aos olhos ou se invadem de tal forma a alma que todo o corpo se queda numa dor sem palavras. Hoje, eu e o Pedro, saídos de uma longa consulta médica, dissemos: Vamos procurar ir visitar o Rui e a Lena esta semana, o tempo passa, o tempo passa.
Chegados a casa, ao fim da tarde, tarde era já para te dizermos olá Rui. Eu diria Ru…í, eu digo Ru…í como na beleza da nossa camaradagem gostava de chamar-te. E aqui me tens somando mais uma perda, sentindo os pratos da balança em penosa instabilidade.
Vejo-te de mão terna dada à tua amada Lena, um brilho de menino a olhar teus filhos, netos, amigos. Recordo-te na chefia de Redação do jornal A Luta para o qual entrei no verão tumultuoso de 1975, vinda de Luanda. Do teu percurso no jornalismo, do teu ser jornalista, por certo muitos lembrar-se-ão, exímio e acutilante na crónica, rápido e brilhante no difícil exercício de titular uma notícia ou realizar uma manchete; ponderado na tão complexa gestão de equipas redatoriais, tão grande a vontade de fazermos melhor, sempre melhor e tamanhas as vicissitudes e a própria condição humana a virarem-nos do avesso o trabalho, os alentos, os sonhos, a teimosia. Não me esqueço de tudo isso. Mas o coração memoriza igualmente outras vivências.
Vejo-te, Rui, a ti e à Lena, num fevereiro morno, a apadrinharem o meu casamento com o Pedro. Grande cerimónia! Noivos e padrinhos, quatro criaturas felizes, a responsável pelo Registo Civil a rir-se connosco: Desejam trocar alianças? Nós riamos, riamos de amor, riamos com a simplicidade do nosso amor: Só temos uma aliança, não houve dinheiro pra mais. Tu, Rui, com a tua peculiar boa disposição: Os padrinhos ofereceram-lhes meia dúzia de copos para água, vamos estreá-los daqui a pouco no banquete…
E a celebrante, sorrindo: a água faz bem. E a aliança… quem vai usá-la? E tu, Rui, padrinho atinado: a Maria, não é Pedro?! E cá anda no meu anelar. Única há perto de quarenta anos.
Depois, o dito banquete. Três bancos de apoio aos comes e bebes no quarto de núpcias em nossa casa, numa pacata Loures, um pão-de-ló, um pedaço de queijo, os ditos copos para água, umas chávenas destinadas a chá, quatro singelas cadeiras para os noivos e convidados, ou seja, os padrinhos; uma alegria tão natural quanto verdadeira. De repente, o Pedro a encher-se de febre por causa do dente que tinha ido arrancar umas horas antes do casório, e tu, Rui, a correres para uma farmácia a fim de nos deixares habilitados com remédios que acudissem ao noivo.
Rui, as circunstâncias de cada um de nós podem muitas vezes levar-nos a não estar tão fisicamente presentes como gostaríamos, no entanto, a amizade perdura. A memória ampara-nos. Talvez, quem sabe?, um dia possamos voltar a lembrar a feijoada vegetariana e o caril de cogumelos que eu preparava no dia da folga possível para os desejados convívios, família e amigos, afetos acima de tudo aqui neste nosso Casal das Rosas, à sombra da velha figueira (que o tempo nos levou do mesmo modo). Como se tornava deliciosamente contagiante o teu humor, enquanto cofiavas a barba, arredondado mais o rosto: Maria, tens aí um bifinho para o estômago se calar? Mas tu gostavas das loucuras vegetarianas cá de casa, não gostavas Rui? E a minha mãe sempre observadora e precavida: Faz comida que chegue e sobre, essas manias do vegetarianismo do Pedro não enchem barriga a ninguém. Olha, Rui, se a encontrares por esses caminhos de luz que são agora também os teus, dá-lhe um beijo nosso, ela faz anos dia 8, sei que não vais esquecer-te de abraçá-la.
Ru..í, querido Rui, queremos em breve passar uns momentos com a Lena, dizer-lhe que os seus leitores aguardam novo romance da sua escrita intensa, cuidada, enriquecedora. As nossas letras, a nossa cultura precisam de nomes como os de Helena Marques, a tua Lena de uma vida inteira. O vosso amor há de continuar maior do que o mundo, nunca morrerá e ajudá-la-á a enfrentar esta viagem mais longa, esta última grande reportagem para que partiste e que irás desempenhar, tenho a certeza, com o mesmo brio, serenidade e espírito de missão.
Ficamos contigo no nosso pensamento e saudades.



MARIA AUGUSTA
  6 AGOSTO 2014





João Alfredo Lobo Antunes

Carta de Lembranças




Estimado Professor Lobo Antunes,

Em jeito de carta aqui estou. Presumo que sentirá a verdade do meu coração nas lembranças que de si guardo. Encontrámo-nos poucas vezes. O que é pouco? O que será muito? Sei que haverá vivos que em nós estão mortos mesmo que andem anos sem conta nos nossos caminhos e há mortos que para sempre em nós viverão ainda que breves tenham sido os momentos de partilha. Assim acontece.
Recordo-o, encontro marcante, na casa de Benfica falando-me de Corino Andrade, somando eu dados para uma biografia que estava a realizar sobre aquele neurocientista. E as palavras, as histórias a propósito de um tempo ímpar uniram-nos simpaticamente. Quanto aprendi, quanto, quanto! Cativava-me a distinta vivacidade com que me referia uma geração de ouro, vultos das neurociências (primeira metade do século XX) que haveriam de ajudar a formar e a fortalecer discípulos, colegas, outros nomes da arte médica que nas suas diferentes vertentes foram de igual modo sedimentando a entrega, o estudo insaciável, o sentido (e o sentimento) da investigação, a descoberta, o entusiasmo, a vontade rumo a um melhor aprofundamento e conhecimento, levando a medicina a progredir na sua missão. O seu contar transbordava. Fascinante. Interligava ciências médicas com literatura, música, pintura, a cultura em geral, berço e amparo do ser humano. Pelo meio, um humor esmerado. Lembra-se de me desfiar os almoços de sábado, em Lisboa, a que não faltavam Corino Andrade e o Professor em casa de Miller Guerra? Discutia-se tudo, disse-me. Até religião. Miller Guerra, católico, Corino, agnóstico. O Professor divertido com a cena. Tudo o que corria mal na vida, no mundo, pronto, Corino Andrade rematava: «a culpa é do Vaticano».
Eu a saborear-lhe o saber, Professor. Margarida, sua amada, apareceu na sala iluminando-a com seu olhar de claridade total. Ofereceu-me um chá. Retirou-se, inexcedível elegância. Deixou-nos entregues à conversa que ia correndo sem pressa. Lembrei-lhe o Prémio Pfizer que ganhou (1960) com mais dois colaboradores, Manuel Ribeiro Rosário e Fernando Barros, assinando o trabalho Contribuição para o Estudo Clínico e Laboratorial da Paramiloidose de Corino Andrade. O Professor comentou apenas: sim, é verdade. Recordei-lhe o que de fundamental, estruturante, dera à investigação dos tumores intracranianos, neuropatologista infatigável na pesquisa, microscópio colado à sua pele, esmiuçando, correlacionando, caracterizando, descobrindo. Atrevi-me a falar-lhe do meu tumor na base do crânio, cujo diagnóstico andou emperrado, trocado, errado, e o bicho crescendo, nem TAC em Portugal havia; eu então a insistir, a insistir, explicando estranhos sintomas sem me resignar mesmo ao dar-me conta de que as minhas queixas eram entendidas como uma dose de fantasia pois o exame clínico segundo as sacramentais regras neurológicas parecia normal. Um dia, porém, numa urgência hospitalar, alguém me ouviu momentos após uma vertigem me atirar contra um elétrico. Aprendi a serenidade e a coragem das circunstâncias mas nunca consegui reabilitar-me do pudor que ganhei de queixar-me.
O Professor escutava-me, sério, atento, escutava-me. Eu, envergonhada de estar a cansá-lo com um pormenor de mim: desculpe-me o desabafo. Já passou…Coisas no antigamente, na vida, como diria Luandino Vieira. O Professor em silêncio, alongando a mão ao meu braço, a mão falando-me sem palavras. Quantas palavras estariam nesse gesto fraterno? Não sei, Professor; sei, isso sei, que tais palavras sem palavras ficaram a viver comigo. Caladas, a viver comigo.
Chegou a hora de descermos a escada que dava para o portão. E o Professor: não caia, os miúdos fartavam-se aqui de rolar… Seis filhos, os miúdos. Vejo-o, magro, aprimorado, olhando a escada, o quintal, porventura viajando por ecos íntimos. Olhos discretos aguentando memórias (fiquei na dúvida se estariam enxutos), sorriso amável: conversámos muito, até outro dia.
Hoje, com a velhice a magoar-me o andar, todavia segura de quanto o presente e o futuro devem aos maiores do passado, envio-lhe lembranças gratas. A sua mão no meu braço, despedida afectuosa. Obrigada, Professor.

MARIA AUGUSTA SILVA


TAMBÉM NESTE SÍTIO:
FILHOS EVOCAM JOÃO ALFREDO LOBO ANTUNES
NOS DEZ ANOS DA SUA MORTE







José Blanc de Portugal

Um homem rodeado de cultura por todos os lados




Sabem como vivia este homem rodeado de livros e música por todos os lados? Vivia com um invejável sentido de humor, inteligentemente gerido por uma cultura superior. José Blanc de Portugal. Poeta. Crítico de música («jornalista musical», como preferia nomear-se).Tradutor. Meteorologista. Geólogo. Homem das artes e das ciências. Especial pendor para a filosofia e para o esoterismo. Religioso. Monárquico-anarquista avesso às querelas políticas. Nasceu em 1914 na Travessa das Almas, em Lisboa. Colaborador de longa data do Diário de Notícias, o autor d'O Espaço Prometido recordou-me um dia o seu primeiro vencimento, quando estudante, a dar explicações: doze escudos e cinquenta centavos. «Investi-o, certamente, numa edição de Dom Quixote de La Mancha, comprada em fascículos».
Memória desperta, vêm à conversa as brincadeiras de criança pelas ruas de Benfica, a chutar na bola. E o hóquei. A convivência com o professor João Alfredo Lobo Antunes (pai). «Mora aqui pertinho. Um homem de grande craveira.» Não se lembrava já dos primeiros versos que fez. Admitia, porém, ter sofrido a crise do amor adolescente. «Mas todo o poema é de amor, seja social ou metafísico. Na Divina Comédia, diz-se que é o amor a mover o mundo, o cosmos.» José Blanc de Portugal acreditava noutros mundos: «Seja onde for».
Confidenciou-me ter queimado poemas e uns exercícios musicais de sua autoria. «Nunca fui compositor, atenção! Estava a mexer numas gavetas e decidi reduzir muitas coisas a cinzas.» Mas nem tudo ardeu, felizmente. A grande obra poética de José Blanc de Portugal encontra-se traduzida para diversas línguas. Em 1960 venceu o Prémio Fernando Pessoa, com Parva Naturalia; em 1965, o Prémio Casa da Imprensa distinguiu-lhe Odes Pedestres. Entre os seus principais títulos contam-se Enéades, 9 Novenas (Prémio Pen Club) e Descompasso. Fundou os Cadernos de Poesia, com Tomás Kim e Ruy Cinatti. A dança foi outro dos encantamentos deste homem de rosto afável. Mas houve mais. Desconcertante: a arte de fotografar de José Blanc de Portugal. Pegou numa máquina vermelha, pequenina, e zás!, apanhou-me. «Olhe, ali!». Centenas de imagens captadas por este grande senhor. «É um hobby, apenas».
Vivia assim um homem rodeado de livros e música. Quatro filhos. À medida que os filhos foram saindo, os livros ocuparam os seus quartos. «Um dia, eles que escolham. Se quiserem vender alguns em leilão, não me importo. Leilão é negócio, mas sempre há-de aparecer alguém que compre um livro por gosto».

© MARIA AUGUSTA SILVA

TAMBÉM NESTE SÍTIO:
GRANDE ENTREVISTA A JOSÉ BLANC DE PORTUGAL
REALIZADA EM MARÇO DE 1994








Luiza Neto Jorge

Uma voz singular da arte poética

                                                         Imagem por especial cortesia da RTP

Luiza Neto Jorge nasceu em Lisboa, a 10 de Maio de 1939. Escolheu o curso de Filologia Germânica. Pertenceu ao grupo Poesia 61, de que se destacaram, nomeadamente, Fiama Hasse de Pais Brandão, Gastão Cruz, Casimiro de Brito e Maria Teresa Horta. Marcou um período criador, que teve nomes como o de Ruy Belo.
Viveu com um desafio: «Façamos greve de tempo.» A sua obra poética é concebida, em parte, na capital francesa. Paris foi um dos seus lugares, entre 1962 e 1970. Depois, o regresso a Lisboa, antes do 25 de Abril. Uma passagem, também, por Silves. O talento e sensibilidade da autora de Dezanove Recantos estiveram igualmente associados à escrita teatral (O Fatalista de Diderot, a partir de folhetins de Denis Diderot, com encenação de Osório Mateus). Em cinema, destaca-se o seu trabalho nos diálogos de A Ilha dos Amores, de Paulo Rocha.
Fez um longo interregno até aos anos oitenta, prosseguindo, no entanto, com a sua enxada quotidiana: a tradução, em que foi exímia numa diversidade de estilos narrativos, que vão de Genet a Marguerite Yourcenar; de Boris Vian a Céline; de Ionesco a Sade; de Breton a Artaud; de Apollinaire a Novalis. Uma das suas últimas traduções, Morte a Crédito, de Céline, ganhou o Prémio do Pen Club Português em 1987.
A doença que a fazia depender de uma botija de oxigénio e de prolongados internamentos hospitalares vencê-la-ia a 23 de Fevereiro de 1989. Casada com o escritor Manuel João Gomes, surge, em edição póstuma, A Lume, reafirmando a grandeza poética de quem nos legara títulos como Noite Vertebrada e Os Sítios Sitiados (volume que integra Terra Imóvel, O Seu a Seu Tempo e Dezanove Recantos). Em 1973 foi editado O Ciclópico Acto, de colaboração com o pintor Jorge Martins.
A poesia de Luiza Neto Jorge está reunida no volume organizado por Fernando Cabral Martins (Assírio & Alvim). Nas palavras do prefácio, Cabral Martins percorre a poesia da autora de A Porta Aporta «(...) O seu modo de existência é dos mais elementares. Para a ler não é necessária nenhuma tecnologia especial. Em vez de se arrombar a porta do sentido, basta empurrá-la devagar: ela está aberta».
Uma poesia para sempre. E Manuel João Gomes adiantou que todo o espólio poético de Luiza ficou, assim impresso, respeitando-se a publicação apenas do que a escritora preparou nesse sentido.
Luiza Neto Jorge, representada em todas as antologias sobre poesia portuguesa contemporânea, foi evocada em Bruxelas, iniciativa dinamizada por Luís Miguel Nava, que decorreu num círculo de amigos, admiradores e estudiosos de quem se interrogava: Conheço talvez toda a espécie de gente / mas como encontrar o que se conhece / tão amiúde / como não deflagrar aos pés de todos / por amor à tragédia por amor / por amar esta substância serena / jacente geral?

Mantivemos com Luiza um convívio assíduo em Lisboa, quando, após a morte do pai, vivia com a mãe e o irmão Vítor (seis anos mais novo) na Rua da Misericórdia nº 17 – 4º esq., a poucos metros da Praça Luís de Camões. À Luiza e ao Vítor juntavam-se, nos anos sessenta, dois amigos de visitação diária: Pedro Foyos e Filipe Leandro Martins, ambos nos alvores de carreiras jornalísticas e literárias.

© MARIA AUGUSTA SILVA







Mário Dionísio

A respiração essencial da humanidade




Querer tudo, numa ambição sem valores essenciais, é, talvez, o caminho mais certo para não ter nada. Mário Dionísio foi — sê-lo-á para sempre — alguém que buscou o sentido do equilíbrio, como artista, pedagogo e homem de liberdade e fraternidade. A vã glória não era a água para a sua sede; a vaidade não era o pão para a sua fome. «Oh doida sofreguidão / de outra coisa / (...)», verso do poeta d' O Silêncio Voluntário. Sofreguidão de um humanismo maior, universal, porventura a grande escola em que se fundavam a sua doutrina de cidadão atuante e a sua força criadora, quando o neorrealismo, rodeado de equívocos e, até, por alguns desbaratado, pertencia, social, política e culturalmente, a um tempo histórico, o dos anos quarenta do século XX. Tempo que também era um tempo primeiro do autor de Poemas, inserido no Novo Cancioneiro.
Mário Dionísio, à semelhança de outros seus contemporâneos em países preponderantes e, apesar de tudo, em Portugal, não ficou, todavia, prisioneiro de redutoras ortodoxias estéticas e filosóficas. Por isso mesmo, polemista, como o atestam conferências diversas, colaborações em revistas e jornais e as inesquecíveis «Fichas», na Seara Nova. Por isso mesmo, atento e aberto à modernidade.
As grandes perdas (órfão de pai e mãe na adolescência) bem cedo deram a Mário Dionísio os espinhos das rosas. Depois, uma tuberculose, que superou com a partilha de sonhos e lutas, o estímulo e o amor de uma companheira de todos os momentos, sua mulher, Letícia. E o seu espírito de superior e invulgar sensibilidade determinou-o para o que mais desejava: escrever, ensinar, pintar. Discreto, sem pressas. A sua primeira exposição individual de pintura realizou-se ao fim de mais de quatro décadas a comunicar com as tintas e as telas no silêncio da sua interioridade. Respeitava-se a si mesmo, forma suprema de respeitar os outros. Assim esteve na vida. Assim ficou no testemunho da sua arte e saber. Incómodo, certamente, pela vivência exemplar, por uma consciência ética que não se deixava cegar por oportunismos ou conjunturas. Perfeccionista, enquanto homem de rigor. Consciente, porém, de que tudo fica incompleto, porque refletia e se interrogava; porque ensinava e, ao ensinar, estava sobretudo a aprender; porque o olhar voltava-se-lhe para fora de si e a si regressava com a lucidez de quem era sabedor de que (...) a poesia está na vida,/ nas artérias imensas cheias de gente em todos os sentidos (...). E a vida é um constante recomeço que não pode negar nem dispensar a utopia.
Desde muito jovem empenhado, cívica e ideologicamente interventor, fiel a princípios libertadores e dialogantes, não baralhava as fronteiras e demarcava o terreno dos verdadeiros inimigos, inclusive ao assumir discordâncias e ruturas. A poesia e a pintura terão sido, no figurativo como no traço abstracionista, uma voz própria, a de um Mário Dionísio que ganhou unidade nas esperanças e nos desencantos, expandindo-se numa linguagem subtil, contida. Linguagem de buscas permanentes, a do autor de poemas como Lamento na Hora Incerta ou do romance Não Há Morte Nem Princípio, ou de contos como A Morte É para os Outros; linguagem de reflexão como a do notável ensaio A Paleta e o Mundo; linguagem de intensa comunicabilidade, a do pintor de Abrigo Nocturno, Trilhos de Resistência ou Manhã Tranquila. Alguém de incontornável seriedade, que perguntava: Que será preciso?/ Só sei que preciso/ respirar.

© MARIA AUGUSTA SILVA







António Ramos Rosa

«O meu canto eleva-se / entre as mandíbulas da morte»




António Ramos Rosa, hoje, ao despedir-se da «luz diurna», não irão faltar vozes a enaltecer-lhe a obra, os prémios, as pulsações da sua poesia. Todos dirão dos caminhos que fundou com as palavras trabalhadas como se cada uma fosse um «grito claro» ocupando o espaço de uma busca incessante de identidade. Ou como se fossem uma sede ao meio dia celebrando a terra, o corpo, a mulher, o amor, a sensualidade, a vida, o mistério. Ou como se fossem um «círculo aberto» ou uma «unidade íntima» desafiando «O Deus (Nu)lo que, porventura, já terá descoberto a sua linguagem de poeta, a «linguagem branca», a «íntima aliança que é o mistério mesmo da linguagem».
Como também «não posso adiar o coração», então estou aqui a recordar momentos únicos de quando o entrevistei: o António a falar-me da poesia como anti-sistema, do sol do poema, desse «sol para lá do sol», e, de repente, a pedir-me para continuarmos a entrevista noutro dia porque queria desenhar, e desenhava, poeticamente desenhava com os marcadores que Agripina, a sua companheira de uma vida (igualmente poeta) lhe dava para num traço firme, espontâneo, estilizar rostos quase sempre por si criados com um olho só. E porquê? «Porque estas figuras veem mais com um olho só».  
E eu, cautelosa, a tentar prosseguir a entrevista, o António a desenhar, cantarolando, amarrotando desenhos, atirando-os para o cesto dos papéis como se nada valessem. Logo outro, mais outro, dois que me dedicou, mas adiantar a entrevista, isso ficaria para outra vez. Eu perguntava-lhe: É difícil o poeta suportar-se a si próprio? Resposta pronta: «Acontece com toda a gente. Somos um peso difícil».
O.K., continuaremos a nossa conversa amanhã, aconteceu em três amanhãs, sem me cansar de lhe respeitar a vontade, a gestão dos seus tempos. Não havia em si uma atitude insolente ou de prepotência, apenas necessidade de repouso ou de em solidão escrever a impaciência ou a urgência, talvez a de se entregar «ao vago e indefinível vagar». Entretanto, eu enriquecia a minha humildade com o «aprendiz secreto» que dos silêncios fazia nascer a «dinâmica subtil» das «figuras solares» ou «Navegava no navio da matéria».
Neste abraço que lhe dou, uma coisa sei, António Ramos Rosa, está na sua poesia: «(…) O meu canto eleva-se / entre as mandíbulas da morte». A sua obra é esse canto imorredouro.

Maria Augusta Silva
em 23 de Setembro de 2013





POEMA INÉDITO

PARA A OBRA "POETAS VISITADOS"
DE MARIA AUGUSTA SILVA

Como Se…

Como se pudesse dizer alguma coisa
como se houvesse alguma coisa para dizer
um astro branco um astro negro
um astro de sangue
um cavalo atrás de uma árvore
tudo isto são palavras
Tudo
para dizer a mesma sede
insaciável
para enganar o silêncio
para fugir num navio branco
Como poderemos ser dignos de existir
sem o segredo que viaja nas nuvens
sem as pedras que respiram os montes
sem as nascentes que ascendem das portas proibidas?

António Ramos Rosa







Urbano Tavares Rodrigues

Obrigada pela lição de vida




Urbano, querido Urbano, iniciaste hoje aquela viagem de que um dia me falaste, uma espécie de fuga, e tu «nadando tão longe quanto se pode ir no oceano». De ti fica a grande obra literária, diversa, imensa na quantidade e qualidade, premiada, respeitada. A obra de um homem sobretudo preocupado com «uma procura mais intensa da vida interior», ou seja, com os valores do humano, do Ser, da liberdade, da honradez, da dignidade.
Não gostavas da arrogância do poder, «gosto de a combater», disseste-me uma vez em entrevista para o Diário de Notícias, por isso, «… Sendo comunista, não deixo de ter um fundo de anarca.» Por isso, Urbano, meu eterno insubmisso — «Os Insubmissos» é um romance marcante da tua obra e da literatura portuguesa contemporânea —, foste nobre no modo como te deste aos outros, sem nunca te sentires superior, mas sim de igual para igual, cultor do pensamento, dos afetos, oferecendo a solidariedade do teu sorriso. Foste sempre tu, determinado e sereno em tantas, tantas lutas, nomeadamente contra a tuberculose que chegou a ameaçar a força e a ânsia do teu respirar. Contaste-me: «Não a tomava muito a sério. Fazia o que o médico indicava, mas, às escondidas, ia montar a cavalo (…)».
De ti, Urbano, a quem o berço alentejano despertou para «o sentido de justiça», fica o exemplo do cidadão, escritor, jornalista, professor. Inteligente, sensível, sabendo escutar, dialogar, ensinando num desejo de mútua descoberta das coisas, usavas as palavras para defenderes ideais. Sabias com elas, as palavras, dar uma «Pedrada no Charco», sonhando um mundo socialmente justo, culturalmente enriquecido. Sabias que «o homem não pode viver sem utopias. Há de criá-las sempre. As utopias só se esgotam quando os homens se deixam corromper pelo poder».
Há poucos dias, Urbano, perdi a minha tão amada mãe. Hoje, ao luto profundo e à dor sem remédio desta perda, junto uma lágrima sincera também pela tua partida, por te saber nessa viagem «nadando tão longe quanto se pode ir no oceano». Chegará a hora em que todos nos encontraremos por aí e renovaremos a energia do nosso abraço amigo.
Obrigada, Urbano, pelo sonho maior que nos legaste: «Eu tenho um sonho de fraternidade». Pela grande lição de vida que nos deste.


MARIA AUGUSTA SILVA
em 9 de Agosto de 2013


TAMBÉM NESTE SÍTIO:
GRANDE ENTREVISTA A
A URBANO TAVARES RODRIGUES







Luís de Sttau Monteiro

Felizmente incorrigível




O que sobressai da vida e obra jornalística e literária de Luís de Sttau Monteiro? Sobretudo uma inquietação e um desassossego que tinham que ver com o seu modo de olhar o mundo e os outros. Igualmente uma paixão sem limites pela vida. Intensamente a viveu, desconstruindo, desorganizando sadia e satiricamente todas as coisas proibidas. Morreu aos 67, vítima de uma embolia cerebral, em Lisboa, a cidade também seu berço em Abril de 1926.
Polémico, irrequieto, assumindo as incoerências próprias de qualquer mortal, Sttau Monteiro pertence a uma geração cheia de ideais que nas décadas do regime ditatorial correu riscos e conheceu a prisão em nome de valores como a liberdade e a dignidade de cada indivíduo e dos povos. Foi preso pela PIDE em 1961 e 1967, encarcerado no Aljube e em Caxias. Em 1961 publicou uma peça emblemática, Felizmente Há Luar, e o romance Angústia para o Jantar, obras de referência, como de referência são as «redações» da Guidinha que levou para o suplemento A Mosca do Diário de Lisboa, anos sessenta. Trabalhou ainda na revista Almanaque e no semanário O Jornal. Ficção, dramaturgia e jornalismo tomavam parte na sua respiração agitada. Usou a palavra crítica, anticonservadora, truculenta, por vezes azeda irritadiça. Mais obras podem destacar-se: Pôr do Sol no Areeiro, E se For Rapariga Chama-se Custódia (novelas); Sua Excelência e Crónica Aventurosa de Esperançoso Fagundes (teatro). Traduziu e encenou, entre outras: A Fera Amansada, de Shakespeare, Um Inimigo do Povo, de Ibsen, O Milagre de Ana Sullivan, de Gibson, e A Casamenteira, de Wilder. Com Artur Ramos adaptou ao palco A Relíquia, de Eça de Queirós. O seu nome ficou entretanto associado à telenovela Chuva na Areia (1984, RTP), saída do romance que deixou inédito: Agarra o Verão, Guida, Agarra o Verão.
Gestos frenéticos, acutilante contador de histórias até mais não, fumador inveterado, amante de comes e bebes, do mesmo modo mestre na arte culinária, nesta área assinou no Diário de Notícias a secção Comidas, que integrava o suplemento Cultura. Gostava de receber os amigos e preparar-lhes petiscos.
Numa entrevista ao Diário de Notícias (Junho de 1981), o jornalista Mário Ventura colocou-lhe esta pergunta: O que és tu politicamente? Logo a resposta: «Um desesperado individualista e, por isso mesmo, um defensor igualmente desesperado de todos os indivíduos. Luto, em resumo, por um regime que favoreça o indivíduo como indivíduo, e que lhe proporcione todas as possibilidades de se realizar à sua maneira, como entender, sem que o obriguem a optar por esta ou por aquela forma de viver e de entender o mundo. Sou contra a imposição de éticas de grupinho».
Outra pergunta: Recordas alguém que te tenha influenciado profundamente? Sttau a responder: «Sabes quem era o meu grande amigo na juventude? O António Sérgio. Era o homem a quem eu fazia perguntas, e ele dizia-me: Primeiro, leia estes quatro livros. Quando tiver lido, volte, que eu dou-lhe a minha opinião. Depois eu voltava, pedia-lhe a opinião, e ele dizia: Primeiro quero ouvir a sua para não o influenciar com a minha. (...). Talvez o homem mais democrático que conheci em toda a minha vida».
Muito novo foi para Inglaterra, ali passou parte da adolescência (o pai desempenhou o cargo de embaixador de Portugal em Londres, afastado depois por Salazar). Regressado ao seu país, licenciou-se em Direito, todavia a advocacia durou pouco tempo. Apaixonado por carros, andou na Fórmula 2 e fez longas permanências em França e Itália.
Galardoado com o Grande Prémio de Teatro em 1961, Luís de Sttau Monteiro enfrentou sempre dificuldades económicas, uma espécie de «chapa ganha, chapa gasta», no entanto sublinhava: «Trabalhei onde quer que encontrei trabalho, porque nunca tive um tostão que não tivesse ganho.»
Não gostava dos ruídos das grandes cidades e um dia escolheu uma casa em Loures para receber outros ares.
Rebelde e livre, assim gostava de viver.

© MARIA AUGUSTA SILVA







Guilherme de Melo

A claridade dos teus olhos




Guilherme, meu querido Gui, os teus olhos de um azul intenso e limpo libertaram-se agora da «sombra dos dias» que nos últimos tempos dilacerou a força da tua alegria. Onde estás? Eu sei: encontraste esse lugar sem definições doutrinárias que vai dar-te «a paz que a vida terrena torna sempre tão difícil», como me disseste um dia ao entrevistar-te a propósito do teu livro de contos «O Homem que Odiava a Chuva». No entanto, continuo a sentir-te aqui, apaixonado pela vida, sacola colegial ao ombro, caderninho de apontamentos dentro e pente à mão para ajeitares com uma pontinha de vaidade os teus bonitos cabelos brancos.
Revisito os nossos caminhos e vejo-te na Redação do DN, editorialista arguto, mas sobretudo repórter brilhante. Jornalista de escrita transbordante, sensível, límpida, atento ao pormenor, arte que já dominavas no teu berço moçambicano.

Gui, lembras-te das cheias dos anos oitenta?, outra vez o país afogado em tragédias sem conta. Deixei então a minha casa em Loures rodeada de água por todos os lados, como tantas, tantas, tantas, e meti-me a pé a fazer a reportagem de aflições e danos até alcançar a lisboeta porta do «Diário de Notícias». Tu passavas entretanto para o teclado agruras de outros locais igualmente atingidos pela tempestade; camarada de sempre, correste a limpar-me o lodo das roupas, a descalçares-me as botas de borracha rasgadas na caminhada, a aqueceres-me com jornais os pés magoados. Com toda a natureza de ti, desconcertante entre a doçura e a irreverência, logo te sais com esta: «Ora vês, Maria, os jornais é que nos tratam bem os calos».

Só tu, Gui, tu que encheste páginas e páginas de jornais, do DN em particular, com reportagens notáveis como as do incêndio do Chiado e crónicas inigualáveis, um talento único, esse que também passa pelos teus romances, nomeadamente «A Sombra dos Dias», «Ainda Havia Sol», «Como Um Rio Sem Pontes», «O Que Havia de Morrer” ou «Os Leões Não Dormem Esta Noite» (obra maior do teu percurso literário na minha simples opinião). Sem esquecer o poeta (faceta tua menos conhecida) que, mais recentemente, reuniu 54 poemas no livro «A Raiz da Pele». São versos em que te dás inteiro, confessando: «Guardo na raiz da pele / a verdade do que sou.»

Meu querido Gui, os teus olhos azuis, tão azuis na sua claridade de céu e mar, ficam eternamente no meu coração, nas saudades do colega de décadas no jornalismo, na lembrança de um homem que virava as adversidades do avesso, que desafiava preconceitos e falsos anjos, que vivia de pazes feitas com o mundo. A «sombra dos dias» jamais lhes apagará essa claridade. Permaneces imortal na relação de «amiga-irmã de toda a vida» (como releio na dedicatória que me deixas em «A Sombra dos Dias»). Habitas a minha memória e a do Pedro. Iremos ver-te sempre junto à velha laranjeira da nossa casa saboreando feliz com o teu companheiro Zé Manel os meus vegetarianos rissóis recheados de cogumelos e azeitonas.

Até amanhã, querido Gui.


MARIA AUGUSTA SILVA
em 29 de Junho de 2013


TAMBÉM NESTE SÍTIO:
GRANDE ENTREVISTA A GUILHERME DE MELO
NA OCASIÃO DO LANÇAMENTO DE LIVRO
‘O HOMEM QUE ODIAVA A CHUVA’







Jorge de Sena

Uma profunda e moderna visão do mundo




A palavra, na poesia como em tudo, vive tempos, realidades, projetos, ideias e mitos, identidades, estilos e transformações. Toda a arte, porventura, é assim nas mais diversas linguagens. Jorge de Sena afirmou-se como um desses gigantes da arte literária portuguesa, um criador desassombrado, brilhante.

Poeta, ficcionista, ensaísta, dramaturgo, notável tradutor de consagrados, entre os quais Malraux, Poe, Faulkner e Brecht, soube fazer da tradução, também, um objeto de arte e de permanente aprendizagem. Exímio, ainda, nos ensaios, em particular na abordagem de Camões e Pessoa. Nascido em Lisboa (Novembro de 1919), faleceu em Santa Barbara, na Califórnia, a 4 de junho de 1978. Concluiu o curso de Engenharia Civil na Faculdade do Porto (1944). A sua estreia nas letras dá-se com o livro Perseguição, publicado em 1942 sob a égide dos Cadernos de Poesia, a que esteve ligado, ao lado de nomes como os de José Blanc Portugal, José Augusto-França e Ruy Cinatti. Segue-se-lhe Coroa da Terra (1946), muito próximo do surrealismo. Jorge de Sena, porém, nunca deixou de refletir outras correntes e as grandes preocupações sociais; fê-lo com um engenho depurado e uma visão do mundo admiravelmente empenhada e aprofundada, característica que o tornou, igualmente, num catedrático fascinante.

Logo a partir d'As Evidências (1955), Jorge de Sena ficou, para sempre, um vulto da literatura portuguesa, que viverá para lá de todos os séculos, desdobrado na unidade de uma liberdade fundamental. Foi sob essa impulsão de liberdade que partiu em 1959 para o exílio.

Sublinhar a amplitude e a beleza da obra de Jorge de Sena é um ato cultural e um dever de cidadania. Com Sena, criador de Metamorfoses e de Arte de Música, fermento e luz e forma dos contos Andanças do Demónio, apetece o encontro no qual se realizam a dinâmica da lírica e da modernidade. Ele que foi, essencialmente, poeta, em Post-Scriptum disse: (...) Não, não serei nada do que fica ou serve, / e morrerei, quando morrer comigo. (...). Não morreu. Ficou na memória e na arte, que não podem rasgar-se.

© MARIA AUGUSTA SILVA



    Post-Scriptum

Não sou daqueles cujos ossos se guardam,
nem sou sequer dos que os vindouros lamentam
não hajam sido guardados a tempo de ser ossos.
Igualmente não sou dos que serão estandartes
em lutas de sangue ou de palavras,
por uns odiado quanto me amem outros.
Não sou sequer dos que são voz de encanto,
ciciando na penumbra ao jovem solitário,
a beleza vaga que em seus sonhos houver.
Nem serei ao menos consolação dos tristes,
dos humilhados, dos que fervem raivas
de uma vida inteira a pouco e pouco traída.
Não, não serei nada do que fica ou serve,
e morrerei, quando morrer comigo.
Só muito a medo, a horas mortas, me lerá,
de todos e de si se disfarçando,
curioso, aquel´ que aceita suspeitar
quanto mesmo a poesia ainda é disfarce da vida.


1954 (in Poesia I)







Mia Couto

A bela mestiçagem da língua

PRÉMIO CAMÕES 2013




Mia Couto acaba de ver a sua obra literária distinguida com o Prémio Camões. Um galardão de que também falámos na entrevista que nos deu em 2002, quando lançou Um Rio Chamado Terra, Uma Casa Chamada Terra. Na ocasião, perguntámos-lhe:
— O Prémio Camões tem-se esquecido das literaturas africanas, apesar de haver já consagrado Craveirinha ( 1991) e Pepetela (1997)?
Com a limpidez de pensamento que o caracteriza, respondeu-nos:
Tem-se esquecido de muita gente. Há nomes em Portugal e no Brasil que me fazem perguntar: por que não eles até agora?
Por exemplo?
— António Lobo Antunes.

Entretanto, no mundo das letras lusófonas, aquela distinção justiçou o romancista angolano Luandino Vieira (2006), que «por razões pessoais» recusou o prémio, e, em 2009, consagrou o escritor cabo-verdiano Arménio Vieira. Recordamos que o primeiro "Camões" foi atribuído ao ficcionista e poeta português Miguel Torga (1989) e, no ano seguinte (1990), ficou a sublinhar o nome ímpar da poesia brasileira João Cabral de Melo Neto. Muitos outros nomes de Portugal e Brasil estão inscritos neste galardão. Agora, o moçambicano Mia Couto. Justíssimo reconhecimento (acentuamos nós) de um autor que trabalha e molda como poucos a bela mestiçagem da língua, reinventando-a, conferindo-lhe uma força de comunicação que é, em si mesma, um poder cultural único a fomentar o diálogo, o encontro, os afetos, a abertura ao pensamento e aos valores dos povos.
Voltamos à entrevista que Mia Couto em tempos nos concedeu para dela assinalarmos a sua atualidade na essência das ideias aí debatidas. Falamos, pois, de um escritor que nos diz: «Preciso de estar em estado de infância para escrever; preciso de sentir a capacidade de encantamento, de deslumbramento como se estivesse a olhar as coisas pela primeira vez. Preciso de uma certa inocência. É isso». Mas que adianta ser um inocente, «só quando estou naquele estado de embriaguez, de resto, sou uma pessoa avisada».


28 MAIO 2013

MARIA AUGUSTA SILVA

                                                                        ENTREVISTA INTEGRAL








Maria Helena Matos

Uma vida do teatro que ao teatro tudo deu

        TEXTO REESCRITO EM SETEMBRO DE 2012,
        NA OCASIÃO DOS DEZ ANOS DA MORTE DA ATRIZ



(Foto da coleção de JOSÉ COELHO MAXIMINO por especial cortesia)

Talento, dignidade e sabedoria são dons para sempre ligados à personalidade de Maria Helena Matos, atriz maior dos palcos portugueses. Com uma vida inteira dedicada ao teatro, nomeadamente à encenação, o coração da artista parou há dez anos, na tarde de 19 de setembro.

Filha de Maria Matos, grande dama da cena teatral nacional, e de Mendonça de Carvalho, também ator, Helena Matos conheceu a magia do teatro quando tinha apenas seis meses, levada pelos pais; mas a sua estreia dá-se aos catorze anos na comédia Era Uma Vez Uma Menina, no Teatro Sá da Bandeira, do Porto. A força interpretativa afirmar-se-ia em diversas peças, entre as quais A Rainha das Sogras, As Fontes Luminosas, O Escorpião ou Aqui Há Fantasmas, havendo contracenado, na última, ao lado de seu marido, Henrique Santana, outro nome sagrado dos palcos, falecido em 1995.

Maria Helena Matos, centenas de personagens ganharam alma graças à sua garra e beleza, fossem de papéis ligeiros ou de figuras mais dramáticas; firme, dominando as tábuas, Helena fascinava o público. Recebia os aplausos vibrantes com uma admirável serenidade e um sorriso humanizante. Trabalhou com figuras carismáticas como Assis Pacheco, Erico Braga, Palmira Bastos, Alves da Cunha, Alfredo Ruas, Ribeirinho ou Eunice Muñoz. Chegou a integrar o elenco da companhia dirigida pelo sogro, Vasco Santana, no Teatro Variedades. A arte de bem representar garantiu-lhe, do mesmo modo, espaço nos teatros D. Maria II e no saudoso Monumental. Também na cena revisteira se destacou em inúmeros êxitos de todos os tempos; inesquecível a forma única como interpretou a canção Na Minha Aldeia, símbolo da revista Rosmaninho. E Maria Helena Matos distinguiu-se em filmes como Bocage ou O Diabo Desceu à Vila (papel crítico sobre o puritanismo do Estado Novo).

Apaixonada por sol e mar, dada à natureza e aos bichos, amiga do seu amigo, Maria Helena Matos gostava de recolher-se em sua casa rodeada de bom gosto, móveis de belíssimo recorte clássico, objetos cheios de significado, muitos deles lembrando viagens por outros países aos quais levou o seu brio profissional. Gratas recordações guardou-as num trato fino e solidário, senhora inteira a quem a notoriedade nunca alterou uma humildade nata.

Maria Helena Matos morreu com noventa anos. Um adeus sereno. Correu-se o pano e, no dia seguinte, correram as lágrimas em muitas centenas de rostos. Não esqueço as palmas de eternidade que se ouviram naquela tarde, do princípio ao fim da alameda central do cemitério do Alto de São João.


MARIA AUGUSTA SILVA






Idálio de Oliveira

A vida por uma paixão: a ciência médica

TEXTO DE 1995, REESCRITO EM 2012 NA OCASIÃO DO CENTENÁRIO DO
NASCIMENTO DE IDÁLIO DE OLIVEIRA




«Nunca transmito ao doente uma mentira piedosa. Olho-o em
toda a sua grandeza, sentindo-lhe o desespero e a ansiedade.
Uma palavra humanizante de esperança pode aliviá-lo. Sem
mentir. Devemos cuidar da dor física, sem encarniçamentos,
mas pensando ao mesmo tempo no complexo psicofísico que é
a doença e na sensibilidade individual do paciente. Regra
geral, o doente acaba por entender o risco e o médico tem de
ser solidário e dar-lhe amparo.»


Seis décadas a combater a doença oncológica. Memórias inapagáveis de tantas situações perdidas, mas o olhar ganhava um brilho intenso ao citar doentes que lhe foram ter às mãos com um prognóstico de apenas meio ano de vida e viriam a curar-se.

Idálio de Oliveira, sorriso de menino, recebeu-me na sua clínica quando já contava 83 anos. A entrevista foi para mim emocionante. Tinha à minha frente um pioneiro, tão discreto quanto notável, na história da medicina portuguesa. Pioneiro, sobretudo, na instalação de tecnologias de diagnóstico e tratamento de cancro. Montou a primeira Bomba de Cobalto, o primeiro Acelerador Linear, o primeiro aparelho de TAC e o primeiro aparelho de Ressonância Magnética da Península Ibérica. Foi igualmente pioneiro na técnica de Angiografia Digital em Portugal. De paixão em paixão, Idálio de Oliveira deu primazia aos doentes e ao estudo.

A entrevista começou com uma digressão aos tempos de uma juventude atribulada. Cursou Medicina em Coimbra e Lisboa. Estudou muito por livros emprestados. Uma força interior invejável. Conheceu as sombras da morte. Dos outros e dele próprio. Não deu tréguas ao combate em defesa da vida. Venceu uma tuberculose aos vinte e poucos anos, quando o bacilo maldito dizimava mais de cinquenta por cento das vítimas. Três anos no Caramulo, entregue aos cuidados de Manuel Tapia. Trabalhou durante doze meses já com a caverna declarada, para conseguir assistência gratuita, que lhe era negada enquanto não cumprisse um determinado tempo de serviço, no internato. Ganhava, então, trezentos e vinte escudos por mês. E a estreptomicina permanecia no segredo dos deuses. Repouso e alimentação cuidada. Confidenciou-me: «Julgava eu que seria bastante, contrariando os alertas dos especialistas. Engordei vinte quilos em meia dúzia de meses. Quando me autorizaram a passar o Natal em Lisboa, rasguei as calças de ambos os lados para caber nelas, e só tinha um par. A experiência do Caramulo valeu-me imenso na minha vida clínica.» A caverna, todavia, persistia. Tratamento mais intensivo. Pneumotórax semanalmente, já de regresso ao trabalho. E o "milagre" aconteceu: «Curei-me. Entendo o milagre como uma conjugação de determinados fatores espirituais e físicos difíceis de conceber, mas que se dá. Falo por mim e pelo que conheço de muitos doentes.»

O número sete dominou a vida de Idálio de Oliveira. «Tudo me tem sucedido no dia sete. A minha casa é número sete e até uma namorada tinha o apelido Siete.» Um acidente terrível, também, a sete. «Fiquei todo partido.» Um cancro de rim controlado a custo. «Quase não existo!»

Outra confidência: tinha contos e poemas fechados na gaveta. Esquivava-se, porém, a falar da sua veia poética. A timidez atacava-o a todo o instante. «Nada a fazer.» E fugia dos espelhos. «Não gosto de me ver ao espelho. Tenho a sensação de estar a despedir-me de mim mesmo.» Paixão eterna? «Tratar os doentes com solidariedade.»

O tema da doença oncológica preencheu naturalmente a maior parte da conversa. Insistiu na urgência da prevenção e diagnóstico precoce. Terapêutica enquadrada numa atitude multidisciplinar. Alerta geral de todos os oncologistas. Prioridade absoluta. «A luta contra o cancro já conta hoje com armas poderosas. Destaque para a cirurgia, a radioterapia e a quimioterapia. Mas considero que deveria repensar-se a tendência cada vez maior para se aplicar a quimioterapia de um modo sistemático, principalmente nos tumores sólidos. A quimioterapia pode ser – é – uma arma extraordinária; a meu ver, urge, no entanto, um maior intercâmbio de experiências. Cada doente é um caso, que tem de ser estudado em equipa. Isto já acontece. Julgo, porém, que precisamos de promover mais esta atitude clínica.»

Idálio de Oliveira revelou-me depois dois sonhos. «A engenharia genética permite, hoje, fazer, desfazer, e reconstruir uma célula. Acredito que estejamos perto da descoberta de anticorpos monoclonais, que irão ser o fermento específico contra o cancro. Tenho esperança. Gostaria de assistir ainda a esse passo. Seria, então, motivo para dizer-se: "Coitado do cancro, andou tanto tempo a caçoar connosco!".» Segundo sonho: poder concretizar o projeto da Fundação Idálio de Oliveira. «Deixar esse legado a funcionar eficazmente, num apoio à investigação clínica e ao ensino de uma maneira informal, abrangendo todas as valências, desde o diagnóstico à terapêutica.»

Já no fim falou-se casualmente de flores. Idálio de Oliveira adorava flores.

Alguma preferida? «As rosas, as rosas!» – foram estas as palavras de despedida.


MARIA AUGUSTA SILVA


TAMBÉM NESTE SÍTIO:
ENTREVISTA INTEGRAL







Rómulo de Carvalho / António Gedeão

Dois nomes para um génio multifacetado

NOS 15 ANOS DA SUA MORTE



«A vida nunca me seduziu. Entre o viver e o morrer
sempre preferi o morrer.
Se não tivesse nascido, ninguém daria pela minha falta.
Reconheço que estou a ser indelicado com todos aqueles
que gostam de mim, mas peço-lhes que me desculpem.» (…)
«O mundo é repugnante e a vida não tem sentido. É uma luta
permanente e feroz em que cada um busca a
satisfação dos seus interesses exactamente como outros
seres vivos, animais ou plantas, que se atacam.»


Poeta da originalidade. Temperamento avesso a exibicionismos. Subtil na ironia. Rigoroso. Exigente. Trato elegante e franco. Um espírito moldado pelo casamento entre a ciência e a poesia. António Gedeão, pseudónimo literário. Rómulo de Carvalho, o pedagogo, didacta, historiador da ciência, do ensino e da literatura em Portugal; investigador de temas filológicos, sobretudo ligados à terminologia científica. Ainda fotógrafo, desenhador... E sempre tudo fazendo bem. Marcou gerações sucessivas. Lisboeta nascido em 24 de Novembro de 1906, não haverá quem não lhe tenha aprendido e trauteado Pedra Filosofal, especialmente divulgada pela voz de Manuel Freire (décadas sessenta e setenta). Licenciado em Ciências Físico-Químicas (Universidade do Porto), 1931, concluiu, no ano seguinte, o curso de Ciências Pedagógicas. Começou a carreira de professor (1934) no Liceu Camões e lecionou no Liceu Pedro Nunes (Lisboa), depois de uma passagem pelo Liceu D. João III (Coimbra). Embora escrevesse desde criança, só aos cinquenta anos edita o primeiro livro de poesia, Movimento Perpétuo (1956). Desinserida de escolas e de modas estéticas, a poética do autor de Máquina de Fogo (1961) é marcada por uma rara inventividade, nunca facilitada, sempre límpida, por vezes desconcertante. O nome e a obra de Gedeão continuam a tomar parte num imaginário colectivo sem idades. Da poesia destacam-se, ainda, entre outros títulos: Teatro do Mundo (1958), Linhas de Força (1967), Poemas Póstumos (1983), Novos Poemas Póstumos (1990), Poemas Escolhidos, 1997 (antologia organizada pelo autor). O volume de Poesia Completa teve nova edição em 1996, que insere «primeiros estudos de Ulisses e as Sereias», de Júlio Pomar. Peças de teatro: RTX 78/24, em 1963; e História Breve da Lua (para crianças). Autor, também, de As Origens de Portugalhistória contada a uma criança (escrito e por si ilustrado na década de quarenta), trabalho com edição póstuma (1998); outra obra de edição póstuma: Memória de Lisboa. Na ficção assinou entretanto: A Poltrona e Outras Novelas (1973). E com o nome de Rómulo de Carvalho trouxe ainda a público diversas obras dedicadas a temas de investigação científica e histórica, nomeadamente História do Ensino em Portugal Desde a Fundação da Monarquia até ao Fim do Regime de Salazar - Caetano. Colaborador das revistas Palestra e Gazeta Física. Foi eleito sócio efectivo da Academia das Ciências de Lisboa (1992). A Universidade de Évora conferiu-lhe o doutoramento honoris causa, 1995. Premiado, viu igualmente ser-lhe prestada uma homenagem nacional promovida pelo Ministério da Ciência e da Tecnologia (1996), de que era então titular José Mariano Gago; por essa ocasião foi instituído o Dia Nacional da Cultura Científica (celebrado na data de nascimento do poeta e professor). Condecorado com o Grau de Grande Oficial da Instrução Pública, 1987. Recebeu a Medalha de Mérito Cultural, 1996. Morre em 19 de Fevereiro de 1997. Em 2001, no Museu da Ciência, em Lisboa, decorreu uma grande exposição intitulada Pedra Filosofal, organizada por Maria Luísa Corte-Real, que abrangeu todas as facetas de Rómulo de Carvalho / António Gedeão. Cinco anos depois, na ocasião do centenário do nascimento, a Biblioteca Nacional organizou nova exposição - nomeada António é o meu nome - refletindo a diversidade da produção científica e literária da imensa obra do Poeta da Ciência.

"OBRA COMPLETA": NOTÁVEL EMPREENDIMENTO EDITORIAL

A invulgar força criativa de Rómulo / Gedeão foi reafirmada (e alargada) em 2004 com o grandioso volume Obra Completa, reunindo pela primeira vez a produção poética, novelística, ensaística e teatral do autor de Pedra Filosofal. A obra, coordenada pela escritora Natália Nunes, viúva do poeta e cientista, tem a chancela da Relógio D'Água. Inclui inéditos (e manuscritos) que passam pelos tempos da infância e juventude do autor.

«Penso que este trabalho, mesmo sem acrescentar nada à obra do poeta, poderá, de certo modo, fornecer mais alguns elementos aos especialistas que se interessam pelo estudo da criação literária», declarou-me Natália Nunes na ocasião do lançamento do livro. Nesse sentido, e porque nunca antes se abordaram as produções literárias da infância e da juventude de António Gedeão (que estavam guardadas), o contributo da Obra Completa é essencial e permitirá, nesse aspeto, um maior e melhor conhecimento do homem que, embora tivesse publicado o seu primeiro livro, Movimento Perpétuo, apenas em 1956, desde sempre se preocupou com a arte da escrita, com os acontecimentos históricos, com a língua portuguesa, a pedagogia e, também, com a investigação cientifica.

Ao longo de mais de 700 páginas, bem estruturadas e deliciosamente ilustradas, encontramos, logo a abrir, a primeira quadra de Gedeão, feita aos cinco anos, escrita a lápis: «Era uma vez um menino / Que não era nada feio / O que tinha de extraordinário / Era um feitiço no meio». A expressão «feitiço», que substitui a palavra inicial «coisa», riscada pelo então poeta-menino, assume já uma invulgar noção metafórica e estilística, associada à descoberta e à magia fisiológica, ontológica e amorosa do próprio corpo.

De Gedeão diz Jorge de Sena (num extenso «esboço de análise objetiva» de quase 50 páginas e também inscrito em Obra Completa): «Um homem não começa a publicar livros de versos aos cinquenta anos, para brincar de poeta consigo mesmo, mas porque rompeu os muros de timidez e de orgulho, que o inibiam de mostrar-se o poeta que era». Esse poeta imenso, de registo único, diferente, permanece «na voz de quem a não tem». Permanece no instante e no «poema do futuro» por si explicado: «Conscientemente escrevo e, consciente / medito o meu destino.» Permanece o poeta «do amor sem mestre».

Em Obra Completa de António Gedeão ressalta, por outro lado, a unidade entre a sua poesia e o seu labor científico, entre Gedeão - pseudónimo do poeta que morreu em 19 de Fevereiro de 1997 - e Rómulo de Carvalho, o homem das ciências, o professor, o mestre. Uma unidade que se prende igualmente com o dramaturgo, o ficcionista d'A Poltrona e Outras Novelas e o ensaísta rigoroso, meticuloso e sábio.

Finalmente, em 2010, surgiu novo portentoso volume com mais de 500 páginas - as "Memórias" - coordenado pelo filho Frederico de Carvalho e editado pela Fundação Calouste Gulbenkian (2ª edição em 2011). As "Memórias" terminam com uma frase sem ponto final:
«Chamo-me Rómulo e nasci no dia 24 de Novembro de 1906 com sete meses de gestação. Faleci em
Coube à sua Natália [Nunes] completar: 19 de Fevereiro de 1997.


MARIA AUGUSTA SILVA

19 de Fevereiro de 2012





Artur Portela

O grande repórter de alma e coração

ESCRITO NA OCASIÃO DO CENTENÁRIO DO NASCIMENTO




Nunca morre quem da vida faz tempo útil, usando-o como esteira de valores indissolúveis. Artur Portela, jornalista, escritor, foi um desses homens. Na véspera da celebração do centenário do seu nascimento, na Casa da Imprensa, o presidente Fernando Pires sublinha-me tudo o que Artur Portela deu àquela casa de solidariedade e cultura: «Estão vivos poucos daqueles que conheceram e trabalharam com ele na Caixa de Previdência de Profissionais da Imprensa, como então se designava a Casa da Imprensa. Eu próprio não conheci o grande jornalista, só me recordo de ouvir pronunciar-se-lhe o nome no começo da minha carreira, entre alguns colegas do Diário de Notícias. Na Casa da Imprensa pude, no entanto, apreender e aprofundar a dimensão da obra de Artur Portela em benefício dos jornalistas e das suas viúvas, e a grandeza da sua alma. Não só a ele, mas principalmente a ele se deve o edifício-sede da Casa da Imprensa. Mas estão perenes, nas atas de sucessivas direções e assembleias gerais, os registos do que realizou e do que lhe foi agradecido. Outros jornalistas prestaram assinaláveis serviços aos seus camaradas no desempenho de funções nesta casa, mas a nenhum se deve tanto, em verdadeiro espírito de solidariedade, em absoluta entrega, em autêntica devoção como a Artur Portela».

A sessão de homenagem, que decorrerá no Salão Nobre "Artur Portela", conta com Baptista-Bastos para abordar a personalidade de Portela no jornalismo português. Recordamos que impulsionou a primeira carteira profissional da classe. O filho, o também jornalista e escritor homónimo, evocará a figura do pai e do profissional (v. texto adiante). O presidente da Assembleia-Geral da Casa da Imprensa, João Coito, deverá, também, referir-se a um nome inscrito na primeira linha de uma geração que marcou uma época.

Repórter (de guerra, de quotidianos, do acontecimento), arrebatador e incansável, Artur Portela era mestre no pormenor e no colorido da reportagem. Não hesitava na linguagem poética, própria da sua paixão pelas áreas culturais (artes plásticas, literatura, teatro) a que esteve ligado desde o início da carreira (aos 19 anos), nomeadamente como crítico. Foi um entrevistador arguto, colocando o interesse jornalístico acima das suas ideias e ideais. Republicano sem filiações, celebrizaram-no entrevistas polémicas como as que fez a Churchill ou a Unamuno. As páginas do Diário de Lisboa contaram com o seu talento durante 38 anos, mas outras publicações, entre as quais o Diário de Notícias, beneficiaram dos seus méritos. Brilhante, também, na crónica.

Artur Portela, nascido em Leiria (Abril de 1901) morreu a 12 de Março de 1959, em Lisboa. O coração do autor de Tudo Amor (crónicas e reportagens) e de Divina (novela), fica na memória credora de perene celebração.

MARIA AUGUSTA SILVA


O repórter "intruso" foi "apagado" da História...

Artur Portela testemunhou como jornalista do Diário de Lisboa a Guerra Civil de Espanha, tendo chegado a publicar em 1937 a obra Nas Trincheiras de Espanha. Em fins de Setembro de 1936 presenciou a libertação de Alcazar e foi nessa ocasião captado por um fotógrafo quando se encontrava entre Francisco Franco e o comandante operacional, coronel José Moscardó. Eis a fotografia:



Um "intruso" em plano destacado em tão histórico acontecimento (para mais sendo republicano e democrata...) desagradou às forças vitoriosas, pelo que de imediato se ordenou aos peritos do laboratório fotográfico a resolução do estorvo, ou seja, a remoção de Artur Portela. Em conformidade, a imagem antologiada para a História passou a ser a seguinte:



Quatro meses depois da primitiva foto o caudilho converter-se-ia em chefe do governo espanhol e empreenderia os duradouros fuzilamentos dos vencidos -- um tema que neste momento retornou à atualidade (caso Baltasar Garzón). Parece improvável que Artur Portela tenha sido conhecedor da trapaça fotográfica. Tendo acontecido, decerto se mostrou até grato. A sua presença ao lado do Generalíssimo constituiria uma dissonância graficamente incómoda para quem afrontara desde muito jovem os regimes déspotas e se batia no próprio país pela restauração da democracia. Todavia, uma foto muito semelhante, realizada no mesmo instante e, claro, intocada de manipulações, foi publicada dias depois no matutino O Século, assinada pelo repórter português Leopoldo Nunes, presumivelmente o mesmo autor da imagem-matriz que reproduzimos aqui. PF


Palavras do filho homónimo, também jornalista e escritor

Obviamente, já não há, já não é, já não pode ser o jornalismo que foi, e os jornalistas que foram e como foram. O que não é, porém, totalmente uma virtude: porque há valores que a nova economia, a nova tecnologia, as novas metodologias, a nova terminologia, não despromovem, não ultrapassam, não ocultam. Pelo que não se tratará aqui apenas de memória, mais ou menos afetiva.

A generosidade.
A generosidade da entrega, a generosidade de ser, de fazer que o jornalismo, e não apenas só romanticamente, é Artur Portela, o jornalista cujo centenário de nascimento se assinala, não se eximia, não se poupava, não se elidia, não se negociava. Não estava em trânsito. Era só jornalista, e isso era então muito, e chegava profissionalmente para ser tudo.

A missão.
O sentido de missão: Artur Portela tinha do jornalismo uma alta e exigente noção. Alta no sentido de larga e complexa, exigente no sentido de não-complacente. No sentido de contribuição, de dever, de missão. Só estava bem quando era por bem. E só era por bem quando social e culturalmente se entendia e se praticava. O limite era um desafio, e a honra a resposta a esse desafio.

A solidariedade.
Artur Portela sempre se bateu pelos valores democráticos estruturantes do verdadeiro jornalismo, desde a sua juventude republicana avançada, passando pelo afrontamento da ditadura salazarista e da arma brutal que foi a Censura, e pela sua identificação nomeadamente com movimentos de candidaturas eleitorais opostas ao regime salazarista. Solidariedade que naturalmente se exprimiu na luta sindical e no projeto de solidariedade socioprofissional que foi a Casa da Imprensa. Sem distinguir entre os jornalistas aqueles que ideologicamente sim e aqueles que ideologicamente não. E não apenas por automatismo corporativo, mas por largueza, por aristocracia da sensibilidade.

O Humanismo.

Artur Portela lutou pelos valores sociais e políticos que identificam o Humanismo. Numa perspetiva cívica e política, democrática. Designadamente, na direção da, por considerável tempo, única publicação que defendia a causa dos Aliados, num país onde o poder ideologicamente se filiava no fascismo. Humanismo também cultural. Foi, como então também se era, também se podia ser, o jornalista literário, o jornalista-escritor, o cronista.
Porque se estes valores, a generosidade, a missão, a solidariedade, o Humanismo, foram por este homem naturalmente vividos conforme a sua matriz afetiva, a sua formação cultural, a sua marca geracional, eles permanecem exigentes. Apenas lamentavelmente mais desertificados.
Quando, por exemplo, o jornalismo se mercantiliza, se vedetiza, simultaneamente se exibe e se fecha, quando o jornalismo disputa à velha diplomacia o nome de Carreira, quando o jornalismo é «A Carreira», quando o jornalismo é grande eleitor de cargos políticos e os cargos políticos são grandes eleitores de cargos jornalísticos, quando o jornalismo toma, por oportunismo logístico, por visibilidade, por audiência, as rédeas de um poder que, de facto, não lhe pertence, investiga, processa, julga, condena e sumariamente executa, que valores?
Quando, por exemplo, o jornalismo, designadamente o português, embora obviamente não apenas o português, embarca numa operação de psicoestratégia militar planetária, usando acriticamente, automaticamente, os termos do que podemos definir «teguerrismo», quando o jornalismo não explica, não contextualiza, não distingue, quando objetivamente toma partido, o partido de uma parte e o partido da dinâmica vendedora da própria guerra, da própria destruição, da escalada da irracionalidade, que valores? Pelo que em certo sentido se poderá dizer que o jornalismo ainda não é o que foi.
Não que esse jornalismo que foi tenha sido apenas qualidade moral, cultural e cívica, não que não tenha tido as suas sombras, e não apenas a da institucionalizada noite política que sobre ele, e contra ele, se abateu, mas porque esse jornalismo queria ser véspera de um dia que não veio, de um futuro que este dececiona, trai, dramaticamente não é. Artur Portela, a oportunidade desta memória - para além da afetividade que, compreender-se-á, só pode ser, nestas linhas, muita -, é a da afirmação de que este homem, parte importante do que ele foi e com tantos camaradas de profissão compartilhou, parte importante do que ele representou, inscrevem-se, não no passado, mas na exigência moral, ética, cultural do futuro.

Outubro 2001

Artur Portela





João Gaspar Simões

Bem-amado ou mal-amado, ninguém pode ignorá-lo




«Sou o primeiro a prever a falibilidade dos meus juízos»

Ler e escrever cedo o motivaram. Homem de sinceridade, mesmo quando essa franqueza lhe custava inimizades. Polémico, suscitou adesões e ataques como é próprio de quem tem de ajuizar; o que fez com espantosa regularidade e brilho durante mais de meio século, exercendo a sua crítica literária torrencial, combativa, por vezes amarga. João Gaspar Simões, uma das figuras mais carismáticas da crítica literária em Portugal, morreu há 25 anos.
Desassombrado, espírito analítico, desafiou e fez sobressaltar conceitos embutidos em cátedras. Caminhou por dentro da cultura, servindo-a com um ideal inspirado no movimento presencista. Fundou, em 1927, a revista Presença, com José Régio e Branquinho da Fonseca, nomes a que se ligaram outras figuras como a de Casais Monteiro. O curso de Direito, iniciado em 1921, sofreu interrupções; concluiu-o em 1932; presidiu à Associação Académica de Coimbra (1931-1932).
Em meados dos anos trinta fixa-se em Lisboa e trabalha na Biblioteca da Imprensa Nacional. Enquanto crítico, a sua arte profissionaliza-se e projeta-se com invulgar fulgor em jornais como o Diário de Lisboa, Diário Popular, ainda em publicações do Brasil, e, sobretudo, nas páginas do Diário de Notícias; nelas colaborou até morrer, a 6 de Janeiro de 1987. Anatomizou, psicanalisou romances, contos, poesia, teatro. A vastidão e a pedagogia inovadora da sua crítica tornaram-no numa referência. Recebeu em 1981 o Prémio Crítica Literária; foi-lhe atribuído no mesmo ano o grau de Grande Oficial da Ordem de Sant' Iago.
Crítico, dramaturgo, historiador da literatura portuguesa, romancista, tradutor. No ensaio devem-se-lhe alguns trabalhos de fôlego, nomeadamente sobre Eça de Queirós e Fernando Pessoa. Livro de estreia: Temas (1929). Mais apagada ficou a sua criatividade romanesca de que se destacam Elói ou Romance Numa Cabeça, Pântano e Internato. Crítico de timbre geracional? Seja como for, personificou modernidade recusando modismos. Com falhas. Com excessos. Com honestidade e independência, todavia. Chegou a confessar: «Sou o primeiro a prever a falibilidade dos meus juízos.»
Eduardo Lourenço interpretou-o de forma muito curiosa: «Para João Gaspar Simões a literatura não era apenas uma religião, era a Religião de um mundo sem lugar para ela.»
João Gaspar Simões, o crítico. Bem-amado ou mal-amado, ninguém pode ignorá-lo.


MARIA AUGUSTA SILVA





Alves Redol




O ribatejano do mundo inteiro

REVELAÇÃO NO DIA DO CENTENÁRIO
DE UM DEPOIMENTO MANUSCRITO INÉDITO
PROIBIDO PELA CENSURA

Comprometida com os problemas humanos e sociais, a escrita de Alves Redol tornou-se uma das mais expressivas do neorrealismo em Portugal. Os ambientes, as vidas, as sedes, os silêncios e as revoltas habitam toda a narrativa do escritor nascido há cem anos em Vila Franca de Xira, onde morreu em 1969.
Alves Redol, boné à feição, orelhas alongadas e descobertas, sobrancelhas fartas, franzidas. Um rosto atento, todo ele concentrado num olhar largo e fundo. Corpo errante, caminhando pelos caminhos do humano, Redol sonhava novas mentalidades, novos espaços, justiça, liberdade e afetos para a gente que lavrava as terras, descia às lezírias, sulcava rios e mares, e corria os lugares de todas as ilusões em busca de um tempo de pão. A realidade social (marca incontornável dos neorrealistas) teve em Alves Redol um intérprete superior em termos de estética literária. Nem todos os neorrealistas lograram essa beleza formal com que Redol soube encontrar e trabalhar a palavra e as personagens. Empenhado e escrupuloso, aliando o jeito da reportagem ao culto da linguística, evoluiu na técnica narrativa do romance até chegar a uma notável desenvoltura. Injustiçado anos a fio pela crítica, apesar de não lhe ter faltado, desde cedo, o estímulo de Rodrigues Lapa (incisivo, exigente), Redol acabaria por ver a sua obra reconhecida, obra acessível (como a desejava), todavia culturalmente sólida.
Ribatejano do mundo inteiro, Alves Redol escrevia refugiando-se, quase sempre, na sua casa do Freixial, onde o pensamento via mais longe os quotidianos, as dores e as esperanças dos campos, as fragas do Douro, os marinheiros, os seus gaibéus.

MARIA AUGUSTA SILVA

29 DEZEMBRO 2011

Neste dia do centenário do homem-escritor que remou contra todas as humilhações reproduzimos um breve depoimento manuscrito sobre a juventude portuguesa, até agora inédito por motivo de a Censura Prévia ter proibido a sua publicação no diário República em data indeterminada da primeira metade da década de sessenta. Infelizmente não foi possível preservar a correspondente "prova de Censura" – assim denominada por ser a prova tipográfica na qual aqueles serviços exaravam uma das três sentenças aplicáveis a um escrito:
 "AUTORIZADO" / "AUTORIZADO COM CORTES" / "CORTADO" (ou seja, na totalidade).




                                       [© ARQUIVO HISTÓRICO DE IMPRENSA | PEDRO FOYOS]






David Mourão-Ferreira

As palavras vivas de um poeta maior




David Mourão-Ferreira e Maria Augusta Silva durante uma longa
caminhada pelos bairros da sua Lisboa. O chapéu é do poeta;
foi-lhe surripiado para a fotografia

As palavras habitavam-lhe o corpo. Com elas criava a luz, a música e a dança da poesia. David Mourão-Ferreira partiu em 1996, era ainda primavera. Do poeta ficou viva a substância da escrita. Grande como era, a sua obra continuará a surgir como uma descoberta perene. Uma descoberta quando se lê e relê; uma descoberta quando se encontra um ou outro inédito disperso por um lato espólio literário que enriquece a cultura de um país.
Numa outra longínqua evocação registei a descrição fiel de David Ferreira, filho do autor d’Os Quatro Cantos do Tempo, falando do escritor e do pai: «Um homem por essência tolerante. Gostava de pessoas diferentes até por essa mesma diferença.»
David Mourão-Ferreira, numa entrevista ao Jornal de Letras, disse um dia que «o inconsciente é o grande operário dos poemas, mas acaba por pedir sempre o auxílio do mestre-de-obras, que é a consciência.» O criador d’Os Amantes e Outros Contos ou de obras como Gaivotas em Terra sabia usar o inconsciente e a consciência de forma genial. Com paixão. Porque sem paixão não vale a pena, tenha ela o prazo que tiver. Com amor, porque amou sem namorar, «mas nunca namorei sem amar», revelou-me uma noite, no Martinho da Arcada.
Completam-se hoje quinze anos da sua morte. Morreu? David Mourão-Ferreira é alguém com quem apetece, sempre, marcar encontro. Ir com ele, de novo, pelas ruas e jardins da sua Lisboa, sorvendo-lhe o saber, a elegância e a alegria; aprendendo a ver o encantamento e as memórias, as coisas e as pessoas por meio do seu olhar sedutor e maior.


MARIA AUGUSTA SILVA

16/06/2011






Emília Nadal

Estética e deslumbramento




Emília Nadal, meio século dedicado à pintura e ao desenho, é um nome maior da arte contemporânea portuguesa, distinguindo-se por um traço que nos contrários do ser e do mundo busca uma unidade na qual prevalece a harmonia. «Tento o equilíbrio dentro das contradições e dos desequilíbrios, num movimento que contradiz outro, numa cor que encontra o seu contrário. Procuro a conjugação dos contrários sem grandes conflitos.» Essa dimensão, sendo transversal a toda a obra de Emília Nadal, evidencia-se nas "linhas oblíquas", viagens ou vertigens de luz, diálogos num espaço cósmico que é o do próprio imaginário.
Em fevereiro de 2005, na ocasião da sua mostra Canção da Terra, a pintora esclareceu-me: «Não me refugio na harmonia para suportar a desarmonia. A desarmonia dramática a que assistimos a nível mundial é um sinal da condição humana, da sua finitude. Por isso acho outras coisas tão belas. Fico deslumbrada ao olhar os montes, as árvores, o mar, a mais ínfima planta.»
A referida exposição inspirava-se numa composição de Mahler. É a música, igualmente e desde sempre, a reforçar a sensibilidade da mulher e da artista. «Talvez a arte que mais admiro. Dá-me um prazer imenso: exaltação e exultação, mas, sobretudo, muita paz interior» – sublinhou-me. Uma admiração que na sua pintura lhe motivou já séries como Sonata ou Solo, a par de Os Dias da Criação, trabalhos que, entre outros, integravam Canção da Terra. Síntese de cores e movimentos transfiguradores, próximos de uma respiração funda que se faz nos frutos e nos acordes suspensos de um lugar múltiplo, porventura o de um mistério que não importa definir, basta que seja uma realidade de espanto. Emília Nadal adianta: «Acredito que o universo não nasceu do nada, e, a partir de uma realidade que me deslumbra, posso intuir ou concluir que há um Criador, no entanto a minha fé não se apoia numa transcendência pantaísta, vai no sentido de uma revelação.»
O catálogo para a exposição que tenho citado incluía um texto da ensaísta Maria João Fernandes no qual se realçava: «Luz e música fluem na pincelada incomparável de Emília Nadal, simples e clara como a dos mestres do Oriente. Entre esmeraldas verdes e laranjas das árvores do paraíso, perpassam folhas que são já vestígios de uma alegria breve. Breve e mágica, puríssima como a vida, como a vida destas imagens.»
Com inúmeras exposições individuais e coletivas, representada em museus e coleções privadas, Emília Nadal pinta e desenha de pé, rodeada de tintas, pincéis, esponjas e livros, muitos livros de arte no atelier banhado pela claridade do Estoril. Na grande sala de trabalho, uma larga e comprida mesa de madeira e quase rente ao soalho uma preciosidade dos anos sessenta: um rádio sintonizado na Antena2, som óptimo, companhia inseparável.
Por que lhe dará mais jeito pintar de pé? Não tarda a resposta que me dá: «Assim vejo melhor e todos os movimentos tornam-se mais amplos no interior de mim e fora de mim.» Sem rejeitar a "matriz clássica" da sua obra, a transgressão e a modernidade decorrem de uma relação com a arte que foi evoluindo. «Antigamente, refletia muito mais antes de começar um trabalho. Construía uma história e pintava. Hoje, começo por pintar e depois encontro sentido no que pinto. É tudo mais espontâneo, gosto de improvisar. E este percurso é feito com toda a naturalidade. Cada quadro é um grande desafio. Gosto desse desafio.»
Desafiou entretanto mentalidades e acomodações quando, nos anos setenta, criou a série das "latas". À linguagem pop foi buscar a expressão de protesto aos métodos da sociedade de consumo. «Uma forma satírica – declara-me – de mostrar que tudo pode ser embalado, manipulado pela linguagem consumista, até a política e as ideologias».

Pensamento aberto, espírito culto, dinâmico e interventor, Emília Nadal tem saído em defesa de um ensino que «desde os primeiros anos da escola até ao final deve ter educação estética e artística continuada nas mais diversas áreas. Não haverá desenvolvimento educacional, quer no plano individual, quer no coletivo, enquanto não se proporcionar a aprendizagem, a integração e a interiorização dos saberes. Todas as reformas cairão pela base se não houver esse entendimento, essa abertura de horizontes. As disciplinas de educação artística não podem ser consideradas disciplinas fracas» – acentua.
Perentória na ideia de que «a arte educa e desenvolve a sensibilidade de cada um de nós, promove a unidade do corpo e do espírito», Emília Nadal faz um diagnóstico: «O problema não é a falta de artistas, que os temos excelentes nas diversas gerações. O grande problema é que o público está ausente das questões culturais, das artes plásticas, porque não é educado desde muito cedo para uma sensibilidade estética determinante na qualidade da formação do indivíduo.» Deu esse parecer (com Jorge Barreto Xavier) sobre Educação Estética, Ensino Artístico e sua Relevância na Educação e na Interiorização dos Saberes quando pertenceu ao Conselho Nacional de Educação (1998).
Contrária a uma política de subsídios por vezes desestruturada e ineficaz, a pintora de Jardins Impenetráveis realça-me: «Para mim, o principal subsídio é a educação estética e artística desde o primeiro ciclo do ensino básico, prolongando-se pelo secundário.»

Emília Nadal preside desde 2002 à direção da Sociedade Nacional de Belas-Artes (SNBA), tempo que permite um balanço de objetivos conseguidos e de algumas vicissitudes. A maior contrariedade: «A dificuldade na divulgação de iniciativas. O anúncio nos meios de comunicação social é dispendioso. A cobertura ou a referência jornalística dos eventos depende muito do corpo redatorial dos órgãos de informação. Há pessoas empenhadas, outras nem tanto. Mas o que bloqueia a divulgação da arte, o que faz esmorecer a apetência pelas coisas culturais é o divórcio que existe entre a educação e a cultura.»
A SNBA continua a afirmar-se como um espaço independente, gerido por artistas. Emília Nadal gostaria que todos sentissem  aquele lugar como sendo a sua casa. «Que os mais jovens se lembrassem, também, desse lugar e do que podem fazer dele» – adianta. Sentindo o gosto de muitos trabalhos de parceria, inclusivamente na realização de exposições, recorda que é função da SNBA «dar oportunidade aos artistas de ali poderem apresentar os seus projetos.»


MARIA AUGUSTA SILVA



ADENDA EM 10 DE JUNHO DE 2012

Nesta data, no âmbito das celebrações do Dia de Portugal, Emília Nadal foi condecorada com a Ordem do Mérito Civil (Grande Oficial).






Fernando Pires

O terno amante com cara de mau


Vejo-te, rosto sorvendo cada linha, cada título, cada imagem do DN, analisando tudo até à exaustão, ora arreliado com as falhas, ora de riso discreto ao canto da boca pela reportagem bem esgalhada, pela notícia conseguida e cuidada.
Vejo-te, chefe de fibra, implacável, a dar-nos cabo da cabeça, objectivando fazer-se mais e melhor. Vejo-te de secção em secção, garganta a ralhar, mãos a ralharem, zangas duras quando se não cumpria o dever de levar todos os dias aos leitores o melhor jornal do mundo.
Vejo-te ainda com a ternura escondida na aparente frieza de uns olhos silenciosos, que, afinal, sentiam os problemas, a dor dos outros e, discretamente, quase tímidos nos afectos, se ofereciam sem alardes aos companheiros, aos amigos.
Vejo-te, vaidoso na indumentária, no bom gosto com que sempre vestiste o teu corpo, a tua personalidade, sem deixares de sujar os braços nas ramas da velha tipografia, salvando-te depois as novas tecnologias.
Vejo-te, cara de mau, minha sábia raposa, abrindo de repente a porta da famosa Sala Verde, então a da Informação Geral, onde eu, o Zé António e o Silva Pires deitávamos o edifício abaixo a cada golo do Benfica! Alice Vieira fazia o mesmo na Cultura e Espetáculos. E o Albano com o Sporting, outros com o Porto. E lá te calávamos as reprimendas com o Faria Artur a reforçar os camaradas numa de calmaria: "chefe, não se preocupe, o jornal está a andar". E tu, por vezes, noite dentro, enchendo a voz com as óperas do teu coração.
Fernando, meu querido Fernando, ontem como hoje muitos viveram e vivem o Diário de Notícias com total entrega às causas do jornalismo. Todas as gerações têm gente imensa. Tu pertences aos sonhadores que se deram para lá dos limites (não sei se algum dia essa grande senhora, Maria Fernanda, tua mulher, te perdoará tão despudorado adultério, o de um homem fiel amante do DN).
Não me alongo mais: não me grites "estás a atrasar o jornal!". Faltam-me neste tempo forças para ir abraçar-te. Deixo-te as palavras da memória e da alma.
Fazes 80 anos, Fernando. Quero ouvir hoje de ti um só grito: um grito de amor à vida.
Um beijo da tua grata e eterna aprendiz,

Maria Augusta

01/06/2011





Albano Martins

Carta sem data

«A Vida / - essa invenção magnífica / da morte»





Desenho de Jorge Pinheiro

Meu poeta, querido amigo,

Ando há anos para escrever-lhe uma carta sem data. Sem data por não serem de hoje (nem de circunstância) as palavras, "frágeis", naturalmente, que gostaria de dizer. Desculpe-me agora o atrevimento. Comecei a admirá-lo muito antes de lhe conhecer o rosto beirão de searas e frutos, de pássaros e flores silvestres, muito antes de lhe descobrir o olhar solidário e inteligente, a voz nascida do fundo dos afectos, as mãos abrindo-se na alegria da partilha. Eram os tempos de todas as irreverências e utopias, de sonhos ancorados no alento da juventude.
Num chão angolano esperançado no futuro, em pequenas tertúlias domésticas e no lume das Redacções, os apaixonados por artes e letras, amantes da poesia, iam colhendo os livros possíveis, apontamentos de boca em boca, de mão em mão, que significavam toda a nossa fortuna. Tudo demorava a chegar-nos, mas foi por essa ocasião (princípio da década de 70) que uma amiga brasileira me falou do Albano. Decorei depois um poema seu, três versos mínimos que haveriam de tornar-se imensos, únicos no meu caminhar algumas vezes à beira da sombra desconhecida: «A vida / - essa invenção magnífica / da morte.» Inscrevi-os numa sebenta, naquela letra pequenina que torna o silêncio soberano; juntei-os a outros poetas que pertencem à minha respiração e nenhum tempo os anula. Tinha igualmente o hábito de os gravar nas toalhas de papel das esplanadas, entre um café e uma torrada bem amanteigada (o colesterol e as artroses ainda não ameaçavam!). Dali os levava para o mar onde me parecia que se tornavam infinitos ao dissolverem-se nas ondas. De certeza que versos de Camões, Antero, Pessoa, Nemésio, Sena, Ramos Rosa, Sophia, Herberto, Cecília, Drummond, Manuel Bandeira, Alda Lara, Rilke, Eliot, Éluard (quantos mais!), se encontraram na viagem íntima em que os lancei.
Confesso-lhe, todavia: só a partir dos anos oitenta, retornada a Portugal, me relacionei profundamente com a sua obra. Acompanho-a, dá-me felicidade. Nunca me separo de «A Vida / - essa invenção magnífica / da morte» do livro Coração de Bússola. Amiúde, interrogava-me: que poder singular exercia (exerce) em mim tal poema?, independentemente do apreço por toda a escrita do Albano, pelo modo como a depurou ao longo de sessenta anos de carreira literária.
Ao entrevistá-lo para o Diário de Notícias (Julho, 2004) estive tentada a que a primeira pergunta andasse à volta daqueles três versos. Tive pudor. A conversa centrou-se nas suas traduções de Neruda, de líricos gregos, de italianos, focando entretanto o rigor, delicadeza verbal, a melodia amorosa e a sublime síntese do seu fazer poético que já ultrapassa a poesia reunida (1950-2000) na notável coletânea Assim São as Algas. Adiei o desejo. Temi que se desfizesse o feitiço... Andava-me cá dentro, contudo, «uma pergunta / do vento». Não tardaria.
Recorda-se? Aconteceu na longa entrevista que lhe fiz para o álbum Poetas Visitados. Abri o diálogo, precisamente, com os desafios que bússola e coração protagonizam. Apesar disso, resguardei aquele poema, secreto companheiro a chamar-me para a claridade quando a morte se me agarrava, se me agarra, «(...) aos pulsos, aos joelhos.» Consegui no entanto desvendar como entra a morte na natureza dos seus versos solares. A resposta iluminou-me: «(...) a presença da morte na minha poesia é uma forma de esconjuro. Uma tentativa de ab-rogação do absurdo». Compreendi a força desse poema no meu sangue: esconjurar a morte embora saibamos que nascemos destinados à noite das cinzas.
Desculpe-me o registo simples desta carta, gesto afectuoso que, não duvido, o espírito fraterno do Albano acolherá. Outros nomes, com brilho e minúcia, lavrarão nestas páginas o terreno da análise literária, o admirável, sólido e discreto percurso de um poeta maior, a arte do tradutor exímio, o saber vasto do ensaísta e a maneira brilhante como o transmite; falarão do mestre universitário, do homem de superior cultura. Eu reafirmo-lhe o que fui referenciando da excelência da sua poesia: a palavra límpida, mestria na elipse, supremo canto, quer do ponto de vista estético, quer ético. A «vocação do silêncio» é essa cristalina totalidade. Relembro a Antologia da Poesia Grega Clássica que traduziu e organizou, trabalho de grandeza ímpar. Sublinho, também, a beleza poética de Uma Casa à Beira da Floresta para crianças. Nunca o imaginara a navegar as águas da literatura dita infantil, porém não lhe perdoarei se deixar secar essa fonte mágica sem idade.
Que mais acrescentar? O encantamento da obra permanece. O carácter do cidadão, a inteireza de si, a amizade, reconciliam-me a cada instante com o barro. Sempre, sempre direi: «A Vida / - essa invenção magnífica / da morte.»
Bem-haja, Albano.

MARIA AUGUSTA SILVA


in 80 Anos – Albano Martins - álbum antológico editado em 2010 pela Universidade Fernando Pessoa.
(Org. Manuela Trigo e Ágata Rosmaninho).







Jorge Quininha

Um homem de coração aberto


Cruenta, a notícia factual: Jorge Quininha, um dos nomes maiores da cardiologia portuguesa, morreu no Hospital de Santa Marta, em Lisboa, a sua casa de trabalho e dedicação. Ali dirigia o Serviço de Cardiologia com a capacidade e o saber que o tornaram uma referência. Em poucos meses, um cancro silencioso, inesperado, atraiçoou-lhe a força e a esperança de 53 anos de vida e três décadas de entrega à causa da medicina e ao sofrimento dos outros. No último dia de 2005 deixou o lugar onde tudo deu de si em nome dos doentes e em defesa das ciências médicas. O seu corpo voltou à luz da Beira Litoral, à terra-berço, Aveiro, cordão umbilical que nunca cortou. Foi sepultado no Cemitério Sul da cidade.
Depois das penosas linhas informativas, permitam-me as palavras com que tento apaziguar a incredulidade. Da figura alta e esguia, óculos arredondados num olhar límpido, sorriso afável recortado no bigode grisalhado, guardo a face de alguém incomum, um homem de coração aberto, que muitos corações ajudou a (re)viver. Dinâmico, atento à importância da medicina preventiva tanto como à da medicina curativa. Ciente, ao mesmo tempo, de que novos e admiráveis métodos de diagnóstico e tratamento não excluem outras formas de atuação, até porque cada caso clínico é um caso. Sublinhou-me um dia, em entrevista para o "Diário de Notícias", o quanto é " fundamental, sempre e sempre, escutar o doente, esmiuçar as suas queixas, observá-lo. Exames sem uma história clínica bem feita não terão grande utilidade ". Dizia assim. Fazia assim.
Esta arte médica, a de sentir o doente como um ser total, Jorge Quininha exerceu-a de modo invulgar. Morava-lhe nas veias. Herdara-a do pai, Cândido Quininha. Estou a vê-lo entre a Hemodinâmica e os Cuidados Intensivos, ou na consulta de sábado em Santa Marta, moído de cansaço e no entanto incansável: " Atendo toda a gente, quem está a seguir ? " Nunca esquecerei a sua mão no meu ombro, há pouco tempo: " O mais difícil não é pôr um doente bem-disposto, o mais difícil é saber tratar um doente ".
Visito outra vez a entrevista que lhe fiz em Janeiro de 1999. Uma pergunta a par de tantas:
—  Como vai o seu coração?
—  Não tenho razão de queixa. Sofro o stress desta vida. Mas também não há alegria mais compensadora do que salvar a vida de alguém.
Hoje escrevo, neste silêncio dorido: ainda bem que a memória vive.

MARIA AUGUSTA SILVA



Sérgio Amaral

Metáforas do barro provocador


Nos trabalhos do ceramista Sérgio Amaral existem códigos e mensagens que se articulam de modo desconcertante. É uma arte insubmissa, sadiamente provocadora, a deste ser atento ao mundo, por isso inquieto, por isso sensível. Sempre a surpreender-nos, como aconteceu na última Feira Internacional de Artesanato (FIL), onde justamente ganhou o 1º prémio de Artesanato Contemporâneo com a peça aqui reproduzida.


O barro ganha nas mãos de Sérgio uma energia única, gerando uma espécie de choque entre a matéria e a forma. Deste jeito, a expressão metafórica realiza-se num discurso que subtilmente se desloca da zona terrena em direção a uma profundeza filosófica ao mesmo tempo tumultuosa e reflexiva. Há na plasticidade de Sérgio Amaral uma interioridade que não abastarda a ironia e por meio dela assume uma atmosfera de bifurcações que se avizinham do abismo para nesse limite flutuarem os grandes questionamentos ontológicos, criando espaços, criando margens para a intervenção do outro; para a intervenção de quem olha e procura decifrar o imaginário do artista, essa constelação carregada de psicologismo e meditação mas igualmente próxima de um impulso criador que tem por matriz o alarme concreto do corpo e do espírito perante os absurdos, os pesadelos, os fantasmas e, não raro, o patético da realidade humana.
As figuras que nascem do engenho de Sérgio Amaral, sejam Evas ou São Pedros, lavradores ou pastoras, músicos ou mulheres grávidas, estão para além dos comuns  barros populares. Ao longo do tempo, Sérgio, homem das Beiras (nascido em Santa Luzia, Mangualde), foi tecendo, apurando, uma linguagem estética, uma sensualidade estética, que o afirmam em Portugal e no estrangeiro, representado em coleções particulares e em lugares como o do Museu Nacional do Azulejo. Da obra de Sérgio Amaral, avultando o Barro Negro, permitimo-nos sublinhar os cristos. Sempre a iconografia crística, por séculos e séculos, inspirou artistas, nomes maiores como os de Bosch, Da Vinci, Rembrandt, Giotto, Rouault, Chagall, Dali ou Picasso. À sua dimensão, Sérgio Amaral (o mesmo aconteceu, por exemplo, com Rosa Ramalho) dá-nos um Cristo que é parte de nós, da nossa telúrica respiração. Todos os barros de Sérgio têm uma magia libertadora mesmo quando fazem a nomeação de angústias, de rupturas e perplexidades numa desconcertante articulação de códigos e mensagens.

MARIA AUGUSTA SILVA





José Saramago

Um ser inquieto, um homem de buscas

saramago1

Saramago na redação do DN, tendo a seu lado Maria Augusta Silva
e o diretor Mário Bettencourt Resendes

 

saramago 2

Pedi a Saramago que escrevesse no meu computador uma frase
dirigida a todos os jornalistas do "Diário de Notícias"

 

  "Procurem a verdade. Eu também a procurava". Creio que esta frase sintetiza o ser humano cheio de inquietação e de buscas que era José Saramago. A frase foi ele mesmo que a escreveu no meu computador, a meu pedido, como se dirigindo a uma redação a que pertenceu, no dia em que, já Nobel, visitou o DN em 1998. A obra dele fala por si. Enquanto homem foi um ser inquieto com ideais e ideias próprias, que independentemente de os partilharmos ou não, sempre provocou e despertou a polémica. E ainda bem que assim foi. Os seus livros, as suas intervenções têm quase sempre o condão de espevitar o pensamento. Polémico também na própria literatura, goste-se ou não do estilo, não se pode negar a excelência da sua escrita. Apesar de nunca ter privado com ele, guardo do momento em que acompanhei nessa visita a memória de uma pessoa muito afável. E confirmei-a depois quando o entrevistei a propósito do lançamento da obra A Caverna, que não é dos seus melhores livros. Lembro-me de me ter concedido uma longa entrevista, apesar de estar com uma agenda muito apertada, o que lhe era sempre recordado pela Pilar, sentada ao lado. Disse-lhe: "Pilar, sossega, vou dar à Maria Augusta o tempo que ela precisar". Interpretei esse gesto como sinal de grande respeito pelo trabalho de um jornalista.


paragImproviso ditado pelo telefone, para o DN, em 18 de Junho de 2010, dia da morte de José Saramago, e publicado no dia seguinte.


MARIA AUGUSTA SILVA




Mário Bettencourt Resendes

Em nome da vida

Atravessavas a Redação do DN, passo largo, tão largo como o sorriso inteligente que soubeste cultivar. Deixavas-me um beijo na cabeça, um dia agarrei-te o braço: tenho uma ideia para um trabalho, correr o País de ponta a ponta, em nome da vida, aprofundar reportagens sobre a luta contra o cancro, no sentido de o jornal ajudar a uma reflexão séria, porque o cancro não acontece só aos outros, ou seja os outros somos todos nós. Sublinhei que ao cancro chamaria cancro, não "doença prolongada" ou "doença que não perdoa".
Tu, firme: "Começa já". A primeira peça saiu a 1 de Outubro de 1994. Abriu-se a série com as crianças. Sugeri o título de primeira página: A Coragem dos Inocentes. Logo uma agitação bem à moda dos jornais. Argumentava-se (ontem como agora, certamente) que era preciso a força dos números, mortes, estatísticas. Contrariei: Pessoas e sofrimento não são números. Meu querido Mário, ao longo de trinta anos de companheirismo guardei no mais fundo da minha memória o abraço do director, do colega e amigo acolhendo, por fim, A Coragem dos Inocentes.
Pertenceste, Mário, felizmente, à sabedoria e à grandeza do género humano dos imperfeitos. Por isso tiveste (tens) luz própria. Imensa. E hoje, ao procurar dar às minhas lágrimas de perda o equilíbrio das tuas análises, sinto que o silêncio da tua voz faz a entrevista mais difícil do teu caminho, essa de todas as perguntas sem respostas. Mas não duvido que ao interrogares a morte lhe colocarás sempre à frente a palavra coragem, em nome da vida.

MARIA AUGUSTA SILVA
In Diário de Notícias, 3. Agosto.2010


Texto escrito no dia da morte do jornalista Mário Bettencourt Resendes, histórico diretor do "Diário de Notícias




Bettencourt Rodrigues

Minutos depois de conhecida a notícia, a Redação do "Diário de Notícias" celebra a atribuição do Prémio Internacional de Jornalismo Rei de Espanha a uma jornalista portuguesa, Maria Augusta Silva,
à época "grande repórter" deste jornal. Em primeiro plano, o diretor Mário Bettencourt Resendes.




Amélia Rey Colaço


O primeiro ramo de flores

     (TEXTO ESCRITO DOIS ANOS ANTES DA MORTE DA ATRIZ, EM 1990)

Nasceu nos fins do século XIX. A 2 de março completará 85 anos de vida. Com uma infância feliz. Com uma juventude decidida para o palco onde fazem eco as «pancadas» de Molière, de onde lhe vieram alegrias e tristezas e onde honrou, ao longo de seis décadas de vontade, de competência, de arte, empenho e amor, a cultura portuguesa.
Esta linear realidade tem um nome: Amélia Smith Lafourcade Rey Colaço, que, por casamento, adotou o apelido de outro consagrado ator e empresário teatral, Robles Monteiro.
O público e as diferentes gerações de atores, quer em Portugal quer noutros países (França e Brasil, por exemplo), receberam dela quanto é possível dar-se de talento e de saber, de ajuda e de companheirismo, numa entrega que extravasou o que em si mesmo já seria a linha gráfica do máximo admissível.
E o teatro português, em particular, deve ter consciência disso, pesem embora as neblinas que, não raro, quiçá por mero comodismo, pretensas filosofias ou ideias baralhadas, atrofiam a memória e o entendimento das coisas.
De olhos claros, redondos e despertos, Amélia Rey Colaço mantém a dignidade com que se fez mulher, recordando, com ternura e gratidão, a vida e a cultura que os pais lhe insuflaram (a ela e a mais três irmãs).
Não esconde que nasceu em berço de oiro, numa casa romântica (à Lapa) do tempo em que Lisboa ainda não era a cidade a crescer alvoraçada entre asfalto e blocos de cimento. Mas a sua árvore genealógica tem raízes espalhadas pelo Mundo. A mãe nascera em Valparaíso, no Chile; o pai nasceu em Tânger (onde a família Colaço era representante do corpo diplomático de Portugal em Marrocos). Conheceram-se em Berlim, onde vivia a avó materna de Amélia. Uma dócil avó, de origem francesa, casada em segundas núpcias com um alemão. O encontro deu-se na ocasião em que Alexandre Rey Colaço estudava música naquela cidade alemã, tendo, já então, ganho um certo prestígio artístico. Vieram a casar-se em Londres e acabaram por fixar residência em Lisboa.
Dona Amélia foi bem-vinda a um lar de culto pela arte. Julgara, a dado momento, ter apetência pela música, e foi para Berlim aprender a tocar violino. Regressou (aos 14 anos) com uma vocação inteiramente definida: o teatro. Os pais compreenderam-na, todavia, algumas pessoas da família e das suas relações achavam que a carreira teatral talvez não fosse o melhor caminho. O pai resolveu-se a tomar alguns conselhos, Manuel Arriaga (o primeiro Presidente da República Portuguesa), grande amigo seu, manifestou-se a favor. Conhecia as virtudes de Amélia desde criança. Ninguém lhe deveria tolher os passos.
Pouco tempo decorrido, Amélia Rey Colaço vê-se integrada na companhia do Teatro República (depois Teatro S. Luis), tendo por mestre Augusto Rosa. Começou a ensaiar o papel (protagonista) da peça Marianela, extraída de uma novela de Perez Galdós. O mestre estava animado com os progressos da sua pupila. Um dia, porém, Afonso Lopes Vieira foi assistir a um dos ensaios e, no final, fez sentir à nova estrela que tinha de libertar-se da tendência a imitar o seu mestre em certas inflexões. Dona Amélia ficou a pensar no assunto. Escreveu uma carta a Augusto Rosa, dizendo-lhe que ia procurar estudar, sozinha, o papel que lhe cabia desempenhar. O mestre não gostou muito, mas rendeu-se. A noite de estreia era chegada: 17 de Novembro de 1917, a um sábado.
Amélia Rey Colaço enfrentava, receosa, as luzes da ribalta. E o receio foi vencido pelos aplausos do público, que marcavam o êxito conquistado. Augusto Rosa entregou-lhe o primeiro ramo de flores, que assinalou o começo de uma carreira fulgurante; uma carreira, uma vida de enormes sucessos e de muitos sacrifícios. De alguns desencantos, também.
Uma carreira que merecia ter logrado um adeus ao palco com a força incontroversa da grande «Velha Senhora». Ficou-se, no entanto, pela estrada esse projetado adeus com a peça Ensina-me a Viver. Mas dura a verdade de que Amélia Rey Colaço ensinou, de alma inteira, a viver o teatro do nosso país.

MARIA AUGUSTA SILVA


TAMBÉM NESTE SÍTIO:
ENTREVISTA A AMÉLIA REY COLAÇO