Os grandes olhos verdes dos sete anos de Hélio conhecem todos os recantos daquele moderno 12.° andar do Instituto Português de Oncologia do Porto. Anda sempre a girar com a educadora.
Voz familiar. Perscrutadora. A de Sodré Borges, responsável pelo Serviço de Oncologia Pediátrica. «Então, Hélio, como vais? Onde está o Diogo?»
Hélio e Diogo são amigos inseparáveis. Juntos no mesmo quarto. Conversam muito. Camas 11 e 13 para eles, lado a lado, de entre as 26 que servem aquela unidade de Pediatria, com lugar para o acompanhante, 24 horas por dia. Diogo recostara-se num cadeirão da sala de brinquedos e distraía-se com os bonecos animados da televisão.
Marco adormece, vencido pela anestesia. Faltam cinco minutos para a uma hora da tarde. Nove anos com muitos sonhos perturbados. As mesas do bloco operatório do 2.° piso do Instituto Português de Oncologia de Francisco Gentil, em Lisboa, cobrem-se de um tecido amarelo luminoso, macio, como se o sol entrasse ali, também ele a renovar o alento. Inicia-se a recolha da medula óssea para o auto transplante com que irá tentar dominar-se a doença desta criança da Guarda, enviada pelo Hospital Pediátrico de Coimbra.
A história de Inês escreve-se, antes de mais, com esperança. Motivou o primeiro transplante, em Portugal, de células recolhidas do cordão umbilical de João Miguel, o irmão. Aos quatro anos, Inês luta contra a leucemia mieloide crónica, detetada há dois, após ter-se verificado uma resistência do organismo aos antibióticos prescritos para curar uma amigdalite. Com o decorrer do tempo, é fundamentado e imenso o otimismo da equipa dirigida por Manuel Abecassis, que levou a cabo esta autêntica "aventura" na Unidade de Transplantes da Medula do IPO de Lisboa.
Nove da manhã. Manuel, de 60 anos, entrara no bloco operatório dos Serviços de Neurocirurgia do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Mais de cinco horas para fazer cair o "inimigo": um tumor de cinco centímetros.
O neurocirurgião José Pratas Vital, pioneiro em Portugal
da técnica exploratória denominada neuroendoscopia
(Caricatura de ANTÓNIO SANTIAGO por especial cortesia)
Uma neuroendoscopia no Hospital de Egas Moniz. Cirurgia a cargo de uma equipa de neurocirurgiões e urologistas, dirigida por Pratas Vital e Hélder Monteiro. Belo-monstro, o tumor "desnudado" pelo endoscópio. Que paradoxo! Como podem imagens tão espetaculares espelhar o "rosto" de tamanho parasita ?
A leitura do diário de Paulo impressiona. A partir dele, Daniel Sampaio investigou este caso. Paulo, 22 anos, inteligente, sensível, procurava um sentido para a vida, «facto que parece ter conseguido em contacto com a natureza». Fez umas férias em Sintra e tencionava regressar a Chaves numa sexta-feira, 23 de Agosto de 1991. O suicídio dá-se entre essa sexta-feira e sábado.
A familiaridade é um afeto comum a todos os serviços de oncologia que contactámos. De norte a sul. O doente oncológico fica ligado para sempre à instituição que o trata. Os especialistas fazem parte da sua esperança de vida.
David Mourão-Ferreira por Francisco Simões
A cidade é corpo e alma. Às vezes mal-amada. Mas não pelos poetas. Esses, descobrem-na como quem procura a luz e as sombras, o beijo e os rostos, para bordar a memória, fermento do melhor pão. E Lisboa, no culto e no pecado, na grandeza como nas fragilidades, é essa musa oferecida aos olhos de quem a canta. De quem a sabe cantar no verso (e no reverso) como David Mourão-Ferreira.
Autoestrada do Estoril adiante, portagem paga, direção Bicesse. Vai-se andando e alguém há-de saber indicar qual é quinta de Almada Negreiros. Quando demos conta, já estávamos em Manique. Tarde soalheira. Gente à conversa no largo central. Fala-se com prazer. Todos se conhecem. Quando alguém estranho à "comunidade local" aparece, acercam-se e interrogam:
— De onde são vocês?
— Somos repórteres do Diário de Notícias.
— Ah!, muito bem.
Regalado ao sol, um homem de rosto cheio, sentado num banco escavado em muro antigo de pedra.
Solícito, sorridente, maneja a bengala de madeira escura em auxílio dos automobilistas que se cruzam ali. Tem ar de quem conhece palmo a palmo estes sítios.