Os dinossáurios não passaram de moda...
... nem estão em hibernação. O que, em meu entender acontece, é que há menos interessados a falarem deles nos media. Pelo contrário, no recato da investigação científica nunca houve entre nós tanta produção e isso alegra-me bastante. Sem falsa modéstia, devo dizer que a semente que ajudei a lançar à terra, não como especialista (que toda a gente sabe que nunca fui) mas como divulgador pela palavra escrita e falada e como responsável pelas muitas exposições levadas a efeito no Museu Nacional de História Natural, germinou e é hoje uma "árvore" a dar frutos. Não obstante a tradicional escassez de financiamentos, nunca tivemos tanta gente a trabalhar, a tempo inteiro, em paleontologia e paleobiologia dos dinossáurios. Nunca, como nos últimos anos, conduzimos ou participámos em tantas escavações no país e no estrangeiro. Nunca se publicou tanto sobre este tema.
Na continuação de uma linha com cerca de uma dezena de grandes exposições, que inic
iámos em 1992, com "Dinossáurios regressam em Lisboa", destaca-se, no Pavilhão do Conhecimento da Agência Ciência Viva, na qual estive envolvido, uma exposição sobre o celebérrimo Tyrannosaurus rex.
O que está, na verdade, em hibernação, é a vontade política dos responsáveis das administrações central e local em levar a cabo, concluir ou prestar assistência de manutenção a importantes projectos que lhes entreguei, alguns deles há muitos anos. São, nomeadamente, os casos da grande jazida de "Pego Longo", perto de Carenque, com projecto de arquitectura aprovado pela Câmara Municipal de Sintra, em 2001, completamente deixado ao abandono (tema a que se dedica espaço neste livro); da jazida da "Pedreira do Galinha", visitável, cuja musealização não foi concluída e que, por falta de manutenção, se encontra num estado de degradação preocupante; e da jazida de "Vale de Meios" (Alcanede, Santarém), à espera de melhores dias.
De realçar que a jazida de Pedreira do Avelino foi entretanto musealizada, como Monumento Natural, pela Câmara Municipal de Sesimbra.
O alto valor científico, o correspondente interesse pedagógico e a monumentalidade destas jazidas justifica o investimento que nelas se possa fazer (algo insignificante face ao que já foi feito), na certeza de que o seu potencial interesse turístico o compensará amplamente.
EXCERTOS DO PRIMEIRO CAPÍTULO
«Alguns agricultores da região de Torres Vedras têm em casa ossadas de dinossáurios e, receando perderem as terras, dissimulam com cedros e urzes, nos campos agrícolas, os achados de maiores dimensões». Foi com estas palavras que me chegou, por via telefónica, a notícia. O meu informador, antigo amigo residente naquele concelho, advertiu-me que a reportagem, se eu a quisesse realizar, não seria fácil: «Ninguém está interessado em falar».
Conheciam-se nos meios paleontológicos os casos pontuais de ocultação de vestígios pré-históricos em zonas rurais. No concelho de Torres Vedras, porém, esses casos pareciam adquirir uma extensão que ninguém imaginara. A oeste da vila começava a detetar-se a ponta do icebergue.
Tive oportunidade, nesse mesmo dia e na Redação do Diário de Notícias, de abordar o assunto com o meu diretor, Mário Bettencourt Resendes, que não escondeu o espanto e me aconselhou a trocar impressões com um ilustre amigo do jornal, o Professor Galopim de Carvalho. Seria mesmo verdade? Ossadas de dinossáurios escondidas nos terrenos agrícolas? O então diretor do Museu Nacional de História Natural nem me deixou concluir a pergunta: «Não só é verdade como acontece também em outras regiões do País. Eu bem compreendo os agricultores. O meu amigo, naquelas circunstâncias, procederia da mesma forma. Para eles constitui um azar enorme darem conta de um achado cuja natureza inusual nem sabem definir. O que sabem muito bem é que o facto, sendo propagado, se converte num pesadelo. Deixam de poder cultivar naquela área por um tempo imenso, chega gente esquisita que começa a esventrar as terras, sofrem prejuízos que ninguém compensa minimamente, a começar pelas entidades municipais. Isto não significa que concorde com o secretismo. Claro que não. Creio que o tratamento jornalístico da situação poderá sensibilizar os responsáveis das administrações central e local para o valiosíssimo Património Natural que não é admissível persistir escondido, pelo contrário urge salvaguardá-lo e valorizar o mais possível, todavia com pedagogia e sensibilidade social».
Ficou prometida pelo emérito catedrático uma entrevista alargada sobre o tema. Antes, eu iria "ao terreno" em busca de ossos pré-históricos. Parti na semana seguinte, na companhia do camarada da fotografia, Miguel Madeira, devidamente alertado para a conveniência de usar a câmara com a máxima discrição.
Secretismo confinado aos terrenos agricultáveis
Agricultor da aldeia de Moçafaneira mostrando dois dos mais
significativos ossos de dinossáurio encontrados no seu terreno.
FOTO: MIGUEL MADEIRA / CORTESIA DIÁRIO DE NOTÍCIAS
Falava cheio de convicção e com a vivacidade de quem presenciou o episódio, há milhões de anos: «O bicho encalhou num banco de pedra, aqui, neste ponto, por debaixo desta terra. Ficou entalado, o desgraçado, e até hoje...»
Não demorei a constatar que o secretismo dos achados se confinava aos terrenos agricultáveis. António Luís Antunes, 48 anos, agricultor de Moçafaneira, serena aldeia a oeste de Torres Vedras, manifestava com veemência uma outra certeza: deveriam existir naquele subsolo tesouros que ninguém conseguiria avaliar. Queria ele dizer que em muitos outros bancos de pedra permaneciam enleados outros «monstruosos lagartos» da mesma natureza, em número incontável, à espera de serem descobertos. «Mas dar com eles é que é o problema. É um acaso, como aconteceu comigo. Valeu que estava com os ossos quase de fora...».
Em rigor, os tais «bancos de pedra» são antiquíssimos estratos de arenitos que oferecem o aspeto da argamassa feita com saibro. Em relação ao «bicho», o vocábulo conferia. Tratava-se, na realidade, de um bicho medindo seis metros de comprimento por três de largura, um crânio achatado e de pequeníssimas dimensões, uma cauda longa, pontiaguda, com espigões ameaçadores na extremidade, um pescoço comprido, quatro pernas grossas sustentando um tronco rotundo, descomunal, e, por fim, um dorso bizarro, enfeitado com uma fiada dupla de geométricas placas ósseas assemelhando-se a escamas eriçadas. Um senhor dinossáurio. Viveu durante o Jurássico Superior, há cerca de 120 milhões de anos, ou mais.
O paleontólogo Pedro Dantas classificá-lo-ia, ao cabo de uma morosa observação às primeiras ossadas desenterradas, como um Estegossauro do género Dacentrurus (que significa «cauda pontiaguda»), do grupo dos Ornitisquianos. «Era um sáurio herbívoro», referiu-me aquele especialista. «Eventualmente pacífico, deslocando-se em manadas, as placas e espigões no dorso e na cauda compunham, talvez, um dispositivo dissuasor em relação aos predadores, para além de terem uma função de controlo térmico».
O agricultor António Luís não disfarçava o júbilo por ter estado na origem de um relevante acontecimento paleontológico, pois havia sido ele quem primeiro instigara as atenções sobre o achado, quando procedia à terraplanagem de uma área dos seus terrenos. Possibilitou, assim, a recolha de um conjunto de ossos de dinossáurio que se revelaria o mais vasto e completo de quantos foram encontrados no concelho de Torres Vedras. Tais descobertas são, aliás, em número que ascende a largas dezenas, desde o princípio do século XX. Nunca, porém, fora possível reunir uma quantidade tão elevada de fragmentos pertencentes a um único animal.
António Luís, um homem da terra, simples, generoso, franco. Ainda havia quem o tratasse por Patrão, alcunha provinda dos tempos de ouro da equipa local de futebol: «Eu era o capitão e andava tudo na linha...» Bom conversador, espírito vivo, ia discorrendo sobre fósseis, dos quais possuía exemplares recolhidos durante as lavouras. «Este bivalve» – exibia com entusiasmo o que parecia ser uma pequena pedra escura – «viveu há milhões de anos, é da época do Jurássico».
Tinha igualmente o prazer da leitura. Confessava que a melhor prenda que lhe podiam dar era um livro. A paleontologia, em resultado dos acontecimentos que protagonizara, converteu-se num tema predileto sobre o qual gostava de conversar. Mostrava-se indignado com o comportamento de alguns habitantes da região que, sabendo existirem nas suas propriedades jazidas importantes, por vezes em espaços adversos ao cultivo, mesmo assim não as divulgavam. Pior do que isso, escondiam os achados em casa ou disfarçavam-nos no terreno. A escamoteação durava há anos, era conhecida nos meios arqueológicos. Depoimentos que recolhi ao tempo permitiam avaliar em pelo menos meia dezena as situações de ocultação de vestígios de dinossáurios na região de Torres Vedras, sobretudo nas povoações sobranceiras à ribeira do Cadoiço. Próximo de Bordinheira, por exemplo, registavam-se dois casos de flagrante dissimulação por meio do plantio maciço de urzes, uma nota dissonante num terreno de lavoura. Conhecidas pelo nome de "urzes-das-vassouras", estas plantas apareciam nos locais, não muito distanciados entre si, onde dois anos antes haviam aflorado, durante os trabalhos agrícolas, vértebras de grandes dimensões.
António Luís estava ao corrente de um rol de ocorrências similares, que reprovava energicamente. Tão-só o desejo de não quebrar as boas relações de vizinhança influíam na sua atitude de passividade, mas ansiava que «pessoas instruídas, com conhecimentos, consigam fazer ver a esta gente que não está a agir bem». Pediu-me que escrevesse no jornal isso mesmo, o que fiz, mas descrente da eficácia.
Um medo ancestral
As ações de sensibilização das populações eram planeadas pelas duas coletividades que empreenderam as escavações paleontológicas em Moçafaneira – o Espéleo Clube e a Associação de Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras (ADDPCTV). O antigo presidente desta associação, José Pedro Sobreiro, professor de educação visual e figura admirada no meio cultural da cidade, realçou-me que a situação advinha sobretudo de uma grande falta de informação. «As pequenas comunidades agrícolas, que vivem em exclusivo do que a terra lhes dá, têm um medo ancestral de poderem ficar sem essas terras. Se se descobre numa propriedade algo que subitamente origina um grande movimento de interesse por parte de estranhos, logo pensam em expropriações e coisas assim. Os agricultores receiam, no mínimo, serem impedidos de fazer as plantações regulares e decidem, então, silenciar e esconder».
A temática arqueológica e, sobretudo, paleontológica, no âmbito restrito dos dinossáurios já tinha apreciável ressonância mediática. As populações rurais reagiam com curiosidade aos achados e levavam-nos para casa. Vértebras de proporções avantajadas ficavam expostas na cozinha, sobre a chaminé, ou decoravam as paredes das caves. Depois, nem isso, porque, como me explicava o meu guia, «os agricultores tomam conhecimento, em especial pela televisão, das agruras por que têm passado outros proprietários que comunicaram descobertas importantes». Começaram a recorrer à ocultação dos vestígios e quantas vezes não terão precipitado a destruição dos mesmos. Relatei pessoalmente todos estes factos ao presidente da Câmara Municipal de Torres Vedras. Com mau humor e enorme frieza limitou-se a responder que não competia à autarquia exercer esse género de «pedagogia científica» junto da população rural. A audiência demorou dois minutos e o repórter de imagem ficou à porta, o que não obstou ao registo fotográfico da praxe (à sorrelfa, bem entendido).
Ossos «a bom recato»
António Luís Antunes, uma meritória exceção à regra, começou por atemorizar-se nos dias sequentes à descoberta dos primeiros ossos. Muitos vizinhos alertaram-no para o efeito prejudicial que adviria para ele próprio e para os proprietários da zona da sua decisão de divulgar o achado. «Os meus ossos estão a bom recato, lá na cave, e lá vão continuar», confidenciou um deles. À noite, no café de Moçafaneira, tentavam dissuadi-lo: «Vais meter-te numa grande carga de trabalhos. Chegará o momento de quereres plantar e mandam-te dar uma curva». O agricultor, contudo, mostrou-se determinado e chegou a ripostar: «Se fosse necessário eu oferecer mil ou dois mil metros da fazenda para fazerem ali um museu, sentia-me até muito orgulhoso. Mas ninguém compreendeu a minha atitude. É gente dura. Sabe lá os olhares que caíram sobre mim, quando começou a chegar o pessoal para as escavações...»
Não Matem os Dinossáurios
Autor: Pedro Foyos
Capa: Nuno Farinha
Editora: Prelo
100 páginas
Preço: € 12,60