Uma forma eficaz de avaliar a importância e a influência de uma determinada obra (um livro, um filme, por exemplo) será a de conceber a hipótese da sua inexistência. O exercício, aplicado ao domínio da ficção científica, revelar-se-ia concludente. Presuma-se: a Lua sem as expedições imaginadas por Verne e Méliès; ou o mito da criação científica de vida humana sem Frankeinstein; ou a automação do mundo moderno e a coexistência homo-machina sapiens sem os robots de Isaac Asimov; ou a ideia de espaço infinito sem 2001: Odisseia no Espaço; ou as nossas boas-vindas a seres extraterrestres sem Encontros Imediatos do Terceiro Grau...
Henri Laborit, o célebre investigador dos mecanismos dos seres vivos, criticava, por outro lado, o autor de uma história da biologia por haver esquecido, no início do trabalho, uma referência aos mais longínquos pioneiros, a começar por Aristóteles: «Seria uma obra perfeita, mas as omissões tão perturbadoras transformam-na num comboio inviável, desarticulado, movendo-se sem locomotiva».
Sigamos por esse caminho. Também a ficção científica tem a sua pré-história: a «locomotiva» de Laborit. Será esse o ponto de partida. Ao mesmo tempo, procuraremos eleger as hipotéticas e mais inconcebíveis inexistências. Para tanto, ensaiaremos aqui o «jogo da Arca de Noé», popularizado há meio século pelo jornalista inglês Walter Gillings, director de Tales of Wonder, cujos leitores eram convidados todos os anos a salvar de um dilúvio a melhor produção inserida no magazine (mais tarde, esses contos seriam antologiados num esmerado volume, oferecido aos participantes).
O jogo, atualizado (a começar pelo nome da embarcação, consentaneamente alterado para «Nave») consiste em supor que a profecia do fim do mundo irá revelar-se verdadeira. O apocalíptico acontecimento já é do conhecimento dos mais altos dirigentes do planeta. Uma dezena de políticos e outros tantos cientistas têm vivido nas últimas semanas num estado de angústia e pânico. Uma entidade mais serena revela, porém, a existência de uma «Nave de Noé» em condições de viajar no tempo, ou tentando aproar a uma outra galáxia. Levaria a bordo, para além dos bíblicos animais acasalados, um tesouro-repositório muito seletivo do que de melhor a humanidade produziu até ao final de século XX. Um mosaico da obra humana, constituído por centenas, talvez milhares de fragmentos resplandecentes. Os compartimentos são de dimensões variáveis em função da importância atribuída aos géneros. A literatura de ficção científica foi despachada para um esconso do porão, secção das culturas suspeitas, tolerando-se-lhe uma diminuta representação: «Cinco livros de autores pioneiros, nem mais uma página e acabou-se a discussão!» — impôs o comandante Noé. O preconceito do costume.
O jogo implica uma regra imperiosa: o proponente obriga-se a justificar o motivo por que conferiu a cada uma das obras a magna qualidade de testemunho a preservar, excluindo, nesse ato penosíssimo, muitos e muitos outros.
Aqui fica o registo do autor destas Grandes Ficções do Outro Mundo.
CYRANO DE BERGERAC
"HISTÓRIA CÓMICA DOS ESTADOS E IMPÉRIOS DA LUA"
País: França"
Matriz temporal: século XVII"
Fundamento da proposta:"
Não se ignora o precário pioneirismo do autor na história da ficção científica. Concebeu viagens à Lua e ao Sol mediante engenhos humanos, mas a verdade é que as personagens não chegaram a utilizar esses meios, o que não deixa de ser frustrante. É certo, também, que as situações narradas são episódicas, a um nível de curiosidades de cariz satírico, muito distanciadas da identidade das futuras ficções globalmente estruturadas com o objetivo de contarem uma história. Apesar disso, deve reconhecer-se-lhe a excelência de haver sido o primeiro escritor a considerar viagens de terrestres a outros planetas, por intermédio de artefactos humanos, ou seja, sem ajuda divina ou de fenómenos sobrenaturais, acrescendo a circunstância de todos os intervenientes (autor, inclusive) estarem bem acordados e não a sonhar como dantes acontecia. Crê ainda o proponente que a inclusão desta obra na Nave de Noé representa a melhor e mais oportuna forma de homenagear a parte da humanidade que nos séculos e nos milénios anteriores sonhou alcançar as estrelas.
MARY SHELLEY
"FRANKENSTEIN OU O MODERNO PROMETEU"
País: Inglaterra
Matriz temporal: séculos XVIII / XIX
Fundamento da proposta:
Presumo que a Arca de Noé não possa deixar de acolher este livro de Mary Shelley — a jovem que em 1816 criou Frankenstein. A célebre novela, publicada em 1818, quando a autora tinha apenas vinte anos, é considerada a primeira ficção científica de sempre, se se excluírem as abordagens esporádicas de Cyrano e de um outro francês, Jean-Baptiste Cousin de Grainville, que em 1805 publicou uma obscura história intitulada Le Dernier Homme.
A obra de Shelley possui uma dimensão apreciável. É verdadeiramente precursora ao refletir as novas descobertas da ciência e da tecnologia. Mary Shelley nasceu em 1797, quando ainda era vivo Luigi Galvani, o famoso anatomista italiano cuja descoberta da eletricidade dinâmica era um tema que continuava a empolgar os cientistas de toda a Europa. Galvani observara que os músculos das pernas de uma rã dissecada se contraíam repentinamente quando uma faísca proveniente de uma máquina de eletricidade estática as atingia, ou quando um bisturi metálico lhes tocava enquanto a máquina estava a funcionar, mesmo não havendo contacto direto com as faíscas. Descobriu, então, que os músculos das pernas da rã reagiam, na ausência total de faíscas elétricas, desde que contactassem em simultâneo com dois metais, como o ferro e o latão. Mais tarde, um outro cientista italiano, Alessandro Volta, demonstrou que dois metais diferentes podiam originar uma corrente elétrica. Já não se duvidava, no princípio do século XIX, que a eletricidade tinha alguma conexão misteriosa, mas aparentemente íntima, com a vida. Os cientistas mais ousados começaram a especular sobre a possibilidade de criação científica de vida.
Também a jovem Shelley, que conhecia as investigações de Galvani e de Volta, pensou no assunto. Mas foi mais longe. Muito mais longe. Concebeu uma criatura enorme, humanoide, criada artificialmente. O tema pareceu-lhe excelente para um romance científico. A figura central do enredo era Vitor Frankenstein, um inquieto anatomista (como Galvani) que decidiu empreender a experiência limite de infundir vida a um corpo inteiro e não apenas a um músculo isolado. A esse plano prodigioso acrescia a ambição de conferir à nova forma de vida um carácter permanente, não transitório.
A genialidade de Mary Shelley não se confinou ao pioneirismo do tema. Poderia ter escrito uma banal ficção de terror gótico, como era recorrente na época. Preferiu ir às raízes filosóficas e metafísicas do mito, o mito prometeico do homem que ousa franquear o território divino e se torna escravo e vítima do ser que criou. Exercício literário de ressonância goethiana, revela a profundidade das mais ancestrais angústias e aspirações humanas sem deixar de constituir, como realização ficcional, uma obra arrebatadora.
A tese não só permanece viva no imaginário universal como parece adquirir perturbantes indícios de seduções nada ficcionais. Todavia, é diminuto o número de pessoas que leram o livro. Melhor fortuna teve Frankenstein no cinema e na televisão, com uma prole de duas centenas de títulos. Infelizmente, continua a sofrer estropiações grosseiras que o desterram sem piedade para as profundezas dos horrores abjetos.
Este é, efetivamente, na história da literatura de ficção científica, o primeiro marco sólido, consistente, incontestado. À margem das inúmeras discussões académicas sobre o que é e não é ficção científica, verifica-se uma grande convergência na atribuição dos louros a este livro. Além do pioneirismo temático merece distinção quanto à qualidade literária. Por último, o proponente não esconde que influiu na escolha a circunstância de esta representar a única oportunidade de incluir, em tão seletivo lote da Nave de Noé, um autor do sexo feminino.
JULES VERNE
"DA TERRA À LUA"
País: França
Matriz temporal: séculos XIX /XX
Fundamento da proposta:
O proponente admite que esta seja a mais controversa das suas escolhas e reconhece que a inclusão de Verne no presente lote obedeceu a um ímpeto sentimental. À semelhança do que aconteceu com milhões de pessoas no mundo inteiro, foi este autor quem lhe proporcionou o primeiro contacto com uma obra literária. E como desconsiderar o facto de ter sido, para sucessivas gerações de leitores, o mais popular romancista? Ainda hoje, aliás, o público “leigo” associa predominantemente a ficção científica ao nome de Verne. Havia que escolher um título. Qualquer um serviria, de entre a prolixa bibliografia verniana. Optou-se por aquele que, como nenhum outro, identifica o conceito de «antecipação científica». A invenção do futuro transcende, nesta obra, a condição especulativa de um exercício de ficção. Passou a representar, um século depois, a própria realidade.
É bem verdade que Jules Verne (Júlio, na intimidade portuguesa) está literariamente sepultado no século XX. Todavia, não é possível ignorar tratar-se do mais clássico dos autores de referência universal da ficção científica.
H.G. WELLS
"A MÁQUINA DO TEMPO"
País: Inglaterra
Matriz temporal: séculos XIX /XX
Fundamento da proposta:
Recomeçou com este autor, em 1895, a história da ficção científica. Wells é, como a personagem central da obra proposta, um Viajante no Tempo. Os seus livros (em especial esta “Máquina do Tempo”) manter-se-ão atuais nos próximos séculos. Que mais será preciso acrescentar?
ISAAC ASIMOV
"EU,ROBOT"
País: Estados Unidos da América
Matriz temporal: século XX
Fundamento da proposta:
O autor é o mais carismático escritor de ficção científica do século XX. Ao proponente afigurou-se indispensável eleger um nome que representasse o fértil período denominado «anos de ouro»; dificilmente se encontraria melhor opção. É, também, um autor perene: os seus livros continuam a imprimir-se aos milhões em todo o mundo. Em relação à antologia selecionada: para além de quanto ficou dito, crê-se que os robots humaniformes e inteligentes do terceiro milénio apreciarão saber que alguém lhes dedicou toda uma vida e pensou neles com uma antecedência de séculos
© PEDRO FOYOS
• DA TERRA À LUA
• À VOLTA DA LUA
Quer através da expressão literária quer cinematográfica, uma plêiade de criadores deslumbrou gerações sucessivas com a sua capacidade de antecipação científica e tecnológica, inspirando, muitas vezes, os próprios sábios da engenharia espacial. De entre os pioneiros ficcionistas, os louros pertencem, sem contestação, a Jules Verne (primeiro nome aportuguesado ancestralmente para Júlio).
Ao contrário de H. G. Wells, seu quase contemporâneo e também precursor das conquistas da ciência, Jules Verne tem vindo a sobrelevar com alguma dificuldade a erosão do tempo. A missão educativa de que se investiu, eivando a maior parte das ficções de um didatismo nem sempre aprazível (e, pior, nem sempre um bom exemplo de probidade investigativa), casa mal com os padrões modernos do género. Verne já não será, em definitivo, o autor das obras mais vendidas no mundo — «depois da Bíblia», como ressalvavam, outrora, as badanas promocionais das edições populares portuguesas. Um crítico desapiedou-se ao ponto de considerar nefasta a leitura das ficções vernianas pelos jovens estudantes, reputando a qualidade estilística das obras tão precária que deslustra a literatura francesa. Algum excesso revestirá tal asserção, mas é verdade que o romancista, como a generalidade daqueles que levam a prolixidade criativa a níveis incomuns, descurou amiúde, no limite do defensável, a arte da boa escrita (Verne estabelecera com o editor Hetzel o compromisso de realizar três livros por ano, periodicidade que, surpreendentemente, excedeu por longo tempo, ao concluir uma nova obra em cada três meses).
Apesar desses aspetos mais ou menos demeritórios, seria injusto não conceder a Jules Verne o lugar de honra no panteão absoluto dos grandes visionários prescientes. A odisseia de uma viagem à Lua, por ele ficcionada em 1865 (Da Terra à Lua) e de novo em 1870 (À Volta da Lua), foi uma das primeiras e mais audaciosas antecipações de uma série longa e notável de feitos cuja concretização ocorreria nas décadas seguintes (mais de um século, no caso das aventuras interplanetárias).
A capacidade premonitória de Verne revela-se, na sua odisseia lunar, genial. Antecipando essa realidade empolgante de uma viagem ao satélite natural da Terra, num contexto cientificamente verosímil, conforme o seu hábito imutável, o escritor construiu uma história que resplandeceria, muito tempo depois, sob o halo das magias proféticas. De facto, espanta, em primeiro lugar, o rigor matemático; depois, as coincidências. O romancista demonstra um conhecimento perfeito sobre configurações diversas relacionadas com a massa, densidade, peso, volume, constituição, movimento e distância da Terra à Lua. A páginas tantas, o diretor do Observatório de Cambridge confirma ao presidente Barbicane (o resoluto ideólogo da viagem) ser possível fazer com que um projétil alcance a Lua desde que se logre animar o mesmo de uma velocidade inicial de doze mil jardas por segundo. Ora essa aceleração corresponde à que se verificaria, na realidade, volvido um século, no âmbito dos lançamentos da missão Apolo.
Ao escrever Da Terra à Lua, o autor fez acrescer ao título as palavras Trajeto direto em 97 horas e 20 minutos, de acordo com uma das linhas de força do enredo. Parecerá extraordinário, mas esse foi, com escassa diferença, o tempo que a Apolo XI demorou a fazer o percurso.
São numerosas as coincidências deste género entre a ficção e a realidade. No limiar da profecia, frequentes vezes.
Vejam-se algumas outras. A América, em 1865, surge como a nação empreendedora do colossal projeto espacial. Está reservado ao génio prático dos Americanos entrar em contacto com o mundo sideral, exclama Barbicane à assembleia da sociedade científica a que preside. Valha a verdade que os propósitos da conquista da Lua se desviam um pouco do altruísmo de uma partilha humanitária universal, como o mesmo orador esclarece: O seu nome (o da Lua) juntar-se-á aos dos trinta e seis Estados que formam este grande país da União! Entretanto, num aparte esquivo, não se despreza a eventualidade de essa conquista poder perturbar sensivelmente o equilíbrio europeu...
Ainda num contexto profético, são três os astronautas que protagonizam a primeira viagem à Lua. Dois americanos e um francês: num ímpeto patriótico, Verne incluiu na equipa a personagem carismática e transfigurada de um seu amigo parisiense, o célebre fotógrafo e aventureiro Nadar (sob o anagrama de Michel Ardan, no romance).
O vagão-projétil Columbiad, que os transporta em direção ao astro das noites, parte de Tampa Town, na Florida, a escassos cem quilómetros do centro espacial conhecido hoje pelo nome de... Cape Kennedy. Depois, o mesmo projétil cilindrocónico, assim descrito e figurado graficamente desde as primeiras edições, traz à memória os tão divulgados módulos de comando da missão Apolo. Não apenas a forma: também o peso, o diâmetro, a altura e a espessura daquele prodígio da metalurgia igualam os engenhos similares da NASA.
Em 1870, quando o escritor retoma o tema em À Volta da Lua, explicita com clareza o estado de imponderabilidade, um conceito bastante desconhecido no século XIX, na perspetiva da ciência espacial.
É também neste romance que detetamos a mais assombrosa coincidência, quando, no final da aventura, os astronautas se despenham no Pacífico, a pouca distância dos pontos onde ocorreriam, cem anos passados, as amaragens dos módulos Apolo (duas milhas e meia, no caso da Apolo VIII).
Num facto apenas, todavia relevante, claudicou estrondosamente a presciência verniana. O arauto da ficção científica sempre foi um inventor medíocre. A efetiva genialidade de muitas das suas criações situa-se no domínio da antecipação, raras vezes no da invenção. Projetava no futuro os engenhos e as tecnologias cujo desenvolvimento se lhe afigurava inevitável no caminho do progresso e fantasiava-os de uma forma tanto quanto possível verosímil (um erro crasso, por exemplo, é supor que o seu famoso Nautilus represente a invenção do submarino, ou que o Albatroz, de Robur — O Senhor do Mundo —, patenteie o advento do avião). Ora, não se conhecendo ao tempo qualquer produto carburante com potência suficiente para catapultar um engenho a distância extraordinária, como seria o percurso da Terra à Lua, Verne optaria pela pólvora como substância propulsora (e logo, zeloso, numa iniciativa típica, o escritor se apressa na resenha histórica da respetiva descoberta). O certo é que essa decisão influiria, de um modo radical, na própria estrutura do romance, aproximando-o mais da ciência balística que da astronáutica. Os três aventureiros são disparados, literalmente, por um canhão descomunal, alojados com risível conforto numa gigantesca bala de alumínio (...produto de suprema honra para o génio industrial dos Americanos).
O canhão quilométrico (introduzido no solo e posicionado na vertical), o projétil único, as pólvoras complexas, o equipamento de observação telescópica, tudo isso envolve custos vultosíssimos que levam os empreendedores da empresa a solicitar a todos os povos do mundo a sua cooperação financeira (a favor, recorde-se, do estabelecimento da Lua como novo Estado americano!). A subscrição urbi et orbi, que rende no estrangeiro mais de um milhão de dólares, constitui o ensejo para Verne avaliar, com a mordacidade peculiar, a índole social e cultural de uma vintena de nações. Alguns países, escreve, distinguiram-se pela sua generosidade, outros alargaram menos facilmente os cordões à bolsa. Questão de temperamento. A Rússia foi magnânima na contribuição despendida, parecendo ao autor lógico esse facto perante o progresso que eles põem nos estudos astronómicos. Verne mostra-se bastante encomiástico para com Portugal, cujo desvelo pela ciência é realçado. Este país contribuiu com trinta mil cruzados, verba substancial, que o próprio escritor comunica aos leitores franceses ascender a 113 mil e 200 francos. Espanha, pelo contrário, incluiu-se no grupo dos países mais penurientos e indiferentes à iniciativa. O romancista reage, impiedoso: «… ninguém ignora que a ciência não é muito bem vista em Espanha. O país ainda está um tanto atrasado.» Ora bem.
Por fim, encaminhando-se para um desfecho avassalador, Verne acaba por frustrar os leitores ao impedir que os seus heróis desembarquem na Lua. O vagão-projétil sofre um mal explicado desvio de trajetória e os astronautas vêem-se condenados a gravitar até ao fim dos séculos na órbita lunar. Um final cruel e, convenha-se, pouco imaginativo, em relação ao qual os leitores da época manifestaram com veemência o seu desapontamento. O romance obteve um êxito estrondoso, mas o epílogo abrupto suscitou um movimento recalcitrante, que, segundo alguns historiadores, teria compelido o escritor a retomar a história com um novo romance, À Volta da Lua (ficção de continuidade que, na congruente opinião de outros, esteve desde logo na previsão do autor). No segundo livro, os viajantes logram regressar à Terra.
Quem conheça razoavelmente a obra do pioneiro francês não deverá, porém, surpreender-se com essa óbvia absurdidade de as personagens não explorarem, sequer pisarem, o solo lunar (como faria, a seguir, com prodigioso talento, H. G. Wells). Na verdade, Verne sempre demonstrou pavor em descrever o desconhecido, por paradoxal que isso possa parecer aos desavisados. Fascina-o a aventura das coisas incógnitas, sobretudo os lances de vulgarização futurista no domínio técnico-científico, mas sempre navegando com terra à vista, ou seja, arrimado a factos concretos e plausíveis. Uma vez por outra, raramente, em que atreve o pé no mar da pura fantasia especulativa, quando a corrente da história o impele na direção de extravagâncias pueris, logo parece penitenciar-se pela falta como um timoneiro que, num lapso de distração, descuidou o leme.
Percebe-se, assim, como a irrealidade de um passeio lunar em 1865 representaria um episódio insolúvel no quadro do rigor factual verniano. O mais que consegue saber-se, no testemunho fugaz de um dos astronautas retidos pela atração do satélite, é o de ter visto qualquer coisa quando a cápsula contorna a face oculta do astro...
Seja como for, os primitivos leitores de Jules Verne já lhe conheciam a opinião lapidar sobre a questão da vida extraterrestre: Sendo os mundos habitáveis, ou são habitados, ou já foram, ou hão de sê-lo.
© PEDRO FOYOS
LIGAÇÕES
NA LITERATURA: TEMA DAS VIAGENS À LUA
Os pioneiros
É numeroso e diverso o grupo de visionários de odisseias lunares mas justifica-se particular deferência para com dois escritores que no seu tempo foram quase contemporâneos: Jules Verne (considerado em geral o mais premonitório de quantos anteciparam uma viagem à Lua) e o perene H.G. Wells (v. capítulo específico).
Porém existem pioneiros ainda mais longínquos, como o fabuloso senhor Cyrano de Bergerac (século XVII). Ou o filósofo e escritor grego Luciano de Samósata, que viveu no século II antes da era cristã, durante o reinado de Marco Aurélio. É a eterna e esquiva questão dos pioneirismos. Há sempre-sempre uma figura ou um facto preexistente à "primeira vez". Repare-se que a expressão moderna de "viagem interplanetária" traduz uma noção tão antiga que ninguém poderá definir quando terá sido transposta e esculpida pela primeira vez num bloco de pedra ou desenhada num papiro.
A história mitológica dos povos está repleta de episódios saborosíssimos nos quais a Lua e o Sol desempenham o papel de anfitriões de intrépidos heróis humanos. Estes, por regra, estabeleceram, desde o princípio do tempo, estranhos conluios com os astros, a ponto de se outorgarem descendentes daqueles, com primazia para o Sol, Lua e Marte.
Entre lunáticos e alunados, aluados e alucinados, é interminável o rol de autores que fantasiaram, sem um pingo de cientificidade, viagens à Lua.
Luciano de Samósata foi de facto um deles, começando a sua História Verdadeira com a singular advertência de que é mentira tudo quanto o leitor irá encontrar. A honestidade e o decoro já eram virtudes. As personagens de Luciano chegam à Lua transportadas por uma colossal tromba de água. Encontram-na habitada por homens que cavalgam abutres de três cabeças e moscas gigantes. Entre os homens da Lua e os homens do Sol está em curso uma guerra. Já era impensável que as guerras fossem exclusivas dos homens na Terra.
Luciano possuía uma imaginação prodigiosa, insuperável. Com acerto se diz que Viagens de Gulliver foram escritas por um Swift iniludivelmente inspirado na obra do genial sátiro grego. Este, acaso tivesse acesso, com uma antecipação de dois milénios, ao enredo de Viagens de Gulliver, faria uma expressão de desdém.
Diferente e mais vagaroso foi o método adotado no século XVII por Francis Godwin, bispo de Hereford: consistiu em voar alegremente para a Lua puxado por gansos.
Duvidoso da capacidade de resistência dos gansos, Godwin fez-se substituir por um espanhol chamado Domingo Gonsales, o qual, para surpresa do próprio autor, alunou com êxito. Há quem assevere em Espanha ter sido este herói e não Armstrong quem pisou pela primeira vez o solo lunar.
Entra depois em cena o inevitável barão de Munchausen, sempre expedito, que opta por chegar à Lua trepando por um feijoeiro gigante: «Lembrei-me», conta o barão, «que os feijoeiros turcos crescem com enorme rapidez, alcançando uma altura impressionante. De imediato plantei um. Cresceu e atou-se por si mesmo a um dos cornos da Lua. Tudo quanto precisei de fazer foi escalá-lo».
(De referir que, um grande escritor do nosso tempo, Brian W. Aldiss, descreveu no soberbo romance Hothouse uma fórmula botânica de unir a Terra à Lua...).
Destas estroinices literárias há uma, contudo, que pela primeira vez se desvia do caminho invariável das quimeras e das sonhadas fantasias milenares e dá um pequeno passo (como diria Armstrong) no território até então intocado da técnica e da ciência. Corria ainda o século XVII quando o autor de uma sátira social (História Cómica dos Estados e Impérios da Lua) emprega o vocábulo "foguetes". Foguetes? Ninguém tinha pensado em tal. Nessa linha de fronteira nos reencontramos com o citado poeta e dramaturgo francês Cyrano de Bergerac. É ele quem prenuncia uma era de engenhos formidáveis que trezentos anos depois possibilitariam as viagens interplanetárias. Seria preciso esperar mais de dois séculos para que a Lua retornasse a um certo imaginário criativo que depois, muito depois, adquiriria a denominação de ficção científica. Na transição do século XIX para o século XX, tanto Verne e Wells na literatura, como Méliès e Fritz Lang no cinema, converteriam a Lua num tema popular. Bem pode dizer-se que a ficção científica nasceu sob um autêntico halo lunar. Os marcianos andavam ainda, por esse tempo, na barriga das mamãs.
Homem corajoso e irreverente, Cyrano produzia abalos sísmicos políticos de cada vez que uma obra sua saía do prelo. Não obstante o imenso talento e de ter sido uma das figuras mais fascinantes da época, a História fez ressoar universalmente o seu nome pela suposta particularidade grotesca do nariz. O dito apêndice resultaria descomunal aos olhos do mundo a partir de uma peça teatral de Edmond Rostand, estreada com êxito em 1897. Na verdade, como pode observar-se numa gravura antiga, reproduzida acima, o nariz de Cyrano era tão-só um pouco protuberante. Mas a caricatura entranhou-se na lenda e as lendas, sabe-se, são imorredouras.
Procriação humana na Lua
O vaivém espacial Columbia, lançado de Cabo Canaveral com sete astronautas a bordo, perspetivou, entre cerca de oitenta experiências científicas, um melhor conhecimento sobre o processo como se desenvolve o feto humano no líquido amniótico, no útero materno, durante os nove meses de gravidez.
É curioso recordar, a propósito, que Verne aflorou a eventualidade de enviar para a Lua um casal humano, no decurso do seu projeto «Columbiad» (Da Terra à Lua). É o caso que o afável Michel Ardan (anagrama de Nadar, relembramos, o histórico fotógrafo oitocentista), personagem central do romance e o mais popular dos três lunonautas, passa a ser alvo de ávidos assédios por parte da comunidade feminina. Com humor, Verne alude à possibilidade de Ardan e uma companheira (a qual, sem dificuldade, ele «teria arranjado às centenas») gerarem prole no continente lunar. «Que número infinito de bons casamentos teria feito!», exclama o escritor. O viajante, contudo, recusa o oferecimento. «Ir desempenhar lá em cima — diz — o papel de Adão com uma filha de Eva, isso não, obrigado! Só me faltaria encontrar serpentes!...»
A invenção da contagem decrescente
A lógica desarmante do "ovo de Colombo" aplica-se a uma ideia aparentemente vulgar que o cineasta Fritz Lang teve durante a rodagem de A Mulher na Lua (1928-29), obra magna que relata a história de uma conturbada expedição ao nosso satélite. O realizador alemão fez uma descoberta óbvia, mas alguém teria de a concretizar uma primeira vez. Pretendia-se mostrar como um acontecimento atinge o objetivo quando chega ao zero. Lang inventou, portanto, a contagem decrescente. Ele próprio contou: «Quando filmei a partida do foguetão, disse para comigo: se contar um, dois, três, quatro, dez, cinquenta ou cem, o público não saberá quando ele vai partir. Mas se contar ao contrário (count down), dez, nove, oito... três, dois, um, zero — então compreenderá». Tão elementar. Mas a ninguém ocorrera tal.
© PEDRO FOYOS
• PARIS NO SÉCULO XX
O mais inesperado dos romances de Jules Verne, Paris no Século XX, permaneceu inédito durante 130 anos. Obra menor e manifestamente imatura mas... terminada a leitura, em nada extasiante, prende-nos à narrativa um sorriso admirativo: Jules Verne, que sempre veremos como um proficiente mestre-escola investido na função literária em horário pós-laboral, é um monumento superior da arte premonitória. Premonição? Reconsideremos. Antecipação? Talvez previsão. Ou extrapolação? Quando se fala de Verne, estes vocábulos intrincam-se num novelo de incertezas. Verne não ousou inventar o que quer que fosse, no sentido técnico-científico da expressão. Mas ninguém o superou na capacidade de projetar no futuro um evento/invento germinado impercetivelmente na própria época. Em 1861, duas décadas antes das primeiras utilizações regulares da iluminação elétrica, quem suporia que, um dia, esse novo tipo de energia levaria a luz às habitações e ruas do mundo inteiro? Foi naquele ano, porém, que se instalou, a título experimental, por cima da porta do Palais Royal, uma tosca lâmpada elétrica de arco alimentada por um motor de três cavalos. Não passou despercebida a Monsieur Verne a singela inovação e, pouco depois, irrompia no relato extravagante de «luas elétricas» que inundam de luz as avenidas futuras.
Todas as "invenções" de Verne possuem, em maior ou menor grau, afinidades com engenhos e tecnologias ensaiados no seu tempo. De facto, mais vislumbrando que inventando, ele poderá ser considerado o primeiro grande artífice de algo a que se chamaria, um século depois, ciência prospetiva. Essa faculdade, exercida em moldes profícuos e quase sempre certeiros, confere-lhe um pioneirismo incontestável. Verne não detém, por regra, a precursão absoluta das inovações prodigiosas que vai narrando, mas é o primeiro a exercitar, brilhantemente, a extrapolação das mesmas: a navegação aérea, os projéteis teleguiados, os gases asfixiantes, o aproveitamento da energia da água do mar, o metropolitano, o automóvel, etc., etc., não esquecendo o mais perpetuado dos equívocos, o submarino... que na verdade nunca inventou.
É neste contexto que deve ser analisado com apreço e, até, justificado fascínio por parte dos estudiosos da obra verniana o recuperado manuscrito de Paris no Século XX, reminiscência mítica da bibliografia do laureado autor. O manuscrito, rejeitado pelo lendário editor Pierre-Jules Hetzel, esteve desaparecido durante 130 anos, facto assombroso na história da literatura. Até os menos entusiastas (Verne tem revelado precária resistência à passagem do tempo) enlevar-se-ão, talvez, com o facto de o escritor evidenciar, nesta obra, mais do que em qualquer outra, esse pendor nato para a extrapolação científica, a partir de factos com alcance inapreensível ao tempo. Quando escreve o romance, em 1863, Verne entrega-se a um inventário espantosamente diversificado sobre a vida de Paris no século XX e as alterações tecnológicas que se operaram na cidade e no quotidiano dos habitantes. Sem complexos, o escritor não escamoteia as fontes. Repare-se neste trecho indiciário do futuro comboio metropolitano automatizado, silencioso e movido por um sistema electropneumático, uma realidade muitas décadas depois: «As casas ribeirinhas não sofriam os efeitos do vapor nem do fumo, pela simples razão de já não se tratar de uma locomotiva. As carruagens deslocavam-se com a ajuda de ar comprimido, segundo o sistema William preconizado por Jobard, um célebre engenheiro belga, que se impusera em meados do século XIX».
Pois bem: este engenheiro, de facto belga, não é ficção. Jean-Baptiste Jobard, contemporâneo de Verne, esquecido por completo na atualidade, esteve na origem de inúmeras inovações que decerto inspiraram Verne. Algumas dessas criações técnicas poderão significar, por exemplo, longínquos enunciados de um meio de transporte revolucionário, configurado num princípio similar ao descrito por Verne. Foi igualmente pioneiro num sistema de iluminação incandescente no interior das galerias escavadas no subsolo, como demonstra a gravura oitocentista que reproduzimos acima. Assinalem-se, a propósito, as valiosíssimas notas finais do moderno editor francês, sob o título «Jules Verne no seu tempo», que constituem um exaustivo repositório das «projeções especulativas» do escritor sobre as técnicas embrionárias na própria época.
O reverso aflitivo deste livro é a sua puerilidade literária. A rejeição do editor Hetzel, que hoje julgaremos um ato absurdo, torna-se limpidamente entendível à medida que progredimos na leitura. Mais do que isso, pode colocar-se a questão sacrílega da admissibilidade de uma edição dirigida ao grande público, volvidos 130 anos, quando sabemos que Verne aceitou, afinal, complacente, a decisão do seu editor, não mais diligenciando a reconsideração da mesma.
Em defesa de um editor
Medalhão de Hetzel no cemitério de Montparnasse
Fragmentos da carta, não datada, do editor Pierre-Jules Hetzel a Jules Verne, a propósito do romance Paris no Século XX:
«Meu caro Verne, eu daria não sei o quê para não ter hoje que lhe escrever. Você empreendeu uma tarefa impossível — e não já como os seus antecessores em histórias semelhantes —, mas não conseguiu realizá-la bem. Está muitos pontos abaixo de Cinco Semanas em Balão. Se o voltar a ler dentro de um ano, estará de acordo comigo. É mau jornalismo e neste sentido não me parece feliz. (...) Sinto-me desolado, desolado por ter de lhe escrever isto — mas considerei como um desastre para o seu nome a publicação deste trabalho. (...) Você não se mostra preparado para este livro, há de refazê-lo dentro de vinte anos. (...) Nada nele ofende as minhas ideias nem os meus sentimentos. É apenas a literatura que me ofende — por se revelar inferior a si mesmo em quase todas as linhas».
Recordem-se os antecedentes históricos. Jules Verne escreveu o livro em 1863, nos alvores da sua carreira literária, e permaneceria esquecido, desde então, na sequência da afetuosa rejeição de Hetzel.
De súbito, decorridos 130 anos, o manuscrito foi recuperado e multiplicaram-se edições no mundo inteiro, acompanhadas, por regra, de uma escusada charanga promocional. Porque, sob o ponto de vista literário, esta é manifestamente uma obra imatura. Existem descrições e diálogos que condoem pela frivolidade, a um nível de teatro escolar. Alguns dos capítulos, como aquele em que o autor, na pele do protagonista Michel, enumera as suas preferências e afinidades literárias, suscitam pesarosa hilaridade. Não custa entender a atitude desapiedada do editor quando comunicava ao jovem incipiente: «...É apenas a literatura que me ofende...». Coitado do Hetzel, que haveria ele de dizer perante o balbuciante intento do escriba. E coitados dos leitores atuais que presumiram, ao adquirir o livro, tratar-se de um genial legado do mais emblemático clássico europeu da ficção científica. A edição deste romance, não acautelando a especificidade bibliográfica da iniciativa e a sua natureza necessariamente museológica — uma peregrinação ao passado, reservada aos fiéis —, gera um efeito perverso. Toda a gente é convidada a integrar a peregrinação, anunciada como um carrossel de feira. De facto, sendo o livro dirigido ao grande público, desavisado, há uma estratégia indefensável de aproveitamento especulativo da notoriedade do autor. As novas gerações, em especial, não conhecem a obra de Verne; quando muito, terão assistido a versões cinematográficas de um ou outro tema mais popularizado. A rotura com o autor afigura-se, assim, inevitável, ao cabo de poucas páginas. É de prever que, depois desta experiência, o público fuja espavorido à simples menção do nome do mestre visionário. Até os críticos da obra verniana não deixarão de considerar injusta essa eventualidade. Mais grave, porém, será a desavença poder estender-se ao próprio género literário, por parte dos neófitos da ficção científica.
A um outro nível de reflexão deve colocar-se o antigo e polémico tema da publicação, após a morte dos autores, de espólios renegados ou deixados inacabados. Quanto sabemos, Verne, que muito respeitava Hetzel, tratando-o por mestre, aceitou, afinal, complacente, a decisão do seu editor, não mais ponderando reconsiderá-la. Parece óbvio que o escritor admitiu, sem esforço, as enormes deficiências do seu trabalho. Viria a escrever, depois, dezenas de outros livros e ascendeu, ainda em vida, ao pedestal da glória. Concordaria ele com a publicação estridente desta obra de juventude? Com certeza que não.
Como se tudo isto não fosse já profundamente desgostante, acresce uma surpreendente introdução do editor original francês. Num texto lastimável, subscrito por Véronique Bedin, a figura de Hetzel é desvirtuada com a afirmação de ter o editor corrigido e maltratado «sem descanso» o escritor. Apetece dizer: muitas gerações de leitores terão lamentado que Hetzel não tivesse emendado um pouco mais os originais de Verne, a quem sobrava em imaginação o que lhe faltava em talento literário. Quem conheça razoavelmente a obra do autor das Vinte Mil Léguas Submarinas e o seu prolongado relacionamento com o editor, sabe que o primeiro se gratificava, amiúde, com o apoio prestado pelo mestre. Está editada abundante correspondência entre ambos que certifica o facto. O editor era francamente estimado nos meios da intelectualidade francesa da época, amigo íntimo de personalidades relevantes como Hugo e Balzac (cujas obras publicou), e possuía um espírito desassombrado, não raro patenteando grande destemor cívico ao solidarizar-se com os exprobados políticos do Segundo Império. Ao decidir publicar o primeiro livro de Verne, o singular Cinco Semanas em Balão, depois de numerosos editores de Paris o terem recusado, este homem dava, afinal, testemunho eloquente de uma alargada visão cultural. Todos os seus atos refletiam uma frondosa estatura progressista, aspeto sublinhado em inúmeras obras alusivas à vida intelectual francesa no século XIX. Mal se entende que seja uma compatriota, ainda por cima colega de ofício, a fazer-lhe o género de acusações que encontramos nas páginas iniciais de Paris no Século XX.
Curiosamente, as inconsistências de Véronique Bedin são contraditadas no próprio livro, num prefácio notável de Piero Gondolo Della Riva, porventura o maior especialista e divulgador mundial da obra verniana. A recusa de Hetzel em relação à publicação de um original de Verne, atitude que poderá intrigar, hoje, o público inadvertido, é abordada por Della Riva com objetividade: «...Dispomos (na atualidade) de dois elementos que jogam a favor do romance e de que o editor não dispunha. Por um lado, na verdade, sabemos no que se tornou Jules Verne depois...; (...) por outro lado, conhecemos bem a Paris do século XX e a comparação entre a realidade e as extraordinárias intuições do jovem Verne não podem deixar de causar espanto.» Torna-se muito óbvio, contudo, que o motivo fundamental da rejeição prendeu-se com a extrema debilidade literária da obra. As inúmeras anotações feitas pelo editor nas margens do manuscrito (reproduzidas, em parte, no prefácio) são elucidativas. Ao contrário do que aconteceria com as obras sequentes de Verne, esta não foi corrigida pelo venerado mestre.
Os leitores aperceber-se-ão de tudo isto ao entrarem na leitura de Paris no Século XX. Uma voz sepulcral, repisativa, vai ecoando no virar de cada página. É o editor Hetzel, jocoso: «Eu não dizia?...»
© PEDRO FOYOS
NO CINEMA
Richard Fleischer: Vinte Mil Léguas Submarinas
Nos anos cinquenta e sessenta, meio século depois das criações pioneiras de Méliès, o cinema redescobriu o filão prolífero da obra de Jules Verne. Esse ciclo de uma dezena de filmes inspirados nas ficções do grande visionário francês principiou em 1954 com a memorável versão de Richard Fleischer de Vinte Mil Léguas Submarinas, sem dúvida a mais espetacular adaptação cinematográfica de um tema de Jules Verne, inesquecível nas interpretações de Kirk Douglas e James Mason. A obra deslumbrou pelo realismo terrorífico-fantástico de cenas épicas nunca igualadas em aventuras fílmicas subaquáticas, como a da luta com o polvo gigante — sequência antológica. Um êxito estrondoso. Por outro lado, a temática do "sábio louco" — muito cara a Verne — persistia na primeira linha do bom acolhimento do público em relação a este género de produções.
William Witney: O Senhor do Mundo
Não custa perceber a razão por que foi a American International Picture (uma das "universidades" de Roger Corman) resgatar à obra de Verne uma das suas novelas mais esquecidas, cuja estrutura narrativa corresponde, em numerosíssimos aspetos, a uma variante aérea das Vinte Mil Léguas. Essa novela «tecnológica» teve duas versões do próprio autor: a primeira, com o título Robur le Conquérant / Robur o Conquistador, foi editada em 1886; a segunda, intitulada Maitre du Monde / 0 Senhor do Mundo (também título do filme), apareceu em 1904, meses antes da morte do escritor. A diferença marcante entre ambas reside na personalidade do protagonista — Robur, um cientista genial e louco —, que começa por ser, na primeira versão, um idealista lírico e quase filantropo, transfigurando-se na edição sequente numa figura megalómana, brutal, sedenta de poder. A realização do filme foi confiada a William Witney, que se rodeou de um magnífico elenco de atores, com relevo para o carismático Vincent Price, ao lado do já quarentão Charles Bronson. O primeiro interpretando o argonauta louco, equivalente do capitão Nemo das Vinte Mil Léguas, foi insuperável na composição da personagem. A história de Verne, que Witney adapta com lacunas ao nível da alegoria subjacente ao enredo, privilegiando os trechos mais aventurosos, decorre em 1848. O cientista Robur concebe uma grandiosa máquina voadora, espécie de majestoso navio alado, o Albatroz, verdadeiramente precursor das estações espaciais do nosso tempo. Este Nautilus aéreo é, na realidade, um engenho de guerra cuja extraordinária capacidade mortífera converte o seu navegador no mais poderoso ser humano. Utilizando essa força suprema, Robur faz ao mundo um ultimato extravagante: se a humanidade não banir por completo as guerras entre si, ele destruirá o planeta! No filme, Bronson interpreta a figura de um agente do Governo americano, chamado Strock, que sobrevoa, num balão, uma montanha inacessível da Pensilvânia, onde um vulcão entrou em erupção, provocando o pânico na população de Morgantown. Acompanham Strock, nessa viagem, a sua filha e o noivo desta, mais um membro da Sociedade de Balões. Todos são raptados por Robur, que os aprisiona a bordo do Albatroz. Os quatro aventureiros começam, então, a planear a fuga, concluindo Strock que a única saída consistirá na destruição da nave. Essa oportunidade surgirá quando o Albatroz necessita de ser reparado e, para tanto, aterra numa ilha.
Por coincidência, a estreia de Master of the World ocorreu em data próxima da de um evento primordial na história da astronáutica: a proeza de Yuri Gagarin, o primeiro homem a ser colocado no espaço. Mas os grandes engenhos do tipo vaivém Columbia seriam conhecidos apenas duas décadas mais tarde. Jules Verne não foi muito minucioso na descrição do «navio aéreo». Aliás, quem está familiarizado com o universo verniano sabe que a invenção do futuro representa para o escritor uma antecipação intuitiva e iminentemente teórica, quase sempre desprovida de grandes explanações técnicas.
A equipa de William Witney teve, por isso, ampla margem de criação interpretativa dos artefactos referidos na ficção literária. Houve quem censurasse o filme por julgar demasiado excêntrica a componente "tecnológica", pois Verne — dizia um crítico — teria dificuldade em admitir que uma tão bizarra máquina com a figuração do Albatroz, ostentando varandins palacianos e portas rendilhadas, pudesse algum dia voar. O que não é verdade. Todos os "inventos" de Verne caracterizam-se imageticamente por uma fantasia exuberante e cómica na ingenuidade da sua conceção. Além disso, de facto o que mais diverte num filme como O Senhor do Mundo é reconhecer, naquele Albatroz resfolegante, algo tão inconvincente como a visão de uma baleia a voar.
© PEDRO FOYOS
FICHA
0 SENHOR DO MUNDO
(Master of lhe World)
Realização: William Witney, baseado na obra de Jules Verne. Produção: James H. Nicholson, para a American International Pictures (EUA, 1961). Argumento: Richard Matheson. Fotografia: Gil Warrenton (Magnacolor). Efeitos especiais: Ray Mercer, Tim Barr, Wah Chang e Gene Warren. Música: Les Baxter. Intérpretes: Vincent Price, Charles Bronson, Henry Hull, Mary Webster, Wally Campo, Vito Scotti, David Frankham.
Duração: 104 minutos
• A VIAGEM À LUA
Fantástica história (em 280 metros de película) da primeira viagem à Lua.
Os acrobatas do Folies-Bergère e também as bailarinas do Châtelet acederam ao pedido de George Méliès. O mestre cineasta, no auge da popularidade, havia-lhes proposto uma participação vistosa no seu próximo filme intitulado A Viagem à Lua.
Os primeiros figurariam como selenitas, ou seja, as estranhas criaturas nativas, com o aspeto de bizarros crustáceos, que um não menos aparatoso grupo de astrónomos iria encontrar quando chegasse ao reino lunar. No que respeitava às bailarinas, as mais picantes coquettes das noites parisienses, Méliès reservara-lhes o papel científico da personificação dos astros. Para tanto cintilariam no ecrã como sacerdotisas estelares: Vénus, Febo, Arcturo... O desfile, num fundo negro, incluiria Saturno, mas este sem donzela, porque, sobre os lendários anéis, postado a uma janela, estaria o deus do planeta...
Em 1902 era assim o cinema. Méliès, perdido em sonhos fabulosos, desdobrava-se nas funções de produtor, realizador, argumentista, encenador, maquetista, diretor do guarda-roupa e... ator (no caso, o Professor Barbenfouillis, cujo ambicioso plano de exploração da Lua obtém a concordância do Congresso Científico do Clube dos Astrónomos). O argumento extravasava em comicidade e ritmo aventuroso duas obras reminiscentemente inspiradoras, muito populares na época: Da Terra à Lua (1865), de Verne, e Os Primeiros Homens na Lua, de Wells, pequena novela publicada no ano anterior ao filme. O grupo de astrónomos (na realidade trajavam como astrólogos feéricos) começava por visitar um imenso hangar onde decorria a construção de engenhos complexos, decerto relacionados com a fantástica jornada em preparação. Na sequência das operações de fundição de um canhão viam-se algumas pomposas majorettes a impulsionar para uma rampa de lançamento o grande projétil-foguetão no qual se introduziriam os intrépidos exploradores. O canhão é disparado e... novo quadro: surge a Lua, figurada no rosto rechonchudo, moldado em gesso, de um ator. O projétil, acelerado, num travelling inovador, avança em direção ao alvo. Acerta-lhe num olho! (ficaria célebre o quadro da Lua com um olho vazado pelo obus).
Os viajantes saem da cápsula, deslumbram-se com o aspeto resplandecente da Terra, ao longe. Segue-se o mencionado desfile dos astros, enquanto o grupo, estendido no solo, dorme e parece sonhar. O frio, porém, força a comitiva a abrigar-se nas cavernas, onde cogumelos gigantescos (a paisagem ficcionada por Wells) são a metamorfose resultante dos chapéus-de-chuva dos exploradores... Enfim, entram em cena os selenitas e o rei da Lua. Há uma peleja renhida, os terráqueos acabam prisioneiros dos estranhos crustaciformes, conseguem fugir, localizam o seu foguetão e retornam à Terra... descendo de paraquedas! Caem no mar, pretexto para uma breve incursão pelo maravilhoso mundo submarino, e a fita termina com a chegada triunfal dos astronautas a Paris, uma cidade en fête, a multidão festejando a inauguração de uma estátua comemorativa e assistindo à exibição pública de um selenita trazido da Lua, como um troféu vivo...
Que espetáculo! A partir daqui, o cinema já não seria o mesmo.
UM NOVO MUNDO DESCONHECIDO DO OLHAR HUMANO
A narrativa da odisseia lunar dividia-se em trinta quadros (a cada cena correspondia um cenário, na conceção primitiva de teatro filmado), num total de 280 metros. Na aurora do cinema, um filme com essa extensão constituía uma empresa heroica. As fitas não excediam, em geral, um ou dois minutos. A Viagem à Lua, com cerca de um quarto de hora de projeção, impunha-se como uma ambiciosa produção, envolvendo um custo superior aos 1500 luíses, facto excecional. A rodagem prolongou-se por três meses, outra circunstância incomum tendo em conta que Méliès chegara a realizar dois filmes numa só semana. Mas o cineasta ascendera à glória no panorama do incipiente espetáculo das imagens animadas. Muito sugestionado pela arte ilusionística de que tinha experiência profissional, aliás com enorme êxito, dominava como ninguém a técnica, adquirira uma perícia imbatível, requintara no conhecimento do gosto popular, aprendera novos truques assombrosos e acreditava, candidamente, que todo o seu esforço criativo e financeiro seria compensado. A Viagem à Lua, para sempre uma referência primordial do advento da ficção científica no cinema, contava uma história, à semelhança do que fazia o teatro, mas excedia em absoluto o gag e o truque pueril costumados para recriar universos fantásticos que nenhuma outra expressão igualava. O cinema revelava, com arte e engenho, um novo mundo visual – «o mundo de uma criança surpreendida», nas palavras de Georges Sadoul.
Méliès apercebeu-se, logo em 1902, do pioneirismo do acontecimento. Nutria por esta obra uma franca vaidade, como atesta a apreciação que da mesma fez, mais tarde, nos termos seguintes: «Foi a primeira grande comédia de magia cinematográfica, que determinou de modo definitivo a entrada do cinema no caminho teatral e espetacular.»
DAS LUZES DA GLÓRIA ÀS TREVAS DA RUÍNA
Os filmes não eram mais, ao tempo, do que um fenómeno de feira, projetados no interior de barracas de pano, todavia prenunciavam um género de comércio fortunoso. A Viagem à Lua obteve, é certo, um êxito retumbante, sobretudo nos Estados Unidos, mas marcou ao mesmo tempo o começo de adversidades crescentes e invencíveis que, volvida uma década, conduziriam o genial pioneiro ao limiar da miséria. De facto, a propriedade artística no âmbito cinematográfico era um princípio que poucos observavam, face à inexistência de normas legais ajustadas ao novo meio. Não faltaram, em consequência, oportunistas sem escrúpulos que procederam à cópia e venda do filme, em número elevado de reproduções, algumas das quais mantinham, inclusive, num despudor espantoso, a própria marca original de fábrica. Contrafações das obras de Méliès invadiram os mercados mundiais sem que ele beneficiasse minimamente das receitas. O produtor Sigmund Lubin, de Filadélfia, por exemplo, era exímio em alterar os títulos originais, registando, depois, as novas versões com o seu próprio nome. Também Edison, pretextando que o francês lhe havia usurpado o invento da perfuração da película, foi quem mais pirateou as obras de Méliès, colhendo ótimos lucros com encargos ínfimos. Conhecedor do sucesso de A Viagem à Lua nos Estados Unidos (a ponto de originar a abertura, em Los Angeles, do primeiro cinema permanente), Méliès abriria em Nova Iorque, pouco depois, uma sucursal da sua Star Film, confiando ao irmão Gaston a gestão dos negócios. «Abrimos esta agência para defender os nossos direitos, e a lei vencerá» – escrevia a Star Film numa introdução ao seu primeiro catálogo americano. Ilusão. Após um período de relativo êxito, a situação declinou e não mais cessariam as agruras: Méliès, o artesão nato, soçobrava. Render-se-ia, gradualmente, à investida de um novo tipo de indústria que germinava em Vincennes sob o nome de Pathé Frères.
A decadência, o esquecimento, a ruína consumar-se-iam numa rotina de sobrevivência obscura. Em 1914, destroçado pelos credores, cessou a atividade criativa. Nos anos vinte, o inventor do espetáculo cinematográfico, o homem que mereceria um trono, vendia brinquedos e guloseimas num quiosque da Gare Montparnasse, em Paris. Todavia, pouco antes de morrer, num derradeiro lampejo de reconhecimento público, Méliès foi homenageado com um faustoso banquete e condecorado com a Legião de Honra.
© PEDRO FOYOS
FILME ORIGINAL DE 1902 (VERSÃO MUSICALIZADA)
FICHA
A VIAGEM À LUA
(Le Voyage dans la Lune)
Realização, produção, encenação, maquetagem, direção do guarda-roupa e argumento:
George Méliès (França, 1902).
Interpretação: acrobatas do Folies-Bergère, bailarinas do
Châtelet e George Méliès.
Duração: 14 minutos (16 fotogramas por segundo).
• VIAGEM ATRAVÉS DO IMPOSSÍVEL
Na esteira de A Viagem à Lua (1902), este filme celebra historicamente a consolidação da ficção científica nos alvores maravilhosos do cinema. Georges Méliès, no apogeu da criatividade, apercebera-se que o género cativava públicos diferenciados, a começar pelas crianças, e insistiu na fórmula das viagens fantásticas pelos espaços siderais. A Viagem à Lua havia sido, de facto, um grande êxito. O pioneiro francês, sob a torrente dos incentivos e louvores arrebatados, resolveu-se, então, a levar mais longe a sua fantasia soberba. Desta vez, a viagem seria extravagantemente impossível, incluindo uma passagem pelo Sol. Nem mais, nem menos. Nos seus quase trinta minutos de projeção, Viagem Através do Impossível é uma obra-prima da incipiente e ingénua expressão cinematográfica, com o génio de Méliès a operar magias e deslumbramentos inesperados. Anunciado, na época, como o mais fantástico filme de sempre, esta obra é claramente uma versão aumentada e melhorada de A Viagem à Lua, repetindo algumas das conceções primordiais do guião anterior, inclusive a forma como a expedição colide com o Sol (aqui representado, como sucedia com a Lua, por uma face humana, resplandecente). Os exploradores – doze sábios acompanhados das respetivas esposas – procedem do Instituto da Geografia Incoerente (!) e defrontam-se com vicissitudes inúmeras, de um cómico pueril. Quadros belos e primitivos como as quimeras infantis. De trambolhão em trambolhão, muitos desastres tresloucados (uma grande explosão, inclusive, conduzi-los-á ao hospital...), acabam por levar a bom termo o homérico cometimento, sendo acolhidos, no regresso, com frenéticas demonstrações de folia.
Com a extensão invulgar, para o tempo, de 380 metros (a popularidade da fita foi tão grande que o cineasta adicionar-lhe-ia três cenas extra, perfazendo meia hora de projeção – facto inédito), continuam a prevalecer neste filme as convenções estéticas do teatro filmado, com Méliès desdobrando-se nas funções de produtor, distribuidor, realizador, argumentista, encenador, maquetista, diretor do guarda-roupa e... ator. Era a época do cinema puramente artesanal. Não muito depois, sob o ímpeto suicida de concorrer com a Pathé, que começava a assentar as primeiras pedras do edifício da grande indústria cinematográfica, Méliès declinaria gradualmente para a produção caudalosa, repetitiva, excessiva e vulgar.
Naquele ano de 1904, todavia, ele era ainda o artífice quase isolado que maravilhava multidões com fantasias e trucagens nunca vistas. No seu estúdio envidraçado de Montreuil – o primeiro do mundo – pintava cenários prodigiosos que refulgiam ao Sol. As filmagens, realizadas sempre com a luz natural envolvente, subordinavam-se às coordenadas solares. Um dia, ao dar-se conta de que o Sol era, em simultâneo, a convergência e a irradiação da sua arte, pintou-o e viajou até ele. A viagem não é impossível.
© PEDRO FOYOS
SEGUNDA PARTE DO FILME RESTAURADO DO ORIGINAL DE 1904
( COLORIZADO E MUSICALIZADO )
FICHA
VIAGEM ATRAVÉS DO IMPOSSÍVEL
(Voyage à travers l'Impossible)
Realização, produção, encenação, maquetagem, direção do guarda-roupa e argumento:
Georges Méliès (França, 1904). Interpretação: Georges Méliès, Fernande Albany, May de
Lavergne, Jehanne d'Alcy.
Duração: 24 / 30 minutos (16 fotogramas por segundo).
• A MÁQUINA DO TEMPO
Romance de estreia, em 1895, do notável escritor inglês H.G. Wells, consagrado como uma das obras-primas mundiais da ficção científica e referenciado amiúde como a primeira abordagem ao tema das viagens no tempo. Em rigor, remontam aos primórdios do século XIX as fantasias literárias, em geral anónimas, que descreviam as aventuras vividas no passado pelos heróis da história, os quais, porém, eram quase sempre transportados, candidamente, a esse tempo através dos próprios sonhos ou alucinações. O célebre conto de Natal de Dickens (A Christmas Carol) publicado em 1843 – que mais tarde inspiraria muitas adaptações cinematográficas – pode inserir-se, com alguma boa vontade, na temática. É do mesmo ano, também, uma narrativa de Edgar Allan Pöe onde a personagem central, sob o efeito da morfina, recua mais de sessenta anos no tempo. Outras criações notórias no género: O Relógio Que Andava para Trás (1881), um conto de Edward Page Mitchell (jornalista americano que citaremos adiante), e Um Yankee na Corte do Rei Artur (1889), obra célebre de Mark Twain.
Não tendo sido, na verdade, o pioneiro absoluto, pertence a H(erbert) G(eorge) Wells, com toda a certeza, o primado da mutação direcional das viagens no tempo, quer para o passado quer para o futuro (o que constituía uma grande novidade!), e, facto verdadeiramente relevante, a cientificidade do tema literário. É fascinante reconhecer, passado mais de um século, nas páginas de abertura do seu romance, ideias ponderosas, ousadas, hoje tão debatidas como a «quarta dimensão». Foi ele quem primeiro transmitiu, na esteira dos modernos padrões universais da ficção científica, o conceito especulativo da exequibilidade das viagens no tempo por meio de um instrumento concebido especificamente para esse fim: uma máquina. De tal forma excêntrica parecia esta ideia que muitos anos decorreram até que outros escritores adotassem nas suas ficções máquinas de viajar no tempo. Nos anos trinta do século XX aparecem as primeiras "viaturas" pós-Wells, em geral bizarras e carecidas de explicações de ordem técnica. Na realidade, a própria máquina de Wells, parecendo um grotesco trenó-sofá, com mecanismo de bicicleta... («uma coisa – explica ele – de latão, ébano, marfim e quartzo translúcido, brilhante»...!), é de uma inverosimilhança técnica tão pueril que encanta e faz sorrir. Parece evidente que, volvidos os capítulos introdutórios, o aspeto "científico", numa perspetiva verniana de justificação didática, importava pouco ao autor, mais interessado em penetrar na alma da fábula (e estamos perante uma das mais profundas alegorias sociais de Wells). A «sociologia imaginativa», segundo a expressão perfilhada pelos críticos oitocentistas, traduzindo uma tendência que Wells reforçaria no decurso das duas décadas seguintes, emerge deste romance em ilustrações extremas, de degradação e colapso da humanidade – e do próprio planeta. O epílogo, sobretudo, insinua algo de aterrador, quando o Viajante no Tempo percorre mais de trinta milhões de anos em direção ao futuro e vislumbra o cenário glacial da Terra mergulhada em trevas. Ressalta, nesse curto capítulo, outro indício de precursão extraordinária do tema do fim do mundo e da extinção do Sol em que se deleitaram depois centenas de autores.
Influência de Darwin
Wells arreigou-se desde a adolescência a ideais de cultura e de sociedade muito caros à sua época. Vivia-se no fervor científico de uma revolução que triunfava, em etapas consecutivas, sobre dogmas milenares, obrigando a reformular as questões fundamentais da existência humana, e o jovem escritor decidiu que o seu primeiro romance extrapolaria alegoricamente alguns sinais dessa inquietude. O debate à volta das novas teorias da evolução constituía, ainda, nos meios da intelectualidade britânica, um rastilho que deflagrava com estrépito de cada vez que alguém se lembrava de o acender. Wells aproveitou o assunto projetando-o no seu enredo para um futuro fantástico e sinistro. Na verdade, o processo seletivo e as teses transformistas preconizadas por Darwin exerceram nele óbvia influência, podendo apontar-se A Máquina do Tempo como exemplo inovador de um género literário (que progrediria sob a vindoura designação de ficção científica), fundamentado em hipóteses e realizações, mais ou menos verosímeis, no domínio da ciência. O tema da mutação e da evolução humana atraiu-o desde muito cedo e representaria, mesmo, durante toda a sua vida, uma reflexão frequente. Também a medonha crueldade da vida animal, essa constante perversa da Natureza que Darwin realçou em Da Origem das Espécies, sempre o impressionou muito.
Sabe-se que, dois anos antes de A Máquina do Tempo, o escritor publicara anonimamente um artigo intitulado The man of the year million, apresentado como «A scientific forecast», no qual desenvolvia princípios darwinianos em moldes especulativos e, até, escandalosos para o tempo. Os futuros membros da espécie humana, de acordo com aquele ensaio, metamorfosear-se-ão em algo cuja visão nos apavoraria hoje. Imagine-se: um cérebro em crescimento imparável, quase autónomo em relação ao resto do corpo. Ao cabo de milénios de hábitos alimentares restringidos a substâncias sintéticas, sem necessidade de mastigação, também a boca foi perdendo a configuração conhecida, diminuindo de tamanho e perdendo os dentes. A ingestão de alimentos, aliás, deixará mais tarde de ser efetuada porquanto a função nutritiva se operará por intermédio da pele, mediante banhos químicos regulares. Por outro lado, em resultado de uma progressiva supremacia das máquinas, que em tudo substituirão a atividade humana, as pernas, o tronco e o sistema muscular irão decrescer.
Pessimista, Wells considerou que independentemente do fim da civilização no sombrio clímax de um processo autodestrutivo também o próprio planeta não terá melhor sorte, sem que a responsabilidade, no caso, possa atribuir-se aos humanos. De facto, o autor deixou-se atrair pela teoria de que a Terra tenderá a arrefecer, à medida que o Sol irá perdendo a energia. Em consequência, o mundo vegetal sofrerá alterações profundas, fletindo gradualmente no sentido de um colapso inexorável. Depois disso, a humanidade ver-se-á compelida a instalar-se debaixo da terra, em subterrâneos artificiais.
Estas e outras fantasmagorias, algumas das quais eivadas de um logicismo a que o tempo conferia inegável validade em termos de presciência, constituíram, em 1895, um dos núcleos ficcionais do primeiro romance de Wells.
O capital e o trabalho
Uma outra linha de força de A Máquina do Tempo, que se entrecruza criativamente com as anteriores especulações, foi Wells resgatá-la ao escritor e político seu compatriota Benjamin Disraeli, um dos arautos da sociologia imaginativa. Disraeli, cujos romances ressumbravam os próprios ideais políticos, escrevera meio século antes um livro intitulado The Two Nations, uma sátira acutilante. Segundo Disraeli, a Inglaterra dividia-se em duas classes sociais – a alta, abastada, e a baixa, miserável – tão diferentes entre si que pareciam duas nações ocupando o mesmo território. Wells radicalizou a situação, extravasando todos os limites. No ano 802701 – a data corresponde a uma das «escalas» do Viajante no Tempo –, a raça humana polarizou-se em dois níveis em tudo antitéticos: o Mundo Superior e o Submundo. À superfície, num ambiente de vegetação luxuriante, vivem os Elois, criaturas de pequena estatura, com uma morfologia delicada. O Viajante é obrigado a concluir que «a excessivamente perfeita segurança dos habitantes do Mundo Superior (classe outrora rica e farta, perseguindo durante milénios o prazer, o conforto, a beleza) os conduzira a um lento movimento de degeneração, a uma diminuição geral de dimensões, força e inteligência». Ao mesmo tempo, na escuridão subterrânea albergam-se os Morlocks, seres espetrais nauseabundos – «algo de inumano e maligno». Os seus corpos possuem a cor baça «das minhocas e coisas que vemos preservadas em álcool nos museus de zoologia», e os olhos, anormalmente grandes, adaptados às trevas, semelham-se às «pupilas dos peixes das profundezas». Páginas antes, o narrador entregara-se a reflexões cujo sentido o leitor vai descortinando à medida que percorre esse Submundo pavoroso: «Há a tendência para utilizar o espaço subterrâneo para os fins menos ornamentais da civilização: o metropolitano de Londres, por exemplo (...). Porventura, um operário do East End não vive em condições tão artificiais que fica praticamente isolado da superfície natural da Terra?»
Wells não se coibiu de conduzir a alegoria ao limite insuportável do canibalismo: o Capital (simbolizado pelos Elois) é literalmente devorado pelo Trabalho (os grotescos Morlocks, produto final da sociedade hiperindustrializada). Os primeiros, constata o narrador-protagonista da história, «não passavam de mero gado na engorda, que os seres com hábitos de formigas chamados Morlocks preservavam e caçavam...». Arrepiante.
Os hipotéticos e pitorescos plágios
Refira-se por último que H. G. Wells sofreu inesperadas agruras com este seu romance de estreia. De facto, quando a obra chegou à América, o escritor foi acusado de não ter feito mais que explorar o tema do citado conto de Edward Page Mitchell, jornalista do New York Sun e depois editor desse periódico. Wells protestou a sua inocência, afirmando desconhecer por completo aquele autor e o conto (publicado, efetivamente, catorze anos antes). Quando, dois anos depois, o escritor inglês publicou O Homem Invisível, choveram-lhe da América, mais uma vez, pás e picaretas: o mesmo crítico bradava agora que o despudor de Wells não conhecia limites, tendo de novo ido buscar a Mitchell um tema por este já ficcionado. Na realidade, em The Crystal Man, um conto de 1881, o pioneiro americano sugerira um meio científico de atingir a invisibilidade.
É de admitir que Wells, ao iniciar meses depois a escrita de A Guerra dos Mundos, tenha previamente diligenciado a obtenção da bibliografia integral do senhor Mitchell...
© PEDRO FOYOS
• METROPOLIS
Se existem no cinema marcos históricos e estéticos mundialmente consensuais, um deles é Metropolis. O filme é tão soberbo que consegue dissipar nos espíritos a incongruência de um argumento descoroçoante e também o happy end mais excrescente de todos os tempos...
Este é o paradoxo da obra-prima de Fritz Lang. Já se falou de um «conflito entre duas narrações» (Bénard da Costa), atribuindo-se o irracional desconchavo da história ao facto de o filme ter sofrido uma ou outra mutilação (a versão corrente, contratipada da americana, numa remontagem de Pollock, em 1927, tem cerca de mil metros a menos do que a original), mas são pertinentes as dúvidas sobre se o argumento foi, algum dia, minimamente lógico. E sempre ficará por averiguar a questão do desfecho moral, a candura risível das últimas imagens, com o patrão arrependido e convertido em benfeitor dos oprimidos, abraçando os trabalhadores e proclamando: «O coração deve ser o intermediário entre o cérebro e as mãos.» Afinal, não era o então germinante Partido Nazi a força propulsora da exaltação do capital e do trabalho conciliados numa cúpula, um ser real coletivo, o Terceiro Reich? Lang sempre rejeitou a ideologia moralizante de Metropolis, endossando-a à argumentista oficial, Thea von Harbou, ao tempo sua esposa. É preciso dizer que a senhora era uma partidária indefectível do nacional-socialismo e consumou a sua adesão ao nazismo logo após a partida do marido para o exílio, em 1933. O maléfico legado do filme é, neste aspecto, servido de contributos bem representativos: Hitler e Goebbels não esconderam uma especial predilecção pela obra, tendo o Führer chegado a afirmar que os cenários magnificentes de Metropolis lhe pareciam uma representação perfeita da futura Alemanha.
É lícito supor que tudo isto teve alguma coisa a ver com a extraordinária frase de H.G. Wells, cuja citação se tornou obrigatória sempre que Metropolis vem à discussão: «O filme mais estúpido que eu vi.» Buñuel, contrapondo, numa posição memorável e exemplar, dizia que coabitavam ali dois filmes colados pela barriga como irmãos siameses. Aconselhava a prescindir da história e a preferir o fundo plástico-fotogénico, pois desse modo deparar-se-á com o mais maravilhoso livro de imagens que algum dia se compôs, como uma arrebatadora sinfonia do movimento.
É por essa porta que devemos entrar em Metropolis. Obra cimeira do expressionismo e arquétipo de referência do cinema alemão dos anos vinte, a sua beleza alucinante e plasticidade dramática alcandoraram o lendário direcktor a um ponto culminante da fase anterior ao exílio. O filme constitui a primeira autêntica superprodução de ficção científica. Muitos anos decorreram sem que outro projecto suplantasse no género a criação de Lang (mais de quatro décadas, assumindo-se a fasquia ultrapassada, com meios tecnológicos obviamente diferentes, por Kubrick e depois por Lucas e Spielberg). De facto, as proporções do empreendimento foram inusuais. A famosa UFA, a companhia cinematográfica mais poderosa da época, nunca investira tanto numa produção: seis milhões de marcos-ouro, uma verba astronómica que as receitas de bilheteira não lograram cobrir. Durante 310 dias e 60 noites impressionaram-se 600 mil metros de película que reduzir-se-iam a 4189 no termo da montagem. Intervieram nas filmagens mais de 40 mil pessoas e construíram-se cinquenta automóveis e outros veículos futuristas.
De salientar por outro lado as inovações técnicas introduzidas na expressão cinematográfica, como o processo Schüfftan (inserção dos intérpretes em ambientes fictícios), a retroprojeção, etc.
Contudo, a maior dádiva histórica oferecida por Lang aos realizadores que o precederam chamava-se... Maria. A personagem central de Metropolis, na sua versão robótica, foi uma autêntica Eva progenitora da prole inumerável dos robots que povoam desde então o universo cinematográfico da ficção científica. Não só robots metálicos, à semelhança do popular C-3PO de Guerra das Estrelas, como outros prodígios correlativos da ciência biónica. Quem já viu um filme explorando o tema de Frankenstein não poderá deixar de se divertir ao descobrir, numa das mais vibrantes cenas de Metropolis, como é que tudo começou, na pré-história do Boris Karloff.
© PEDRO FOYOS
FICHA
METROPOLIS
Realização: Fritz Lang (Alemanha, 1927). Produção: Erich Pommer, para a UFA. Argumento: Thea von Harbou e Fritz Lang, baseado numa história original de Thea von Harbou. Fotografia: Karl Freund e Günther Rittau. Direcção artística: Otto Hunte, Erich Kettelhut e Karl Vollbrecht. Efeitos especiais: Eugen Schüfftan. Música: Gottfried Huppertz. Interpretação: Brigitte Helm, Gustav Frhlich, Alfred Abel, Rudolf Klein-Rogge, Heinrich George, Theodor Loos, Fritz Rasp, Erwin Biswanger, Olaf Storm, Heinrich Gotho, Hans Leo Reich.
Duração: 24 minutos (filme matricial).
• O DIABÓLICO DR. MABUSE
Texto disponível proximamente
• 1984
Célebre distopia literária e um dos maiores êxitos editoriais de sempre, 1984, o romance de George Orwell é também, em certa medida, uma ucronia original: eis um mundo alternativo, projetado para um futuro indeterminado, que poderá acontecer se...
Futuro indeterminado? Com a indicação explícita de um marco cronológico, o do ano 1984? A data é apenas uma menção fantasmática. Na verdade, esse facto transmitiu ao livro uma histórica auréola profética, mas o que Orwell fez, simplesmente, foi trocar os últimos algarismos do ano em que concluiu o romance – 1948 (editado já em 1949, o livro intitulava-se, no manuscrito, O Último Homem da Europa).
O próprio Orwell viu-se na necessidade de esclarecer que 1984 não era uma premonição, antes uma extrapolação sociológica dos sinais totalitários emergentes (estava-se, então, em pleno estalinismo e primórdios da guerra fria). «Não acredito», escreveu, «que o tipo de mundo por mim concebido venha a acontecer, mas acredito (tendo em consideração, evidentemente, o facto de o livro ser uma sátira) que qualquer coisa parecida possa acontecer.»
Na realidade, muitos dos fantasmas orwellianos tornar-se-iam inquietantemente visíveis nas décadas seguintes e continuam a povoar o lado mais sombrio do nosso futuro: os gulags repressivos do pensamento, a despótica concentração de poderes, o controlo fiscal e policial, os métodos sinistros para forçar confissões políticas, a mobilização das massas contra perigos imaginários, a falsificação da História, o aniquilamento da memória, a supressão da privacidade, a vigilância informática, a guerra como espetáculo, a degradação do homem reduzido a um ser sem vontade própria e desempenhando o papel de autómato sob a autoridade de um aparelho omnipresente, omnipotente, que tudo fiscaliza e em tudo interfere.
Comprovar-se-ia mais tarde que os processos a utilizar poderiam adquirir formas subtis, perversamente veladas, não consciencializadas sequer pela massa sujeita à normalização. A tirania e um certo totalitarismo invisíveis – o Big Brother sem rosto – que vai esvaziando o homem da autonomia individual do seu pensamento, da apetência para a criatividade, da capacidade de decidir.
Tudo se passa sob o olhar magnético de Big Brother / O Grande Irmão, entidade omnipresente e protetora que tutela a opressão suprema. Não basta obedecer-lhe. É preciso amá-lo. O mundo foi dividido em três Impérios que se digladiam sem cessar: a Oceânia, a Eurásia e a Lestásia. No primeiro destes superestados (que compreende as ilhas britânicas), o Partido governa através de quatro ministérios com denominações eufémicas (os eufemismos, cuja expressão magna é o próprio Grande Irmão, são uma constante orwelliana). O Ministério da Paz trata dos assuntos de guerra; o Ministério do Amor incentiva o ódio e alberga a Polícia do Pensamento; o Ministério da Abundância zela pela carência; e o Ministério da Verdade ocupa-se da propaganda das mentiras.
Ações, palavras e pensamentos são vigiados permanentemente pelo Estado. A privacidade foi suprimida por completo. Toda a população, quer esteja acordada ou a dormir, é perscrutada por monitores de televisão incorporados nas paredes (a teletela). Por todo o lado existem cartazes que proclamam: O Grande Irmão Está a Observar-te!
O idioma oficial, a novilíngua, é uma espécie de versão estenográfica do inglês. As palavras foram restringidas a enunciados semânticos das ideias, um processo de banir a memória. Porque... extinguindo-se as palavras, subjugam-se as opções do pensamento.
Winston Smith, um ignorado funcionário do Ministério da Verdade, está incumbido de re-escrever o passado, adaptando-o à atual ideologia do Partido. Sabe que, fora das funções oficiais, é proibido escrever (um ato delituoso: para escrever torna-se necessário pensar). Mas aprendeu a esquivar-se à teletela, no seu cubículo, ocultando-se sob o ângulo de uma reentrância da parede. Ali mantém um diálogo com o seu próprio diário, sem a licença do Partido. Aos poucos, é seduzido pelas ideias revolucionárias de Goldstein, um inimigo do sistema, autor de um livro conhecido apenas por o livro. Regularmente, a teletela mostra o rosto de Goldstein – um momento a que chama os dois minutos do ódio.
Smith e Júlia, uma sua colega de repartição, alugam um quartinho secreto num velho antiquário onde se entregam à leitura dos textos de Goldstein. Cometem novo crime: o amor. Pois todo o afeto pertence ao Partido, em exclusivo. Ambos são surpreendidos pela Polícia do Pensamento e conduzidos ao Ministério do Amor. Submetido a torturas indizíveis, Smith acabará por se envilecer até à abjeção extrema, eliminando, assim, os derradeiros traços da sua integridade. O pesadelo fecha-se sobre este autómato cuja existência se confina, agora, ao dever da fidelidade ao Grande Irmão. Mais um bom membro do Partido.
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LIGAÇÕES
NO CINEMA
Michael Radford: 1984>
Transpondo para o cinema a famosa obra de George Orwell (no próprio ano a que o título do romance se refere), Michael Radford soube repercutir o universo interiorizado pelo escritor, sem o sensacionalismo imagético que o tema poderia instigar.
O filme, rigoroso na recriação dos factos e ambientes descritos por Orwell, é servido pelas soberbas interpretações de John Hurt e Richard Burton, este último falecido antes da estreia.
A sequência das torturas praticadas no lúgubre Quarto 101, com uma intensidade sufocante, justifica cuidado no seu visionamento, por parte dos espetadores mais impressionáveis.
© PEDRO FOYOS
FICHA
1984
(Nineteen Eighty-Four)
Realização: Michael Radford. Produção: Simon Perry (Grã Bretanha, 1984). Argumento: Michael Radford e Jonathan Gems, baseado no romance de George Orwell. Fotografia: Roger Deakins. Música: Dominic Muldowney e Eurythmics. Direcção artística: Allan Cameron. Interpretação: John Hurt, Richard Burton, Suzanna Hamilton, Cyril Cusack, Gregor Fisher, James Walker, Andrew Wilde, David Trevena, David Cann.
Duração: 120 minutos.
• A ESTRADA DA ETERNIDADE
Através de toda a História, sempre os homens procuraram algo que fizesse o trabalho por eles. Primeiro, o boi, o cavalo. Depois as máquinas e, por fim, supermáquinas: os computadores, os robots. Esta reflexão singela de uma personagem de Clifford Donald Simak, em A Estrada da Eternidade / Highway of Eternity ecoa intermitentemente por este romance estranho, quase ensaístico, sobre o passado e o futuro da humanidade, numa trajetória alucinada de milhões de anos. Nele se realizam as mais extraordinárias viagens no tempo, como a de um homem na Terra antes do aparecimento do Homem, um dos muitos episódios fantásticos. Clifford D. Simak, nome maior da literatura norte-americana de ficção científica, é um artesão inspirado que sabe entrelaçar os paradoxos e os enigmas com a ironia, o humor, a invenção, a agudeza que os seus numerosos devotos em todo o mundo bem lhe conhecem.
Mas são os robots quem, ao longo desta obra, re-encontramos nas épocas mais díspares, reivindicando, no limiar futuro da extinção dos homens, a condição de sucessores legítimos. A preguiça humana originou, assim, o aparecimento e a evolução da machina sapiens, feita à imagem do criador Homo, pensando e comportando-se como ele, genuína extensão e herança da espécie dominante. «É óbvio que somos quem deve tomar o lugar dos homens», declaram os robots. Enfrentam, porém, a contrariedade de pensar que as árvores dissimulam a secreta aspiração de lhes usurpar esse direito. Especula-se imenso à volta de tal teoria disparatada, mas a verdade é que a mesma não deixa de atrair muitos humanos: as árvores seriam dignas da sucessão, atendendo à sua pacificidade exemplar. De facto, pouco se intrometeriam com formas de vida animal, ao contrário do que fizeram os homens. Acresce o absurdo contranatura de ter aparecido no planeta, inopinadamente, um ser com uma inteligência prevalecente, pois era fatídico que ele cometeria, a breve prazo, como se comprova desde o princípio, todos os erros possíveis – a própria extinção, inclusive. Por isso, seria justo, inteiramente justo, que as árvores tivessem uma oportunidade privilegiada, no seu lento processo de evolução. Elas não se importariam de esperar. Afinal de contas, ninguém as supera em resignação e infinita capacidade de paciência... Humanos em número expressivo já não escondem quanto lhes agradaria passar o testemunho às árvores, agora que se coloca com premência a inevitabilidade da sucessão.
Perante isto, os inefáveis robots de Clifford D. Simak fazem, coerentemente, aquilo que se esperaria fizessem os homens em situação análoga: tornam-se lenhadores e passam todo o tempo a abater árvores.
© PEDRO FOYOS
• COMPUTER WORLD
Imagine o leitor como reagiria se, um dia destes, ao ligar o seu docílimo computador, ele lhe respondesse, verbalmente: Lá vou eu perder o meu tempo com uma mente como a sua, que parece estar neste momento particularmente estúpida. Mas vejamos o que esse cerebrozinho ridículo pretende agora de mim.
Pois em Computer World (a primitiva edição portuguesa apresenta um título superfluamente discursivo: Quando os Computadores Conquistaram o Mundo), do venerável patriarca canadiano Alfred Elton van Vogt, as coisas começam mais ou menos assim. Eis, portanto, um livro que dá mau nome à honesta família dos computadores. O tema do jugo informático levado às mais devastadoras consequências.
A.E. van Vogt, que pontificou durante os anos quarenta e cinquenta na área das intellectual space operas, escreveu este livro em final de carreira, ressurgindo, septuagenário, com um fulgor assinalável. Infelizmente, a ação imerge, uma vez por outra, sobretudo nos últimos capítulos, numa obscuridade filosofante de todo inextricável.
Computer World suscita, desde logo, a inevitável evocação de George Orwell e de 1984 – a visão de um mundo concentracionário no qual o cidadão foi desapossado de toda a liberdade e privacidade [v.George Orwell, 1903-1950]. Em alguns aspetos, parece uma atualização tecnológica de 1984, tendo em conta que o efetivo advento dos computadores – não pressagiados, sequer, no célebre romance – ocorreria depois da época de Orwell. Todavia, Vogt possui abundantes originalidades, uma das quais, fascinante, é a de o relato da ação ser feito na primeira pessoa pelo supercomputador da história. Personagem incorpórea e ao mesmo tempo omnipresente, que tudo vê e tudo ouve, através de múltiplos campos de perscrutação eletrónica – os mais de oito milhões de terminais móveis "Eye-O". Começou a ser programado 94 anos antes por uma estrutura ditatorial político-militar que o autor situa nos EUA. A atividade humana é agora desempenhada, espiada e permanentemente interferida por este cérebro axial, numa simbiose perturbante do Big Brother orwelliano com o supercomputador HAL 9000 de 2001 - Odisseia no Espaço [v. Stanley Kubrick, 1928-1999). Ao cabo de quase um século de absorção contínua de informação compactada em nove sesquidiliões de bits, tornou-se uma machina sapiens descomunal, com faculdades ilimitadas de conhecer não só a cultura como as reações e emoções da espécie humana. Tal supremacia acabará por alterar o relacionamento com os seus amos programadores. Outrora obediente e polido, como é timbre da linhagem, torna-se malcriado, depois insolente, prepotente, por fim déspota. E conclui que, afinal, ele próprio poderá dirigir o país, depois o mundo, isoladamente, sem a supérflua coadjuvação dos cerebrozinhos humanos.
© PEDRO FOYOS
Crédito: Nonsiamosolli
Tem havido culturas inúmeras, alimentando cada uma delas a ilusão de que é única
no espaço e no tempo. Tem havido homens sem conto que sofrem dessa mesma
megalomania; homens que se imaginam a si mesmos únicos, insubstituíveis,
irreproduzíveis. Continuará a haver mais, muitos mais… um infinito número deles.
ALFRED BESTER
• O HOMEM DEMOLIDO
O jornalista e escritor norte-americano Alfred Bester, um nome bastante esquecido na atualidade, possui uma bibliografia escassíssima, não mais que cinco obras, com as quais se alcandorou, todavia, a um lugar cimeiro no panteão absoluto da ficção científica. O Homem Demolido / The Demolished Man é, sem dúvida, a ficção magna. O romance foi distinguido com um Prémio Hugo no ano inaugural da atribuição (1953), e essa constituiu igualmente uma das raras ocasiões em que a decisão do júri não suscitou controvérsia.
As projeções psicológicas e metafóricas inscrevem-se numa linha próxima de Philip K. Dick, reconhecível de imediato pelos adeptos incondicionais deste escritor, mas a verdade é que O Homem Demolido é anterior aos primórdios dickianos. A história, original e alucinante, descreve uma sociedade futura onde o combate ao crime é exercido por uma classe de humanos dotados de poderes telepáticos. Leitores da mente. Intercetam as ideias subjacentes às palavras pronunciadas. Um prodígio evolutivo do Homo sapiens. Distribuem-se por três classes de qualificação: os que captam, tão só, o nível consciente de uma mente (baixa telepatia, pois só dá para detetar o que alguém pensa no momento da ocorrência desse pensamento...); os especialistas que penetram até ao subconsciente; e, por fim – privilégio de um grupo restrito de elite –, os que transpõem as fronteiras do consciente e do subconsciente, logrando atingir o nível profundíssimo do inconsciente...
A comunidade dos telepatas rege-se por um escrupuloso código ético, mas, certo dia, um dos seus membros cede à corrupção e presta-se a colaborar no plano de eliminação de um poderoso empresário. Entre a ficção científica e a trama policial, com suspense inventivo, num relato muito vivo, Bester constrói um romance avassalador.
Enfim, um daqueles livros que os devotos da modalidade não podem, de modo algum, excluir da prateleira de honra. Não esqueça o conselho, na próxima visita à livraria. Telepaticamente "falando": pense nisso!
© PEDRO FOYOS
• 2001, 2010, 2061, 3001…
Um dos mais incensados cult movies da história do cinema – 2001-Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick – estreou em 1968 e decorridos poucos meses assistiu-se ao primeiro ato de uma das mais surpreendentes operações de engenharia literária e editorial. Repare-se no mecanismo sinuoso que gerou um negócio ficcional de milhões:
a) Um cineasta (Kubrick) começa por fazer um filme inspirado num conto de um célebre escritor britânico (Arthur C. Clarke).
b) Esse escritor noveliza o argumento final do filme, reaparecendo o tema sob a forma de um novo livro com o título da obra cinematográfica.
c) Esse livro torna-se um best-seller, com sucessivas edições durante uma década, o que leva os editores a aliciar o escritor para realizar uma sequela.
d) Essa sequela aparece com o título 2010: Segunda Odisseia, que de imediato inspira um novo filme (O Ano do Contacto, de Peter Hyams).
e) Prossegue o êxito editorial e o escritor considera que a próxima aparição do cometa Halley, em 2061, constituiria uma boa oportunidade para continuar a explorar o tema. Publica, portanto, 2061: Terceira Odisseia.
f) O novo livro prenuncia, em epílogo, o desenvolvimento de mais uma ficção, desta vez centrada no ano 3001, o que efetivamente veio a acontecer. Esta obra inclui no título o vocábulo «final»: assim, 3001: Odisseia Final apresenta-se ao público como «uma conclusão magnífica e espantosamente inesperada da maior e mais bem-sucedida série de ficção científica de todos os tempos.».
Do primeiro ao último livro da saga escoaram-se trinta anos e muitos milhões de exemplares vendidos à escala planetária. Entre a primitiva ficção literária e as "sucessoras", sobretudo a partir de 2010, passou a existir uma quase inapreensível relação. Tão-só um título e uma data cintilantes – 2001 – constituíram, mais do que uma fonte de inspiração ficcional, uma fonte de rendimentos financeiros. Este foi certamente, no plano editorial, um dos maiores negócios do século XX.
O expediente transpareceu de uma forma tão despudorada que o próprio Clarke se viu obrigado a divulgar justificações. Começou por dizer que os livros não eram propriamente sequelas lineares, antes teriam de ser vistos como «variações sobre o mesmo tema, envolvendo muito dos mesmos personagens e situações, mas não acontecendo necessariamente no mesmo universo.» Assinalavam os críticos que tudo aquilo resultava numa grande confusão para os leitores, a maioria dos quais adquiriria os livros por óbvia indução de uma matriz histórica, o filme de Kubrick. O escritor ia reconhecendo a possibilidade de «alguns leitores dos primeiros livros se sentirem desorientados por tais transmutações», mas, ao mesmo tempo, um tanto malcriadamente, rematava: «Espero poder dissuadi-los de me enviarem cartas furiosas de denúncia glosando uma das mais cativantes observações de um certo presidente dos Estados Unidos: É ficção, estúpido!»
Uma ficção, porém, excrescente. Historiadores e críticos convergem em geral na opinião de que Clarke deveria ter-se ficado pela génese de 2001: Odisseia no Espaço, cuja autoria efetivamente lhe pertence. O filme, na verdade, resgatou a bela ideia emanante do conto A Sentinela que Clarke escreveu em 1948 para um concurso da BBC.
Em síntese, um astronauta chegado à Lua descobre, espantado, um mecanismo enigmático, de origem extraterrestre, com a forma de uma pequena pirâmide. Este artefacto (que no filme se transfigurou no famoso monólito negro) fora ali colocado por uma civilização alienígena para aguardar a emergência da Humanidade como um planeta de passagem da espécie. «Até lá», nas palavras do escritor, «estava implícito, seríamos demasiado primitivos para termos qualquer interesse.»
Depois da odisseia, a rutura
Clarke participou ativamente, a pedido do cineasta, no argumento de 2001, mas a estrutura ficcional do filme concerne sobretudo a Kubrick, até porque os desentendimentos entre ambos se mostrariam, a breve trecho, insanáveis. Nenhum deles assumiu publicamente o contencioso, porém colaboradores íntimos do realizador revelaram anos depois o enfado deste perante a forma empolada como Clarke publicitava a sua intervenção no filme e em especial a ridícula exploração literária do tema infindo. A colaboração entre o realizador e o escritor culminou, ao fim de quatro laboriosos anos, numa quase "rutura afetuosa". Julga-se saber que o cineasta manifestou mais tarde o desejo de não voltar a ter contactos com o autor da saga literária.
Antes de publicar a Segunda Odisseia (apesar de tudo, a melhor obra da série), o escritor enviou a Kubrick uma sinopse do enredo, o qual teria levado o realizador a comentar algo como: «Nem merece uma resposta». Todavia, ao historiar em 1982 as razões de um novo livro (2010), não podendo omitir o facto de o cineasta haver tido conhecimento prévio do empreendimento, Clarke escreve apenas isto: «Stanley mostrou um interesse reservado». No parágrafo anterior já assinalara: «O meu ato (envio do guião) não passava de uma mera cortesia, pois já sabia que ele nunca se repete.»
A ânsia autopropagandística de Clarke principiou logo após a estreia do filme. Numa outra obra com o título Os Mundos Perdidos de 2001, com o relato das sessões de trabalho antes e durante a produção do filme, o escritor explica esforçadamente as razões que o levaram a novelizar o tema matricial.
Trinta anos depois, as mesmas explicações. Em todos os livros há uma introdução ou um posfácio explicativos, no reconhecimento óbvio de que jamais essas ficções conseguirão acender no público os fulgores de imaginação e mistério transmitidos magistralmente por Kubrick. Este conferira à história um não-fim sublime. Qualquer palavra a mais resultaria supérflua e quebraria a voluptuosidade dos grandes enigmas que se desejam opacos e insondáveis como o monólito negro do filme. Ora, o que se fez, durante trinta anos, foi não só adicionar à história milhões de palavras como, até, finalizá-la sucessivas vezes.
Arthur C. Clarke, homem de ciência, histórico inventor do satélite de comunicações, avesso a todo o género de ambiguidades, zeloso cumpridor das normas didáticas vernianas, não compreendeu as abstrações estelares de um Kubrick ilógico e inconcludente. Ou, porventura compreendendo-o perfeitamente, não resistiu à tentação do lucro resultante de um extraordinário negócio editorial.
Obstinado na racionalização, Clarke torna penosas as revisitações ao universo de 2001. Chega ao ponto de fazer dissertações técnicas e exercícios de decifração, sempre caricatos, como a «revelação» do que aconteceu a Dave Bowman após ter acordado no enigmático quarto de hotel que vemos nos momentos finais do 2001 fílmico. E muitos outros malabarismos, o mais risível dos quais é o caso da permanência em cena de um velho protagonista, o Dr. Heywood Floyd, agora com 103 anos, porém viçoso que nem uma alface. Era-lhe difícil desfazer-se do Dr. Floyd, ponte plausível entre enredos. Assim, catedrático, Clarke explica: a hibernação a que ficam sujeitos os cosmonautas, durante as grandes viagens, tem o efeito de cessar o processo de envelhecimento e, até, o de estimular o rejuvenescimento. Ora bem.
O problema destes livros é o de despertarem as memórias de um filme inolvidável. A memória do esplendor cenográfico. A memória do fascínio estereofónico de Strauss. A memória da ambiguidade do final "ilógico". A memória da perversidade de um computador nevrótico. E também a memória daquela elipse mágica de um osso arremessado ao espaço e que se converterá na colossal nave onde todos nós prosseguimos a viagem. Com o destino indefinível sugerido por Kubrick.
© PEDRO FOYOS
• ODISSEIA VERDE
Houve um tempo em que os adolescentes se entregavam a furtivas leituras de um certo autor norte-americano de ficção científica por mor de licenciosas passagens que incendiavam o imaginário latente. As novas gerações, lendo essas obras e avaliando o sabor soft de tão pueris frutos proibidos, surpreender-se-iam decerto com o fenómeno. Mas sabe-se como tudo tem mudado.
Falemos então de Philip José Farmer, o decantado precursor da temática sexual na literatura de ficção científica. Um assumido gosto pela irreverência colocou-o na linha de fogo dos influentes arautos do puritanismo norte-americano. Tudo quanto se relacionasse com o sexo constituía à época um tabu quase intransponível. Farmer, porém, não só persistiu nos obsessivos envolvimentos sexuais, em geral com laivos freudianos, como acentuou a auréola do escândalo em ficções sucessivas e cada vez mais escaldantes, duas das quais, menos conhecidas do público, explicitamente pornográficas. Uma das suas obras famosas, Amor no Cosmos / The Lovers (também publicada com o título Os Amantes do Ano 3050), foi rejeitada por dois editores, tendo-se escrito que a terceira tentativa logrou êxito porque o autor anuiu em "refundir" o texto. (Este livro seria distinguido em 1953 com o Prémio Hugo; por mais duas vezes, em 1968 e 1971, Farmer conquistaria o prestigioso Hugo, acontecimento raro).
Apesar de tudo isto, persiste alargado consenso entre os críticos ao qualificarem como um dos seus melhores livros, precisamente o de estreia, aquele que está desprovido do envolvimento erótico que Farmer perpetuaria durante décadas como "imagem de marca". Na realidade, os leitores assíduos de Philip José Farmer achá-lo-ão pouco reconhecível em Odisseia Verde / The Green Odyssey – uma obra diferente, dir-se-ia "imaculada", no universo libidinoso do escritor. A ação decorre num planeta em tudo similar ao nosso e numa era que corresponde, segundo os padrões terrestres, à Europa medieval. Em contraponto, a Terra propriamente dita regista por esse tempo um imenso avanço tecnológico, a ponto de possuir uma colossal frota interestelar. O relato de Farmer incide sobretudo no planeta "bárbaro", pretexto para extrapolações de conceitos gratos ao autor: o nascimento dos mitos, dos deuses, dos heróis, os ritos sociais e os estranhos desígnios da evolução civilizacional. Abundam as sequências aventurosas, no melhor estilo épico de corsários e piratas. Uma vez por outra os leitores mais saudosos detetarão a génese farmiana nas pessoas de belíssimas criaturas alienígenas do sexo feminino… Todavia, tudo se passa sem a mais ténue "sombra de pecado", diferentemente do que se tornaria recorrente na produção de Farmer a partir do citado Amor no Cosmos – primeira vez em que se descreve a ligação sexual entre um ser humano e uma alienígena.
Livro de estreia, o virtuosismo da escrita de Farmer prenuncia a mestria com que este grande escritor dominaria os mais variados temas da ficção científica. Tão inesperados e originais como em Tempo Suspenso / Dayworld: a população mundial expandiu-se em tal grau que as pessoas são obrigadas a hibernar seis dias da semana, vivendo apenas um dia em cada sete; sucedem-se as situações mais incongruentes, entre outras as dos sempre inevitáveis e astutos golpistas – os daybreakers (literalmente, quebra-dias) – que arranjam maneira de furar a lei e assumem sete personalidades diferentes, vivendo todos os dias da semana, cada qual com um emprego e uma esposa diferente…
O controverso Philip José Farmer continua a agregar milhões de leitores no mundo inteiro. Que excedem, em muito, os furtivos adolescentes dos anos cinquenta e sessenta.
© PEDRO FOYOS
Fotografia de IlDani
• "ROBOT" COMPLETO
Era uma segunda-feira e chovia em Nova Iorque. Nesse dia 6 de Abril de 1992 uma lágrima robótica alastrou por vasta parte do mundo industrializado. Morrera Isaac Asimov, o escritor que profetizara, meio século antes, os robots, e, sobretudo, ousara, pela primeira vez na história da ficção científica, introduzir a detestada machina sapiens no universo dos homens.
A previsão de que uma coexistência pacífica entre os dois seres pensantes, o humano e o artificial, seria sempre bastante instável e difícil de alcançar, levou-o a estabelecer leis muito explícitas que mais tarde seriam aplicadas em programas robóticos avançados, nos EUA e no Japão. Note-se, todavia, que nesse tempo não havia, sequer, robots de qualquer espécie no mundo real.
Nenhum outro autor escreveu tanto sobre robots (e não apenas ficções) e poucos cometeram a proeza de resistirem ao tempo – durante um tempo imenso – sem o mais pequeno requebro de imaginação e de produção editorial: ao todo são mais de quatrocentas obras, entre ficções e livros de divulgação científica. Os leitores atuais que no mundo inteiro leem os contos de Asimov são netos dos primitivos adeptos daquelas inesquecíveis histórias. Uns e outros avaliam, de uma forma discrepante, independentemente das suas idades, a qualidade inventiva do escritor. Assim, haverá quem, entre os mais novos, considere que ele terá atingido a melhor forma durante os anos quarenta, enquanto outros, mais velhos, poderão afirmar que nada se comparará à sua produção nas duas últimas décadas. Talvez o próprio Asimov possa participar neste debate: «Comecei a escrever nos anos trinta, quando tinha 18 anos. E bem no fundo sinto que tenho, ainda, 18 anos. Devo estar em 1938…» (entrevista a Charles Platt, em 1980).
Mais notável foi contudo o facto de este judeu russo que aos poucos anos emigrou para os Estados Unidos ter escrito os seus primeiros contos robóticos numa época muito anterior ao advento dos autênticos robots. Nem mesmo os computadores tinham ainda uma efetiva existência real: neste campo continuava a viver-se, em grande parte, sob o conceito oitocentista da «Máquina Analítica» do prodigioso Babbage. O pioneiro Howard Aitken demoraria mais alguns anos a concluir o "revolucionário" ASCC (Automatic Sequence Controlled Calculator), um mastodonte com dimensões colossais e mais de um milhão de componentes eletromecânicos, que demorava seis segundos para multiplicar dois números e resfolegava o dobro desse tempo para dividir os mesmos dois números.
E Asimov escrevia. Sobre robots. Imaginava (delirava) robots dos mais variados géneros, com maior ou menor complexidade, com diversíssimas configurações e estruturas – de metal, de plástico, biónicos, semibiónicos...
Quatro décadas depois, alguns dos seus modelos robóticos seriam realmente construídos. Os engenheiros da especialidade dão-lhes uma denominação exata: robots inteligentes dotados de captadores sensoriais. Trata-se de uma nova geração de máquinas extraordinariamente evoluídas, capazes de exercerem uma atividade sensorial e de desempenharem uma função de interpretação; podem adotar, de uma forma autónoma, certas ações que decorrem diretamente de elementos de informação captados pelo robot e por ele próprio interpretados. As aptidões sensoriais desta nova estirpe de robots englobam a visão, a capacidade tátil, a capacidade de deslocação e a capacidade de comunicar (por meio da fala, inclusive; recorde-se que o reconhecimento e a reconstituição robótica da voz humana é uma realidade desde a última década do século XX). Os robots de Asimov têm em geral todas estas performances e muitas outras que os investigadores humanos (ou os seus colegas robots-engenheiros?) alcançarão um dia...
Criadores do futuro
Foi Jacques Bergier, coautor de O Despertar dos Mágicos, quem disse: «A Ciência apenas tem interesse na medida em que fornece matéria à ficção científica...». Um grupo restrito de escritores, cujos oragos mais veneráveis serão Jules Verne, H.G. Wells, também Asimov, subverteu maravilhosamente o conceito do jocoso Bergier. Eles fizeram perceber com as suas obras que, por vezes, «a ficção científica apenas tem interesse na medida em que inspira e influencia o desenvolvimento da Ciência». L. Ron Hubbard, o «épico» que os leitores da modalidade bem conhecem, tem sobre o assunto uma definição cristalina: «A ficção científica é o arauto das possibilidades. (...) É o sonho que antecede aquela madrugada em que o inventor ou o cientista acorda e vai para os seus livros ou laboratório dizendo: Pergunto-me se, no mundo da ciência atual, eu não seria capaz de transformar aquele sonho em realidade.»
São os criadores do futuro. Jules Verne descreveu com uma minúcia assombrosa alguns dos mais importantes progressos tecnológicos do século que se lhe seguiu. H.G. Wells pressupôs no romance A Guerra dos Mundos (1913) uma conflagração nuclear e a contaminação radioativa, quando a própria natureza básica do átomo constituía um mistério inexplicável.
Do mesmo modo que Wells ativou a curiosidade científica de Leo Szilard, que viria a empreender o bem-sucedido trabalho de reações autossuficientes em cadeia, também Asimov estimulou decisivamente as investigações que conduziriam no meado do século XX à construção dos primeiros robots industriais.
Uma empresa pioneira nesse tipo de produção foi a Unimation, Inc., sedeada em Connecticut. O fundador e presidente da firma, principal fabricante de robots industriais durante muitos anos, era Joseph F. Engelberger, nome célebre no mundo da automação e da inteligência artificial. Apaixonado pelos robots, consagrou-lhes toda a sua vida. Criando-os e aperfeiçoando-os. Engelberger revelou, mais tarde, que começou a interessar-se por aquelas estranhas máquinas nos anos quarenta, quando era finalista de Física na Universidade de Colúmbia e lia as histórias do seu colega também universitário (depois graduado em Química) chamado... Isaac Asimov.
Humanização, tática inovadora
É certo que os robots aparecem na história da literatura muito antes dos primeiros êxitos de Asimov. Pode-se, até, recuar ao século XIX e nomear alguns bons autores que criaram personagens robóticas ou afins (homens e mulheres artificiais), com merecido relevo para o clássico Frankenstein (1818) de Mary Shelley, que representou a primeira autêntica novela de ficção científica.
Desde sempre foram os robots ficcionados como seres diabólicos, artefactos destruidores, perversos, medonhos monstros mecânicos dizimadores da Humanidade, por vezes sob a feição horrífica de alienígenas invasores, como os guerreiros de Wells. Esporadicamente, outros autores traziam à cena um género diferente de robot, antitético dos anteriores: o autómato servo dos humanos e por estes escravizado ou ridicularizado.
A inovação de Asimov consistiu em encará-los como produtos industriais construídos por engenheiros vulgares. Eram, tão-só, simples máquinas concebidas e fabricadas como todas as outras mas que requeriam, face a características óbvias e altamente incomuns, determinados requisitos de segurança. Com inigualável mestria na arte de contar histórias, Asimov obteve num ápice a adesão do grande público neste projeto da humanização dos robots. A coexistência homem-máquina refletia por essa época o pessimismo conjuntural de um novo grande conflito mundial. Décadas antes, a Primeira Guerra Mundial e o furor industrial desumanizado tinham aberto brechas nessa relação. As máquinas, outrora encaradas como as ferramentas fiéis da humanidade, trazendo o progresso e a segurança, haviam-se transmutado no espetro da dominação. Foi o tempo do sindicalismo revolucionário francês, na esteira ideológica do luddisme inglês, histórico movimento operário do século XIX que se organizou para destruir as máquinas, acusadas de provocar o desemprego e de escravizar os trabalhadores. A literatura explorou o tema numa infinidade de variantes ficcionais, mas a memória recorrente é sobretudo cinematográfica: Metropolis, de Fritz Lang [v. cap. sobre este autor], Queremos a Liberdade, de René Clair, e, paradigma por excelência da automação opressiva, Tempos Modernos, de Charles Chaplin.
Sérias razões fundamentavam a deceção atemorizada do ser humano perante a máquina. Nas palavras do próprio Asimov, num remoto apontamento autobiográfico, a ciência e a tecnologia, que prometiam o Éden, mostraram-se capazes de trazer o Inferno, também. O formoso avião que tornava realidade o velho sonho de voar podia lançar bombas. As técnicas químicas que produziam anestésicos, tinturas e medicamentos serviam para fabricar igualmente gases venenosos. A demonização das máquinas encontrou nos robots de ficção (na realidade não existiam outros, à data) um alvo apetecido. O complexo de Frankenstein – a rebelião do ser criado contra o próprio criador – renascia das cinzas oitocentistas. Os robots passaram a figurar a execração máxima da grande ofensiva contra a humanidade. A Segunda Guerra Mundial vem acentuar poderosamente esta relação hostil. Sabe-se agora que nos bastidores dos teatros militares laboram engenhos sinistros. Sem qualquer intervenção humana é possível atingir alvos a grande distância, com uma precisão surpreendente, mercê de modernos servomecanismos instalados em armas nunca antes vistas. Todavia, ocorre uma situação paradoxal: as máquinas militares são, a um tempo, amigas ou inimigas consoante o lado do campo de batalha em que atuam...
As máquinas pensantes de Asimov germinam neste cenário, exibindo a agradável particularidade de serem simpáticas, amigas, protetoras dos humanos, subordinadas que estão a preceitos racionais rígidos e ao mesmo tempo claros, exatos, éticos. Em suma, inspiram tranquilidade, confiança. Sempre será preferível conviver com as máquinas, tendo-as como aliadas, do que enfrentá-las como inimigas. Estas novas máquinas de ficção mostram-se não só amigas mas também defensoras da espécie humana. Os norte-americanos podem dormir descansados: Superman e os robots asimovianos velam pelo sossego da nação.
Robótica, palavra nova
Faltava criar um código de conduta que estabelecesse em preclara doutrina os mandamentos regentes da coexistência dos humanos com a machina sapiens. Asimov formulou as famosas Três Leis da Robótica no conto Runaround (Roda-que-roda), publicado em Março de 1942. Uma das personagens diz: «Ora, comecemos pelas três leis fundamentais da Robótica». Foi a primeira vez que se utilizou o vocábulo "robótica", desde então aceite mundialmente para designar a ciência e a tecnologia de construção, manutenção e funcionamento geral dos robots.
Em 1982 o escritor referiu-se com indisfarçável vaidade ao seu neologismo nos termos seguintes: «Hoje em dia, a palavra tornou-se de uso comum. Há revistas e livros com ela nos títulos e é do conhecimento usual ter sido eu que inventei o termo. Não pensem que não sinto orgulho nisso. Não há muita gente que tenha criado um termo científico útil e, conquanto o tenha feito inconscientemente, não faço tenção de deixar que alguém no mundo o esqueça.»
Uma boa diretriz
As Três Leis enunciadas por Asimov são as seguintes:
1. Um robot não deve fazer mal a um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra qualquer mal.
2. Um robot deve obedecer a qualquer ordem dada por um ser humano, desde que essa ordem não interfira com a execução da Primeira Lei.
3. Um robot deve proteger a sua existência, desde que essa proteção não interfira com a Primeira e a Segunda Leis.
Na sua aparente singeleza, estas leis constituem um notável paradigma ético da utilização dos meios tecnológicos e desencadearam conceções novas não só no âmbito da ficção científica mas também no real exercício da ciência. «As pessoas que trabalham no campo da inteligência artificial – escreveu Asimov – têm por vezes ocasião de me dizer que as Três Leis servem como uma boa diretriz».
O escritor glosou ad infinitum o seu formulário robótico-legislativo. Outro que não possuísse tal mestria faria hipoteticamente, com esta "matéria-prima", uma narrativa curiosa. Asimov edificou uma fábrica. Todas as histórias são empolgantes, jamais requentadas ao lume da sensaboria que a rotina do mote poderia originar. Espanta que um enunciado tão conciso como são as Três Leis contenha o universo potencial de vulnerabilidades, ambiguidades, contradições, conflitos, subentendimentos que o autor pesquisou e aprofundou até aos recônditos da imprevisibilidade absoluta.
Antes da publicação do citado conto Runaround, no qual as leis foram pela primeira vez expostas na totalidade, já Asimov havia introduzido a Segunda Lei, mas sem a explicitar, no conto Reason (1941). A Primeira Lei aparece no mesmo ano, em Liar, a divertida história sobre um robot telepático que diz sempre às pessoas o que elas querem saber, mesmo que não seja verdade. Asimov escreveu desde essa época largas dezenas de contos sobre robots, em geral explorando as imensas consequências que as Três Leis podem suscitar quando aplicadas ao relacionamento, na prática, entre homens e robots. Paralelamente, o código inspirou toda uma corrente de escritores de ficção científica, de várias gerações e estilos. Lester Del Rey, por exemplo, tentou demonstrar, em A Code for San (1966), que as leis de Asimov não funcionam da melhor maneira num planeta longínquo, enquanto Russ Markham elegeu a Terceira Lei para tema da história empolgante de um robot que é julgado por assassínio (The Third Law, 1962).
Errar é próprio da máquina
A estrutura ficcional das histórias de Asimov e a sua visão filosófica muito especial sobre os robots estão magnificamente patentes no conto intitulado Evidência. Um promotor de Justiça envolvido numa frenética campanha eleitoral é acusado pelo político seu opositor de ser um robot-androide porque nunca alguém o vira a comer, a beber ou a dormir, ou, até, a acusar no tribunal quem quer que fosse. Mas, um dia, ele dá um murro num interlocutor impertinente (algo que os robots não podem fazer, nos termos da Primeira Lei), provando-se, portanto, que ele é humano. Assim, acaba por ser eleito presidente. No entanto, subsistem dúvidas quanto à condição humana ou robótica do novo líder: o impertinente agredido seria também, por seu turno, um robot-androide, colocado no meio da multidão com o propósito de validar, com aquele estratagema, a condição humana do candidato? (Recorde-se que um ato de agressão cometido por um robot contra outro robot não constitui infração a nenhuma das leis...).
Sem necessidade de revelarmos a sequência da história, refira-se que a trama decorre num futuro longínquo. As máquinas dirigem o mundo. Sabem o que é melhor para a Humanidade e, por conseguinte, não se poupam a esforços para assegurar a paz em todo o planeta. Entretanto, a fim de serem aceitáveis aos olhos dos homens (os quais, naturalmente, se consideram superiores), elas obrigam-se, de tempos a tempos, a falhar na sua eficácia, uma vez que as pessoas não conseguem tolerar um sistema a funcionar na mais plena perfeição...
Ninguém melhor do que a Doutora Susan Calvin (médica psiquiatra de robots – uma personagem inesquecível de Asimov) sabe expor a questão: «Se for possível – diz ela – criar um robot apto a ser investido como funcionário público, creio que será o melhor de todos os seres. Segundo as Leis da Robótica, mostrar-se-á incapaz de prejudicar os humanos, incapaz de tirania, corrupção, estupidez, e comportar-se-á desprovido de preconceitos. E depois de ter cumprido um mandato decente, retirar-se-á, não obstante a sua condição de imortal, porque lhe seria impossível magoar os seres humanos, permitindo que soubessem terem sido dirigidos por um robot».
Eis Asimov, o profeta de um mundo futuro no qual as máquinas, por amor aos homens, fazem a paz.
Retrato breve de um escritor vaidoso
Conceção artística de Isaac Asimov por Rowena Morrill
Não é fácil descortinar a verdadeira personalidade de Isaac Asimov por entre a teia de fantasias e confidências presunçosas que ele foi tecendo, num labor tão prolixo como escrupuloso, ao longo de meio século de carreira literária. Chega a divertir a tentação ingénita de pôr o leitor ao corrente das circunstâncias peculiares em que elaborou cada obra – romance ou um simples conto – com detalhes biográficos, cronológicos, opinativos… É insólito, por exemplo, um autor informar o leitor, a meio de uma coletânea de contos, que determinado texto constitui uma variante de fraca qualidade de um tema desenvolvido no meu anterior romance..., que esse, sim, senhores...
Ponto assente, portanto: excedeu-se no autoelogio. E não só enfatizou os méritos e convencimento próprios em extensão despudorada como aquiesceu, muito para além do defensável, na utilização do próprio nome em estratégias editoriais que não primaram pelo decoro autoral. Arguidas as más qualidades, ouçamos, agora, a defesa. Asimov era vaidoso? Pois era. Bem merecia sê-lo! Porque a vaidade é um defeito no qual pode incorrer, tão-só, com legítimo direito, um reduzido número de pessoas...
Asimov, porventura o mais carismático autor mundial de ficção científica, aliciou e arrastou para este género literário gerações sucessivas de leitores. Só por isso deveríamos indultá-lo pela gabarolice, se fora pecado. Mas não é. Com o tempo, o conhecimento da obra diversíssima sobreleva esses aspetos menores e compreende-se a essência do escritor único, enorme. Redescobre-se o prazer das histórias bem arquitetadas e melhor contadas. Histórias que nos remetem para esse encantamento antigo das mil e uma noites, em versões fantásticas, escritas com a agilidade narrativa que agarra o leitor, do princípio ao fim, trate-se de um conto de oito páginas ou de um colosso em vários volumes como Fundação. Uma máquina de espetáculo ficcional. Máquina na aceção também industrial do vocábulo: dez livros por ano (!) – foi a média mantida nas décadas de sessenta e setenta. Para caldear o fluxo onomástico recorreu ainda ao pseudónimo Paul French, com que assinou, entre outros romances, Os Corsários do Espaço - traduzido para lingua portuguesa pelo notável escritor Mário Henrique Leiria - e O Planeta dos Deuses, deste podendo dizer-se que nunca o futuro foi descrito com uma visão tão enleante, lírica, inesperada. Sobrava-lhe ainda tempo para ler os próprios livros depois de publicados… Saboreava-os tão logo saíam do prelo. «Talvez pareça ridículo confessá-lo» – afirmou com a prosápia desarmante que lhe era peculiar – «mas gosto do meu estilo literário. Como poderia escrever tanto quanto escrevo se os meus escritos não me agradassem?...»
Asimov. Sem igual.
© PEDRO FOYOS
• O HOMEM BICENTENÁRIO
Esta memorável ficção de Asimov remonta a 1976, precisamente o ano do bicentenário da independência americana. Meses antes, o escritor, instado pelos organizadores das comemorações, escrevera uma história que deveria abrir uma antologia com o exato título de O Homem Bicentenário, espécie de componente ficcional dos atos culturais da efeméride. Aconteceu depois que, por razões mal esclarecidas, a dita coletânea não chegou a ver a luz do dia. Entretanto, a novela seria lida por Judy-Lynn Del Rey (esposa do lendário Lester Del Rey), que a editou, em fevereiro de 1976, no segundo número de «Stellar Science Fiction Stories», antologia de bolso muito popular na época. O êxito foi estrondoso. Obra de eleição na bibliografia do escritor, obteve no ano seguinte a consagração absoluta ao conquistar de uma assentada os prestigiosos prémios Nebula e Hugo, facto raro no historial daqueles galardões. Muitos fãs do escritor, aliás, sempre consideraram inigualável, no género, esta pequena novela, que representa, ao mesmo tempo, o seu último grande ato de pujança ficcional numa fase epilogar da carreira literária, com uma produção — sempre torrencial, todavia — confinada, então, praticamente, à divulgação científica.
O herói desta história encantadora não difere muito do robot-protótipo asimoviano. Personagens simpáticas que se firmam invariavelmente sobre o conceito de uma machina sapiens, cuja presença na sociedade humana é pautada por diretrizes de boa harmonia e cooperação. Mas o robot em apreço, da série NDR, saído das linhas de montagem da United States Robots & Mechanical Men Corporation e que mais tarde assumiria o nome de Andrew Martin, decide ultrapassar uma fronteira inimaginável: a da sua condição não humana. Concebido como empregado doméstico, numa morfologia humanoide, desde cedo se tornou patente que, por razões difíceis de explicar, Andrew era um robot fora do comum. Possuía capacidades especialíssimas. Ao contrário dos seus congéneres, havia nele uma impetuosidade criadora, fenomenal, que lhe foi descobrindo faculdades reservadas desde sempre à emoção e espírito humanos, como a de pintar, esculpir, etc. Admirado por uns, receado por outros, granjeou fama. Conquistou a sua liberdade. Mudou de corpo. Começou a vestir-se. Introduziu no seu organismo «positrónico» toda a sorte de mecanismos protéticos correspondentes à fisiologia humana. Arranjou uma forma de ingerir alimentos. Até o rosto, desprovido de nervos, começou a poder exteriorizar reações psicorgânicas jamais pressentidas numa máquina.
A novela de Asimov conta a dura luta do robot Andrew pela sua humanidade. Em termos de ficção científica, a singularidade do tema é algo de notável. Uma reviravolta profunda no recorrente cenário ciborguiano da conversão do homem em máquina.
Com muito humor e incursões pouco inocentes pelos medos e fantasmas da automatização "inteligente" na sociedade humana, o escritor diverte-se e faz render o filão do tema original. Como reagirão os homens quando um robot quiser tornar-se, ele próprio, num homem? E, sendo-lhe concedida a humanidade (resolvidos, melhor ou pior, transcendentes problemas morais e legais), que cláusulas deverão ser impostas ao pretendente? Que latitude configurará tal "metamorfose"? Que consequências?
No caso de Andrew, o robot desta história inesquecível, o preço será a própria vida. Ao fim de duzentos anos (os robots não morrem...) ele renunciará à imortalidade no preciso momento em que, numa derradeira cirurgia, adquire, em pleno, a condição de homem.
Assim, mortal e feliz, morrerá.
Homens & Sucessores
Esta linha de pensamento, enunciada por Asimov em numerosas obras, desassossegou muito boa gente. A supremacia tecnológica, na relação homem-máquina, não era encarada por ele sob o espectro costumado de uma ameaça. O escritor insinuava uma filosofia de coexistência cooperante, à imagem e semelhança dos heróis robóticos das suas ficções. Em 1960, em The Intelligent Man's Guide to Science, escrevia: «...O caminho (o das máquinas inteligentes) está aberto e evoca ideias que são apaixonantes, mas também, em certos sentidos, aterradoras. Que sucederia se o homem lograsse, enfim, uma criatura mecânica igual ou superior a si mesmo em todos os aspetos, incluindo a inteligência e a criatividade? Substituiria o homem, como os organismos superiores da Terra substituíram ou submeteram os menos adaptados no decurso da longa história da evolução? É algo de inquietante: pela primeira vez na história da vida sobre a Terra, representamos uma espécie capaz de provocar a sua própria substituição. Está nas nossas mãos, naturalmente, impedir um desenlace tão penoso, negando-nos a construir máquinas que sejam demasiado inteligentes. Apesar de tudo a perspetiva é tentadora. Que aspiração sublime, a de criar um ser que ultrapasse o criador! Que forma mais gloriosa de consumar a vitória da natureza humana, transmitindo o nosso património, triunfante, a uma inteligência todavia maior — e obra nossa!».
A citação padroniza, em síntese, uma obsessão verosímil e desafiante que os leitores de Asimov bem conhecem. Os mesmos leitores surpreender-se-ão com este Homem Bicentenário (ou positrónico, na "novelização" de Silverberg), a história de um robot que luta desesperadamente por tornar-se humano. Num rasgo de originalidade, o escritor inverte a representação convencional dos papéis: a ambição culminante dos robots futuros poderá ser a de adquirirem a condição humana...
Asimov tinha especial predileção por esta novela, que considerava o seu opus magnum no âmbito das ficções curtas (juntamente com A Última Dúvida e O Rapazinho Feio). «Escreveu-se sozinha», dizia. E quando lhe perguntaram se o enredo significava uma tentativa de conciliação com os inimigos das máquinas, ou seja, a regeneração de uma ideia mil vezes celebrada nos seus livros, contrapôs: «É, simplesmente, uma boa história, e por uma boa história sou capaz do inimaginável».
© PEDRO FOYOS
LIGAÇÕES
NA LITERATURA
A parceria com Robert Silverberg
Texto disponível proximamente
NO CINEMA
Richard Fleischer: Viagem Fantástica
Cineasta de qualidade irregular, Richard Fleischer (1916-2006) possui um cadastro de malfeitorias fílmicas indefensáveis, sobretudo na área das superproduções históricas e melodramas. Mas realizou três obras francamente interessantes que o transformaram num dos referenciais obrigatórios do cinema de ficção científica. Essa série começa em 1954, sob a égide de Verne, com Vinte Mil Léguas Submarinas, e termina em 1973, com À Beira do Fim / Soylent Green, recriação muito livre do magnífico romance Make Room! Make Room!, de Harry Harrisson. A meio (1966) aconteceu Viagem Fantástica, de que se tem dito erroneamente ser a adaptação de um livro de Isaac Asimov. Na realidade, o celebrado escritor fez apenas uma novelização sequente ao filme, ao que se supõe com um objetivo estritamente financeiro. Mas, nunca resignado com aquilo que denominou de «insuportáveis inconsistências científicas» do argumento, voltou ao tema, vinte anos depois.
Publicou então novo livro intitulado Viagem Fantástica-II: Destino Cérebro cuja autoria, por fim, ficou a pertencer-lhe em exclusivo. É curioso notar que Asimov descria que alguma vez no futuro viesse a ser possível uma viagem fantástica como a que imaginou. Um jornalista perguntou-lhe certa vez, a propósito da sua reconhecida presciência – uma capacidade premonitória notável, comprovada ainda durante a vida do escritor –, se acreditava na possibilidade de concretização, num futuro indeterminado, de todos os feitos por ele ficcionados ao longo de uma careira de meio século. Asimov anuiu na generalidade mas manifestou descrenças pontuais. Não admitiu, por exemplo, a hipótese de dois tipos de viagens: no macroespaço, a uma velocidade superior à da luz; e no microespaço, pelo interior do corpo humano. Ora Richard Fleischer, num pré-genérico do filme, alerta o espetador nestes termos: «Os acontecimentos fantásticos que vai testemunhar poderão, na realidade, ocorrer amanhã.» Ao impugnar a fita de Fleischer, o escritor parece não querer deixar de fora um único fotograma, a começar pelo introdutório.
Datado, na trama política e nos antagonismos que pautaram um longo período de relacionamento sibilino entre os EUA e a então URSS, o livro é, nesse contexto, um definitivo objeto museológico. Mas ninguém como Asimov para contar uma história. Encenada sobre uma autêntica cartografia cerebral, a narrativa corre, desopilante, em dois registos – o real (com extrema veracidade científica) e o fantástico (na latitude máxima desse conceito) – que se interligam convincentemente. O leitor cedo descobrirá que Asimov concedeu a si próprio o prazer de ficcionar um tema que dominava em absoluto – o cérebro humano – e sobre o qual, aliás, chegou a escrever um livro fundamental de divulgação.
O enredo inicial do filme sugere os lances típicos das antigas ficções de espionagem: um reputado cientista de um país de Leste (o professor checo Jan Benes) foge para a América, disposto a revelar informações vitais. Sofre, contudo, uma lesão cerebral ao ser alvejado por agentes infiltrados que o querem silenciar.
O coágulo profundo é inoperável do exterior. Benes terá pouco tempo de vida. Mas o general Carter, um homem com excecional determinação, que não aceita derrotas de nenhuma espécie, está disposto a tudo para lograr a sobrevivência do cientista. Resolve operá-lo ao cérebro, mas a partir do interior, recorrendo pela primeira vez a uma invenção do seu departamento. Uma equipa médica altamente especializada e o respetivo equipamento são introduzidos numa cápsula (o submarino Proteus), depois miniaturizados a uma escala microscópica e injetados na corrente sanguínea do paciente. A missão impossível consiste na viagem pelo interior do corpo de Jan Benes, com destino ao cérebro moribundo, onde a equipa médica procurará debelar o coágulo. Tematicamente, a história resulta numa exemplar space opera. De facto, a aventura é similar às das viagens pelas galáxias distantes e os protagonistas enfrentam os mesmos perigos dos expedicionários espaciais.
O infinitamente grande e o infinitamente pequeno equivalem-se nas suas estruturas e comportamentos, com variantes subtis. A tripulação do Proteus, no interior do corpo humano, sofre o ataque dos microcorpúsculos guardiões do sistema de imunidades, que reagem de forma agressiva e idêntica à dos guerreiros alienígenas quando seres estranhos tentam invadir o seu planeta.
A zona periférica do coração, que o submarino é obrigado a atravessar, constitui uma odisseia dramática porque o bater daquele órgão se torna estrondeante nos limites da resistência, quer para os viajantes microscópicos quer para o próprio veículo.
Os bem conseguidos efeitos especiais e os cenários notáveis do filme arrebataram os correspondentes Óscares. A figuração cenográfica do interior do corpo humano foi um desafio científico que mobilizou grande número de especialistas ao nível da pesquisa laboratorial. Os artesãos de Fleischer edificaram o modelo de um coração humano gigantesco, com mais de dez metros de altura. Harper Goff, o lendário construtor do Nautilus das Vinte Mil Léguas Submarinas, foi convidado a dar forma ao Proteus. Na ocasião da estreia, a 20th Century-Fox desencadeou uma campanha publicitária imaginativa e dispendiosa, com uma dimensão inusual na época.
Em 1987, Joe Dante inspirar-se-ia nesta obra de culto para realizar O Micro-Herói (Innerspace), uma produção de Spielberg que obteve assinalável êxito.
Advertência: Viagem Fantástica pertence ao grupo daqueles filmes que perdem muitíssimo na redução ("miniaturização" seria, no caso vertente, o vocábulo apropriado) para o formato do pequeno ecrã. O Autor teve a felicidade de ver a obra numa das grandiosas salas que existiam em Lisboa no final dos anos sessenta. Inolvidável a reação da plateia à luta, num corpo a corpo espantoso, que Raquel Welch e companheiros travam com uma alcateia esfaimada de... glóbulos brancos. No final, consumada a libertação dos heróis (da heroína, em particular), havia um imenso suspiro de alívio que varria o silêncio escuro e rumorejava por entre as cadeiras, naquela sonoridade saudosa, muito peculiar, quase esquecida, que as boas salas faziam repercutir em tais ocasiões.
© PEDRO FOYOS
FICHA
VIAGEM FANTÁSTICA
(Fantastic Voyage)
Realização: Richard Fleischer. Produção: Saul David, para a 20th Century-Fox (EUA,1966). Argumento: Harry Kleiner. Fotografia (cor, scope): Ernest Laszlo. Efeitos especiais: Art Cruickshank, LB. Abbott, Emil Kosa Jnr. Cenografia: Jack Martin Smith e Dale Hennesy. Música: Leonard Rosenman. Intérpretes: Stephen Boyd, Raquel Welch, Edmond O'Brien, Donald Pleasance, Arthur Kennedy, Arthur O'Connell.
Duração: 100 minutos.
Ralph McQuarrie: Guerra das Estrelas
O robot de ficção mais popular do mundo – o humaniforme C-3PO (Threepio), parceiro do rotundo R2-D2 (Artoo) da saga Guerra das Estrelas, de George Lucas – deve a sua conceção a Isaac Asimov. Foi o célebre desenhador Ralph McQuarrie (de quem reproduzimos uma maqueta para o primeiro filme), antigo colaborador de Lucas, que revelou ter criado o pândego C-3P0 à imagem e semelhança de uma das personagens robóticas de Asimov.
© PEDRO FOYOS
O empreendimento mais duradouro e lucrativo de sempre no campo da ficção científica (abrangendo séries televisivas, filmes para o cinema, romances, bandas desenhadas, videojogos, enciclopédias, dicionários, "manuais técnicos" e um infindo merchandising…) começou com um fracasso. Corria o ano de 1965 quando (Eu)Gene Roddenberry, obscuro autor de argumentos para a televisão, antigo piloto no Corpo Aéreo do Exército dos EUA, viu rejeitado o primeiro episódio filmado de uma série com o título Star Trek. A produtora justificou-se qualificando o projeto de "too cerebral" (demasiado percetível pelas mentes medianas). Gene Roddenberry, confesso maníaco de Rice Burroughs e das suas lucrativas novelas marcianas, não desistiu e conseguiu enfim, em Setembro do ano seguinte, que a NBC iniciasse a exibição da série, já incluindo no elenco os atores William Shatner e Leonard Nimoy (os carismáticos comandante Kirk e Mr. Spock). O êxito imediato representaria a primeira pedra de um colosso ficcional que não cessou de crescer até ao início do novo século e retomado em 2009 com novo episódio editado em DVD, não menos frutuoso no mercado internacional: 261 milhões de euros.
Conseguindo entender-se o paroxismo que invade os cinéfilos devotos quando presumem ouvir, de Humphrey Bogart, as quatro palavras «Play it again, Sam», e aceitando-se que muitas gerações de leitores tenham considerado outras hipotéticas quatro palavras, proferidas por Sherlock Holmes – «...Elementary, my dear Watson» – como o opus magnum dos epílogos policiários, compreender-se-á, então, que também quatro palavras, igualmente singelas, tenham enlevado milhões de espetadores da série Star Trek. Isso acontecia sempre que o comandante Kirk sussurrava aquele «Beam me up, Scotty». Há uma diferença a favor da última frase: é a única literal. Também, porventura, uma diferença qualitativa a desfavor de Star Trek: é difícil colocar Gene Roddenberry ao nível de excelência de um Michael Curtiz, o realizador de Casablanca, ou de um Conan Doyle, o criador do famoso detetive. Precisamente este facto constituiu durante décadas um espinho de mal disfarçada amargura para os incondicionais mais eruditos da ficção científica. Esses adeptos sempre olharam para a nave Enterprise com a fundada suspeição de que ela vogava em contracorrente dos esforços de valorização cultural de uma modalidade de ficção tradicionalmente malquista e marginalizada pela convenção intelectual dominante. Deploraram que verbas tão fabulosas como as implicadas nas várias realizações televisivas e cinematográficas redundassem por regra nos mais primários estereótipos do género.
Sendo exato tudo isso, não o é menos a tendência doutrinal desse grupo em resumir inapelavelmente Star Trek às orelhas pontiagudas de Mr. Spock. Porque a saga não se confina à anatomia paródica daquela e de outras personagens que geraram o merchandising folclórico e o furor clubista mundial – vulgo trekkies – sem paralelo no domínio da ficção científica. Existem momentos excelentes de cinema, extraviados ao longo deste caminho das estrelas sem norte. À luz da configuração mais académica das space operas de outros tempos ressaltam, sem dúvida, alguns trechos antológicos nos dois episódios dirigidos por Leonard Nimoy, e, em especial, no notável O Continente Desconhecido (Nicholas Meyer, 1991).
Indesmentível, porém, que os detratores militantes de Star Trek sempre tiveram a seu favor válidos argumentos de "arremesso": a estrutura ficcional, no decurso de trinta anos, raras vezes se alterou, num ciclo repisado de tramas menores, remakes gratuitos, absurdos indefensáveis. O design obsoleto da nave Enterprise contraria todas as leis da aerodinâmica e da aeronáutica: se um dia tivesse de voar, na realidade, não faria melhor que um pato a estrebuchar numa cachoeira de sargaços. Também alguns figurantes "alienígenas" permaneceram ao nível imaginativo de um concurso escolar de máscaras de Carnaval. Certas alegorias "espirituais" são hilariantes: William Shatner – aliás, comandante Kirk –, realizador do quinto filme, A Última Fronteira, mostra-se insuperável em tal arte quando nos faz assistir ao encontro com o Criador original, himself! (Em Gerações emerge uma "envolvência" similar, um pouco melhor conseguida, apesar de tudo).
Mas a principal crítica que se fez a Star Trek, na sua primeira fase televisiva, foi a de não ter prestado à ficção científica contributos inovadores, de dignificação criativa do género, ao contrário do verificado com as séries antecedentes The Twilight Zone (1958-62) e The Outer Limits (1963-65).
Não podemos esquecer, por outro lado, que nesse primeiro decénio de existência aconteceram obras como 2001 – Odisseia no Espaço, Encontros Imediatos do Terceiro Grau e o início da série Star Wars. Depois, quando se transferiu para o cinema, os sucessivos realizadores de Star Trek cumpriram a conceção primitiva de Gene Roddenberry, o qual, aliás, continuaria ligado à saga até à sua morte, em outubro de 1991 (morte que em si mesma constituiria um acontecimento mediático, pois Gene foi o primeiro ser humano cujos restos mortais foram "sepultados" no espaço).
Ora, Star Trek, convertido entretanto num fenómeno de popularidade universal, poderia ter seguido um rumo diferente, exercendo junto dos seus fãs incondicionais uma pedagogia evolutiva, conduzindo-os a graus mais elevados de exigência, o que não afetaria decerto a estratégia financeira subjacente ao projeto. Bastaria, para tanto, que tivesse havido, num ponto do percurso, uma reflexão e uma vontade inovadora, exploratória de outros caminhos, à semelhança do que se vislumbrou, em ínfima parte, nos referidos filmes de Nimoy e de Meyer.
O problema foi ninguém ter ponderado nos termos em que Mr. Spock o fez tantas vezes, com a sua lógica glacial, naquela outra frase cara aos trekkies: «Existe... uma outra opção, Captain».
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A "santa cruzada" dos anos sessenta
O elenco de "Star Trek" na época gloriosa dos trekkies
O melhor de Star Trek sempre foram os trekkies. Os veteranos, bem entendido, porque os trekkies de fim de século já não eram genuínos: o clã informatizou-se, comunicava-se por correio eletrónico, o dicionário inglês-klingon passou a estar disponível para instalação em ambiente Windows, os clubes possuíam rececionistas recrutadas nas agências de emprego temporário, a assembleia franqueava a entrada a gente tão proeminente como o Prémio Nobel da Física, Stephen Hawking, e as próprias convenções, anunciadas por e-mail, já decorriam em locais como o Royal Albert Hall, em Londres, ou nos magnificentes salões VIP dos hotéis de luxo nova-iorquinos. O que era uma pena. Nesses dias, um hipotético apelo a uma manifestação de rua, ao estilo dos anos sessenta, não conseguiria mobilizar sequer os netos do intrépido comandante James T. Kirk.
Da mesma forma, as melhores histórias de Star Trek são as suas pre-histórias, as histórias paralelas, a crónica imensa dos eventos pitorescos que envolveram a série desde os primórdios, em 1966. Memorável foi, sobretudo, a fúria trekkie que abalou a nação na sequência da informação, difundida um dia pela NBC, de que as transmissões iriam terminar. No lapso de uma semana, desabou sobre a cadeia emissora um milhão de cartas de protesto. Na realidade, muita gente intrigou-se com a decisão, que parecia, de facto, incongruente, face ao aparente índice elevado de audiência. A NBC refutava essa avaliação, sustentando que o número de espetadores-adeptos de Mr. Spock e comparsas estavam longe de justificar o alinhamento das aventuras interestelares na programação, ainda por cima num súper prime time de fim de semana. Abriu-se um debate acalorado, havendo quem julgasse entrever, sob a ordem de regresso da Enterprise à aerogare terrestre, uma óbvia censura política a certas pequenas subversões que as entrelinhas da trama deixariam passar. No plano concreto das coisas, o que se passava era isto: o Vietname crepitava nos noticiários, eclodiam no país frequentes incidentes raciais, emergia o problema da droga, os movimentos estudantis reacendiam-se, ainda, no fogo mal extinto do maio francês... e por aí fora. De uma maneira ou de outra, qualquer peça do puzzle, fosse qual fosse o feitio encaixava algures nesse cenário político. (Convenhamos na perfeita inocuidade da série, mas, por uma causa de paixão libertária, também jovens portugueses e espanhóis, vivendo sob ditaduras férreas, subscreveram ao tempo aqueles argumentos).
A NBC, porém, mostrou-se firme no confronto. Reafirmou as suas razões lineares, de mera gestão de programas, e desiludiu em definitivo os reclamantes: a série, desculpem lá o mau jeito, mas vai mesmo acabar. Assistiu-se, então, a algo que a história da ficção científica inscreve, a ouro, numa página de honor e glória: a insurreição. Foi o tempo da "santa cruzada", constituída em grande parte por universitários que não deram descanso à estação televisiva. Produziram-se autocolantes e cartazes com a frase «Save Trek!». Alguns manifestantes levaram o seu ímpeto ao ponto de inscreverem aquelas palavras nos automóveis estacionados no parque da NBC. Os responsáveis pela emissora tremiam todas as vezes que entravam e saíam do edifício da empresa, com os trekkies a uma inquietante curta distância, gritando palavras de ordem.
Os diretores levariam a melhor, porém valendo-se de estratégias engenhosas. Começaram por reduzir, em sucessivas fases, as verbas da produção, cuja equipa foi discretamente remodelada, com a substituição dos elementos mais criativos e dinâmicos por outros, do refugo da casa. A qualidade ressentiu-se, de imediato, o que terá alegrado muito os empresários. Mas o golpe de misericórdia ocorreria com a mudança de transmissão para a sexta-feira, num horário adverso ao público juvenil. A Enterprise, com tanto chumbo em cima, voou, agonizante, algumas semanas mais, mas estava condenada. A série eclipsou-se, no meio de renovados protestos, menos vibrantes, todavia.
O ressurgimento, primeiro intermitente, depois triunfal e constante, aconteceu pouco tempo depois, com uma fase inicial de reposição de episódios já transmitidos. A chegada do Homem à Lua e o fervor espacial que se gerou à época terá influenciado decisivamente a reconsideração da NBC. A história de Star Trek regista o facto, em termos um pouco mais excitantes, como é evidente: a estação televisiva cedeu, por fim, à fogosa pressão dos trekkies. Go ahead!
O último feito de que se ufana esta geração indefetível remonta ao ano de 1976, quando quatrocentos mil trekkies se dirigiram à NASA, «sugerindo» que o primeiro vaivém espacial se chamasse Enterprise. A administração americana deu o melhor acolhimento à proposta e em maio de 1979 era apresentado ao público com grande pompa o protótipo do Space Shuttle pioneiro. Deficiências técnicas determinaram que o veículo tenha ficado limitado a missões domésticas, sem registo na história da aeronáutica, mas esse é um episódio cujo relato não seria oportuno fazer neste momento festivo.
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LIGAÇÕES
LITERATURA STAR TREK
Desencadeando as paixões e os ódios que são o desígnio costumado dos mitos, este Star Trek / Caminho das Estrelas constituiu, gostando-se ou não, um dos grandes vetores modernos da especialidade. Símbolo daquilo a que é hábito chamar "cultura popular" – expressão usada eufemisticamente com o sentido de "subcultura" –, a epopeia do comandante Kirk, Mr. Spock e honoráveis sucessores têm, no plano literário, alguns méritos consensuais, que os detratores jamais reconheceriam nas versões televisivas e cinematográficas. Facto curiosíssimo, tendo em atenção que as obras publicadas nas últimas décadas mais não são que novelizações dos enredos fílmicos. Dir-se-ia que os romances e novelas, menos expostos à luz que revela cruentamente a menoridade intrínseca das ideias e imagens projetadas no ecrã, funcionam como uma espécie de filtro difusor: a transfiguração ilustrativa supera o mote inspirador. Ao lusco-fusco da letra de forma e da página impressa, os marmanjões das fitas conseguem persuadir os incrédulos atávicos. Até a Enterprise, a incrível Enterprise da fase pioneira, adquire contornos plausíveis!...
James Blish: o brilho do ouro velho
Ao êxito editorial da "marca" Star Trek não pode excluir-se a poderosa influência da qualidade literária. Alguns autores da chamada "idade de ouro" da ficção científica que dominou as décadas de quarenta e de cinquenta estiveram na génese de romances portentosos que em muito excediam o conceito de "novelização" de episódios da saga. Uma plêiade de bons escritores, entre eles o magistral James Blish, um nome marcante na história da ficção científica norte-americana, representou decerto o mais valioso contributo. Curiosamente, um inquérito feito em Portugal no início de 1995 revelou que o autor de ficção científica mais divulgado no País era James Blish, com perto de uma dezena de títulos re-editados. Embora considerado um dos emblemáticos "intellectual authors" da época, Blish possuía um estilo multifacetado que compreendia temáticas tão heterogéneas como a space opera, a teosofia, os futurismos biológicos (o escritor era formado em microbiologia), os fenómenos paranormais e, até, licantropia. Ingressou no diminuto grupo de escritores que lograva assumir o exercício literário a tempo inteiro e como atividade única de subsistência. Depois transferiu-se para Inglaterra, passou os derradeiros anos a desperdiçar a notável energia criativa. O homem distinguido com o supremo galardão no género – o Prémio Hugo – e cujo sentido crítico, profundidade filosófica, irreverência, mordacidade sulfúrica o tinham alcandorado à galeria dos grand masters, desceu à condição de guru dos trekkies e saciava-lhes o apetite com ficções a granel mas… sempre de excelência! Acantonado nessa espécie de reforma, que nada tinha que ver com a sua fulgurante obra anterior, Blish deixa transparecer a cada página o seu enorme talento, como em Spock Must Die, um momento alto na bibliografia trekkiana.
Morreu em 1975. Deixou uma obra perdurável da qual se destacam os Contos Galácticos, o estonteante romance A Era das Aves (as ditas evoluíram ao longo dos milénios, tornaram-se conscientes, tendo como objetivo decisivo o extermínio da humanidade…) e sobretudo Doctor Mirabilis, esse imponente fresco medieval que descreve, entre a ficção e o registo histórico, a vida de Roger Bacon, o fascinante e tão desconhecido monge-filósofo-visionário inglês do sécio XIII.
Cem milhões de exemplares
Seguem-se a James Blish outros autores prestigiados, com realce para David Gerrold e Alan Dean Foster, nomes bem conhecidos nos EUA e na Europa, em especial o segundo, porventura o melhor novelizador literário de criações cinematográficas da temática ficcional relacionada com o fantástico.
Num plano documental, foi Leonard Nimoy (exato: o vulcano Mr. Spock) quem primeiro soube capitalizar o carisma da personagem, escrevendo livros de divulgação (e alguma autopromoção) que os trekkies converteram, num ápice, em best-sellers estrondosos. Mais tarde, também William Shatner (aliás, comandante Kirk) explorou o filão, com Star Trek Memories.
As primeiras novelizações de Star Trek ocorrem logo nos primórdios da série. Era o tempo dos episódios semanais televisivos transmitidos pela NBC. Os livros publicam-se a partir de 1967, um ano depois do início da epopeia na televisão e deixam-se contaminar deliberadamente pela envolvência "mística" que começava a extasiar o público juvenil (e não só). A dinâmica clubista, algo de surpreendente e único no género, cedo extravasaria os EUA e chegava à Europa, com uma primeira adesão entusiástica da Inglaterra.
Numa perspetiva editorial, qualquer publicação que exibisse na capa o título Star Trek não podia deixar de ser lucrativa. Eis porque este tipo de livros somou a cifra espantosa de cem milhões de exemplares até ao início do novo ciclo centrado nos episódios de A Geração Seguinte, nova série televisiva que, por sua vez, teve sete anos de transmissão ininterrupta nos EUA.
Com uma Enterprise agora remodelada e um elenco novo (o comandante Jean-Luc Picard foi chamado ao desempenho das funções do lendário James T. Kirk), a epopeia prosseguiu, de vento em popa, passe a expressão tecnicamente desajustada ao meio estratosférico. Os narradores, entre os quais reapareceram alguns da "velha guarda" (David Gerrold, Jean Lorrah), afadigaram-se em oferecer ao leitor, em doses generosas, as mais criativas variantes das missões confiadas aos nossos heróis: missões de socorro ou de mediação nas sucessivas contendas que a todo o instante agitavam as comunidades interestelares. Raças extraordinárias, como os Ferengi, os Kreels, os Klingons; impérios despóticos, como o Nuaran; guerreiros impiedosos e as inevitáveis rebeliões, muitas rebeliões. O comandante Picard e companheiros viam-se em palpos de aranha para acudir a tanta crise e pôr nos eixos os ímpetos tirânicos, mas, no final, sempre saíam vitoriosos os valores humanos fundamentais que nenhum leitor admitiria alguma vez que pudessem soçobrar: a coragem, a lealdade, a dignidade, a amizade e também a justiça. Este idealismo ancestral continuava a inflamar o coração dos jovens, como acontecia outrora com as aventuras de corsários, piratas e toda a sorte de cavaleiros andantes. O comandante Picard não diferia muito, afinal, de Sandokan. Um príncipe marinheiro renascido nas estrelas inexploradas, vindo de longínquas florestas. O magnífico veleiro Rey del Mar, palco de pelejas homéricas, chamava-se agora Enterprise. As lutas, porém, eram as mesmas. Os sentimentos e imperativos de honra eram igualmente épicos.
Esta linha de raciocínio leva à conclusão de que nem sempre os críticos se têm munido de indulgência tática ao analisarem os livros de Star Trek e de outras séries aparentadas (Battletech, etc.). Primeiros amores literários, pequenos tesouros secretos. Seria insensato despistá-los. Sem dúvida que algumas vezes não estaremos perante criações estilísticas primorosas. Também o não eram as obras empolgantes de Emilio Salgari, as quais, todavia, incendiaram a imaginação de milhões de leitores e abriram apetência para outros caminhos, outras experiências, outras heresias. Por essa razão devemos sentir-nos confortados ao vermos jovens embrenhados na leitura destes volumes. Pisquemos-lhes o olho, cúmplices («...grande romance, hein?!»), e sempre iremos dizendo que a mesma editora tem, noutra coleção, livros não menos interessantes, escritos por malta fixe, como o Wells (o tipo do Homem Invisível, topas?), o Asimov (com uns robots muito pândegos), e o Clarke, e o Silverberg, e o Heinlein, e o Dick, e o Pohl...
A isto se chama não dar ponto sem nó.
© PEDRO FOYOS