Mário Soares, primeiro leitor da cópia original deste livro de Pedro Foyos, escreveu sobre o mesmo um breve texto, finalizando: «Estamos perante uma muito importante obra de pesquisa e investigação histórica» — frase que se transcreve na capa, com a devida autorização do antigo Presidente da República.
Singularmente, também o atual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, está neste livro com dois textos suscitados pelo facto de ter sido coautor da nova Lei de Imprensa em liberdade (1974/75), na qual não era possível prever um “Caso República”, ou seja, a destituição do diretor legítimo de um jornal por tipógrafos, pretendendo este grupo assumir de imediato a direção da publicação. «Mal ou bem — escreve Marcelo Rebelo de Sousa —, pensou-se que seria impossível, dentro do próprio sistema montado pela lei, que um organismo representativo dos trabalhadores não-jornalistas pudesse vir a intervir na direção ideológica do jornal, de forma tão abertamente contrária às disposições nela contidas». Todavia, foi o que aconteceu no dia 19 de maio de 1975, persistindo inalterável largos meses.
O jornalista Mário Mesquita, antigo diretor do Diário de Notícias, conhecedor de uma pré-publicação da obra, destacou o civismo de Pedro Foyos ao empreender a recuperação histórica de factos que constituíram um ponto de viragem no curso da revolução portuguesa: «Não só historiou o conflito como deixa registado, com vivacidade jornalística, o seu testemunho de destacado interveniente nos acontecimentos de 1975».
Converge nesta opinião o também jornalista e escritor Baptista-Bastos, em depoimento público endereçado ao autor: «Depois do 25 de Abril, a recomposição exigida pelas opções de cada um compartimentou a sociedade portuguesa, como era natural, em partidos e escolhas, mas também criou traumas e conflitos dilacerantes. O ‘Caso República’ foi um deles: uma forma de confronto que deixou marcas insanáveis e desnecessárias».
"O Caso do Jornal Assaltado" integra numerosas fotografias e documentos, muitos dos quais inéditos, acrescendo um caderno extratexto com imagens a cores.
No turbilhão dos anos de Abril, o velho jornal, que a tanta malandrice resistira, foi tomado de assalto por um grupo de "revolucionários" de última hora e cometeram malfeitorias morais e profissionais, que obtiveram eco por toda a Europa.
Li, com o prazer de quem regressa a um passado distante e tão próximo, o excepcional livro de Pedro Foyos, "O Caso do Jornal Assaltado", que repõe os factos de um assunto que muitos desejariam esquecido. No turbilhão dos anos de Abril, o velho jornal, que a tanta malandrice resistira, foi tomado de assalto por um grupo de "revolucionários" de última hora (tenho o nome de todos, e alguns bem pulhastros) e cometeram malfeitorias morais e profissionais, que obtiveram eco por toda a Europa. Vale a pena ler este importantíssimo documento, escrito por um jornalista de invulgar decência e talento, com quem trabalhei, no República, em anos de extrema dificuldade económica. Tudo o que ocorreu nesses anos terríveis é ali relatado com a decência e a honestidade moral de um homem raro, como Pedro Foyos.
Os factos, por mais pequenos que aparentem ser, as repercussões nacionais e internacionais de um assunto que mobilizou o país e o estrangeiro, as grandezas e as misérias de quem esteve envolvido no assunto que se tornou sórdido, são narrados, com exemplar dignidade, por Pedro Foyos, que lembra o tempo (com fotografia e depoimento) em que, muito jovens, ainda acreditávamos no céu e no inferno.
Este belo e honrado texto, escrito com a emoção de quem esteve por dentro de um assunto com repercussões morais e políticas por toda a Europa, relata não só o que se passou no exterior como o que ocorreu no coração daqueles homens e o ruído que alcançou na rua e no estrangeiro, moldando uma geração e os destinos revolucionários de um tempo terrível e sem oclusão.
Li, com a atenção emocionada de quem esteve por dentro, este relatório sem omissões, que repõe a história no seu devido lugar e recupera para a verdade, tantas vezes distorcida e omitida, a realidade dos factos. Factos que muitos desejam omitir, e que possuem relações factuais com outros factos depois ocorridos, e com a "reconversão" de muitos trastes, reconvertidos aos fascínios do dinheiro e da tranquilidade social.
"O Caso do Jornal Assaltado" não pretende fazer ajustes de contas nem retaliar os momentos que ilustraram aquele assunto e ilustraram aquela época. Pedro Foyos limita-se a relatar os casos do caso e a deixar a outros os ajustes da justiça. Não omite por estratégia: relata o que, no seu entender, constitui factos da história. Um excelente trabalho de um excelente jornalista, que deixa aos outros a tarefa sempre insana de julgar.
Pedro Foyos é um nobre e honrado profissional de Imprensa, cuja natureza exprime a grandeza de um homem que jamais retaliou, e sempre dirigiu o seu destino sob os avisos da sua consciência. E este livro, impressionante e importante documento da nossa história, é um nobre documento a fixar.
Jornal de Negócios, 23 Dezembro 2016
Uma Redação sequestrada e obscuras estratégias de controlo da informação.
Na turbulência revolucionária de 1975, o "caso República" figurou pela primeira vez a visão terrível da liberdade a devorar-se a si mesma. Um grupo de 25 jornalistas, apoiados por milhões de concidadãos democratas, negou-se a pactuar com essa insânia autofágica e bateu-se contra o novo estado emergente de repressão censória. Enfrentaram por três vezes as metralhadoras G-3 que entretanto haviam sido extirpadas de várias instalações militares, sobretudo do Depósito Geral de Material de Guerra, em Beirolas, e do Campo de Instrução de Santa Margarida. Todavia, nas palavras de Raul Rego, deposto da direção do diário República na manhã de 19 de maio de 1975, os jornalistas dispunham da mais poderosa das armas: a palavra.
Coimbra, 20 de Junho de 1975
Estranha revolução esta, que desilude e humilha quem sempre ardentemente a desejou. A mais imunda vasa humana a vir à tona, as invejas mais sórdidas vingadas, o lugar imerecido e cobiçado tomado de assalto, a retórica balofa a fazer de inteligência. Mas teimo em crer que apesar de tudo valeu a pena assistir ao descalabro. Pelo menos não morro iludido, como os que partiram nas vésperas do terramoto. Cuidavam que combatiam pelo futuro e, na verdade, assim acontecia, mas apenas na medida em que o sonhavam como se ele tivesse de ser coerente com a dignidade do seu passado de lutadores. O trágico é que um futuro sonhado não passa de uma ficção. O tempo é o lugar do inédito.
O futuro autêntico é sempre misterioso e autónomo das premissas de que partiu. Quando chega, traz os seus valores, as suas leis, a sua gente, nem boa, nem má. Traz os títeres que lhe convém. Ou pior: os títeres a quem a hora convém.
In DIÁRIO XII
Escrito na ocasião (possivelmente na própria noite) do primeiro cerco à empresa Gráfica de Coimbra, onde dois jornalistas (Vítor Direito e o autor deste livro) faziam o sétimo número do ‘Jornal do Caso República’. Miguel Torga acompanhou telefonicamente, por intermédio do seu amigo e editor Padre Valentim Marques, as peripécias violentas, que se alongaram por toda a noite, para impedir a impressão do jornal.
EXCERTO DO PRIMEIRO CAPÍTULO
«Meu querido Rego (…) chegou agora a tua vez, vez nobre no caminho difícil de tantas décadas. Foi a coroa de glória que poucos percebem, — não merecem o aviltamento, esse aviltamento mostra a grandeza da tua alma e a projeção sensível do viver quotidiano de quem à verdade e à retidão tem entregado os melhores dias da sua vida».
EXCERTO DE UMA CARTA DO ESCRITOR RUBEN A. DIRIGIDA A RAUL REGO
APÓS O ASSALTO POLÍTICO AO DIÁRIO REPÚBLICA.
Raul Rego falava pouco, com uma ténue gaguez. Em contrapartida exibia uma vigorosíssima fluência quando fraseava as suas ideias numa máquina de escrever da qual era dependente do primeiro ao último minuto de permanência na redação. Álvaro Guerra caricaturava: «Se lhe disséssemos que íamos fazer um novo jornal de hora a hora, ele ficaria feliz por poder fazer um editorial para cada uma das edições…» Parecerá surpreendente, mas acreditávamos mesmo que o nosso diretor reagiria desse modo. Recordo-o, franzino, enclaustrado no seu pequeno gabinete, submerso em pilhas imensuráveis de jornais e livros que se reduplicavam a todo o momento sobre uma enorme secretária. Com esforço lograva uma clareira para a sua bem-querida Olivetti, a máquina de escrever. Remetia-se a essa solidão voluntária, quase mística, interrompida de vez em quando por um estrépito bem conhecido dos redatores: alguma das pilhas desmoronara-se. E logo corríamos, voluntariosos, para reconstruir da melhor forma aquele enclave de papel.
Raras vezes o víamos distanciado da sua Olivetti (ou Olivettis, sim, no plural, porque amiúde as coitadas davam baixa por exaustão) e a sofreguidão na escrita era tal que requeria linotipistas exímios, quase sempre o Joaquim Dias, para decifrarem os vocábulos incompletos e colocarem os acentos inexistentes. Dizia-se que o nosso diretor ajuizava os acentos como um desperdício de tempo, pois convocavam os dedos para teclas apáticas e primitivas, que só serviam para desconcentrar o pensamento. Talvez por isso foi dos primeiros a deixar cair o acento no seu primeiro nome (Raul) e mais tarde, em fim de vida, o circunflexo no apelido (Rego), embora o mantivesse na assinatura porque «a mão já lhe tomou esse jeito desde menina». Conto isto para me precaver de admoestações gramaticais. Conheço Regos que por nada na vida renunciarão ao circunflexo. A esses direi que estou apenas a cumprir diretivas do meu diretor. Meu diretor em nada menos que três jornais: dois diários, e o outro tinha data esquiva de saída, com uma produção oficinal sujeita às contingências e riscos da clandestinidade (apesar disso, as tiragens suplantavam as dos principais diários portugueses).
Hei de morrer sem saber qual é o braço que devo levantar
Semanas antes do início da clandestinidade jornalística, no pré-Verão Quente de 1975, o fio da história pátria vibrara a ponto de ameaçar quebrar-se por força de um ciclone comunitário na Rua da Misericórdia, em Lisboa. Propagara-se e ressoava, ainda intenso, no País e nos nossos ouvidos: «Socialismo, sim! / Ditadura, não!». «Fechar / o jornal / é traição a Portugal!». «Rego / amigo / o povo está contigo!».
Um mar de gente gritava lá em baixo, na rua. Milhares e milhares a gritarem, queriam que aparecesse-mos às varandas da redação. Íamos, vacilando na estranheza de uma situação que nenhum de nós tinha vivido até ao momento. O código profissional não pressupõe que jornalistas acenem à multidão. Assomávamos três ou quatro de cada vez, o espaço dos varandins não dava para mais.
Mas a multidão era exigente na presença querida:
«Rego / amigo / o povo está contigo!».
— Doutor Rego, vá, as pessoas querem vê-lo a si. Vá agora. Atenção ao braço!
Ah, o braço do doutor Rego! Havia o rito do punho erguido. A exteriorização gestual socialista diferenciava-se da comunista, mas Raul Rego não atinava: na maioria das vezes erguia o braço errado.
E nós, atrás dele:
— Ó doutor Rego, é o outro braço!... o outro!
Rego voltava-se para nós, atrapalhadíssimo, angustiado:
— Hei de morrer sem saber qual é o braço que devo levantar. Acham mesmo isso importante?
Marcelo Caetano, leitor privilegiado dos textos proibidos
Embora sendo autor de numerosos livros de teor histórico e político (realço a portentosa História da República, em cinco volumes) Raul Rego será lembrado, acima de tudo, como o jornalista que mais intrepidamente combateu a Censura durante a Ditadura, de Salazar a Marcelo Caetano. Quatro décadas de uma luta homérica. Escrevia todos os dias, todos os dias via os seus textos lacerados pelo lápis azul, a menos que estivesse num dos cárceres políticos por onde passou, porque nessas circunstâncias não havia estafeta que lhe levasse as palavras aos Serviços de Censura.
Tinha o hábito, nos últimos tempos, de introduzir as prosas censuradas num sobrescrito que entregava ao polícia que fazia guarda à residência particular de Marcelo Caetano, na Rua Duarte Lobo, próximo da sua própria morada, na rua Conde de Ficalho. Juntava uma missiva de protesto e indignação. O chefe do Governo era assim um dos poucos leitores privilegiados desses editoriais proibidos. O primeiro era o linotipista que os compunha na tipografia; o segundo, naturalmente, o censor que os censurava; por último, Marcelo Caetano, que, depois de jantar, talvez reservasse dois minutos para ler um palmo daquela excelente e inspiradora prosa. De lamentar que, na impaciência da oferenda, o jornalista tivesse cometido o frequente lapso de entregar os próprios originais provindos da Censura, preciosidades históricas cujo destino terá sido o caixote do lixo.
Se Jesus Cristo fosse transmontano…
O jornalista Raul Rego, um dos mais cultos e letrados da sua geração, com um saber histórico que raros autores portugueses conseguiriam igualar, sofreu sucessivas prisões políticas por um motivo invariável: «Exercício de atividades contra a segurança do Estado.» Confessava quase em murmúrio que um dos tormentos do cárcere era o de ficar privado da sua amada, a Olivetti… na qual teclava desde o início dos anos sessenta. Em certas ocasiões permitiram-lhe escrever à mão, mas não era a mesma coisa. E um dia, no Aljube, o diretor deu a escabrosa ordem de lhe ser apreendida a caneta — «só a caneta, o papel pode ficar».
Reunia motivos de sobra para odiar os carcereiros da sua liberdade, mas confidenciava que não conseguia odiá-los. Dizia ter por eles uma compaixão cristã. Raul Rego, antigo seminarista, que cursou teologia, tornou-se um desabrido anticlerical, abjurara o catolicismo mas não renegava o cristianismo. Um dia, na redação do República, após o fecho da edição, numa conversa distendida com os redatores, veio à baila o tema do ódio e o nosso diretor abriu uma exceção na sua indulgência cristã. Havia uma pessoa no mundo que ele odiava deveras. «Um ódio de morte, que Cristo me perdoe!» Perante a curiosidade geral, perguntou:
— O nome Abílio Augusto Pires diz-vos alguma coisa?
Sim senhor, dizia. Pelo menos a dois de nós:
— Quem…? O inspetor da PIDE? Não foi aquele que levou o Mário Soares para o desterro de S. Tomé?
— Sim, esse mesmo. E bem enganou o Mário, que no Portugal Amordaçado o apresenta como um pide bonzinho. É uma página vergonhosa que o Mário Soares deveria rasgar do livro.
Mas porquê o ódio para com esse tal Augusto Pires?
Então o nosso diretor contou que durante um interrogatório na polícia política fora esbofeteado por esse inspetor. Já sofrera muitas acrimónias do género, essa doera como nenhuma outra. Não por o ofensor ser um dos esbirros da PIDE — enfim, isso seria o menos — mas porque era seu conterrâneo. Ficámos a saber, nós, jornalistas do República, que para o telúrico Raul Rego a mais execrável das ignomínias era um transmontano ser esbofeteado por outro transmontano, sobretudo sabendo este que o agredido estava impedido de um simples meneio de réplica. Não havia perdão, perdão de espécie alguma, fosse humano ou divino, para tamanho ultraje. E justificava o nosso diretor com a erudição de teólogo: se Jesus Cristo fosse transmontano, também não perdoaria.
O movimento de 25 de Abril foi empreendido por homens imensamente corajosos. Alguns, mais dados à ribalta, são bem conhecidos. Outros, discretos, não se deixaram coroar por honrarias de qualquer género. Raul Rego pertence a esta classe de heróis anónimos. Enfrentava com destemor os censores e a polícia política, surpreendendo-se com as tentadas iniciativas de o colocarem em pedestais. Argumentava que, se havia feito alguma coisa de válido, resultara tão-só de caprichos da Natureza.
Na manhã desse dia — «o dia inicial inteiro e limpo», como o celebrou Sophia — faltavam dez minutos para as nove horas quando Raul Rego protagonizou, juntamente com Vítor Direito, um dos atos mais corajosos da Revolução e que de alguma forma poderá ter influenciado o êxito da mesma.
Há memórias tão avassaladoras que à distância do tempo parecem firmadas numa pura irrealidade. Mas são reais, bem reais. Nessa manhã, na sala de redação do República, o diretor Raul Rego e o diretor-adjunto Vítor Direito pediram-nos um momento de atenção para comunicar uma decisão. «Estão todos?» — perguntou o Vítor. «Então, alguém diga à Maria Irene [Saraiva] para não passar agora chamadas para a redação.» Depois, naquele jeito determinado de quem lhe pertencia sempre a última palavra: «Meus amigos, o doutor Rego e eu decidimos que o jornal não vai hoje à Censura! Mais: já pedi ao chefe Jacinto que mandasse compor a frase "Este jornal não foi visado por qualquer Comissão de Censura". Sairá em rodapé, a toda a largura da primeira página!».
Ocorreu de imediato aquele instante luminoso, inesquecível, de todos nós a batermos palmas, as lágrimas a picarem-nos os olhos. E foi de facto o República, um vespertino, que naquele 25 de Abril se converteu no matutino histórico de ser o primeiro jornal português a gritar que a Revolução estava na rua. O ato inicial de extraordinária coragem de pôr o jornal a circular, sem o submeter à Censura, aconteceu quando ninguém — ninguém em absoluto! — poderia prever qual seria o desfecho do movimento militar. O jornal fez várias edições nesse dia, porém a manchete permaneceu intocada desde a primeira: «As Forças Armadas tomaram o poder.» Antecipação problemática de um facto que só viria a obter plena confirmação oito horas depois. À distância do tempo, observo complacente aquele título apressado e sorrio ao imaginar que uma moderna aula de jornalismo poderia ser preenchida com um tema assim formulado: «Casos muito excecionais em que o arrebatamento patriótico do jornalista poderá legitimar uma escorregadela deontológica».
O próprio Raul Rego relatou com palavras suas como evoluiu, quarenta minutos depois da comunicação aos jornalistas, a situação de desobediência à Censura. O depoimento foi publicado na edição do Diário de Notícias de 9 de maio de 1990:
Aí por volta das 9 e 30, estava a revolução na rua, telefona-me o diretor do "Exame Prévio" [Mário Bento], perguntando pelas provas. E eu: «Sabe, senhor doutor, hoje tomo eu a responsabilidade inteira de quanto sair no jornal!» — «Veja lá. Nunca se sabe o resultado de certos movimentos e, quando não correm como esperamos, podem ter graves consequências!» — «Muito obrigado. Mas a responsabilidade é inteiramente minha».
Isto aconteceu cerca de treze meses antes do assalto político ao jornal República, com a destituição de Raul Rego e o sequestro dos seus jornalistas.
Um ponto final, à hora em ponto, como sempre
Um orgulho infantil e terno leva-me a ir somando as ruas do País que têm o nome do meu corajoso diretor. São já uma dezena, ou quase. Uma delas, na Amadora, ascendeu a avenida.
Orgulho infantil? Melhor diria: prosápia de menino, porque menino me vejo no centro de uma roda de gente, arrebatado, cicerone de circunstância, um dedo espetado para a placa que tem o nome do meu diretor, ao mesmo tempo que me empertigo ao proclamar, solene:
— Foi um dos homens mais íntegros e corajosos que conheci! Que coragem! E que honra, a minha, ter estado ao seu lado em lutas inesquecíveis pela liberdade de expressão! Cometeu erros? Decerto. Procedimentos evitáveis? Com certeza. Um ser humano nunca é perfeito. Tendo oportunidade, um dia bichanar-lhe-ei, como quem não quer a coisa, que ele deveria, na minha opinião, ter ponderado melhor numa ou noutra situação. Porém, o essencial é a grande avenida da liberdade que tão decisivamente ajudou a abrir.
Não cabe aqui o retrato do homem comum, com todas as vulnerabilidades e imperfeições humanas, muitas das quais decorrentes de uma vida confinada obstinadamente aos estudos históricos e políticos, aos desassombrados editoriais jornalísticos (com uma pontualidade diária, durante anos), singularidade que originou incompreensões e até penosas incompatibilidades. Desacompanhado da sua Olivetti, Rego cometia gafes, esquecimentos, distrações memoráveis. Antigos camaradas do jornalismo e da atividade parlamentar lembrar-se-ão das petites histoires que dariam uma deleitável antologia. Raul Rego protagonizou historietas engraçadíssimas. Havia até um sigiloso “anedotário Rego” de que recordo o episódio que alvoroçou as senhoras redatoras: por razão inadiável, o nosso diretor teve de abandonar, por um escasso minuto, a querida Olivetti, mas a entrega do editorial estava tão em cima da hora que, sem tempo para abotoar a braguilha, só o foi fazendo atrapalhadamente enquanto atravessava a redação a caminho do seu gabinete. Momentos depois, a Olivetti faz ressoar no prédio um ponto final, à hora em ponto, como sempre. Rego sai apressado do gabinete, dirige-se a Vítor Direito, que de hábito nessa ocasião anda numa roda-viva, superintendendo no fecho da edição e encaminhando os últimos originais para a tipografia. De súbito, uma redatora começa a rir-se por detrás das palmas das mãos coladas à cara. Vítor percebe, sopra ao ouvido de Rego: o editorial está fechado mas a braguilha continua aberta. Então, o nosso diretor, agora com todo o vagar, compõe-se ali mesmo, em definitivo.
Tenho cá uma ideia para o editorial…
Esta crónica abriu com Ruben A. e com o autor de O Mundo à Minha Procura vai encerrar na exaltação de Raul Rego — o combatente a tempo inteiro durante uma vida inteira. «Anos de luta — escreveu Ruben A., três meses antes de morrer —, dedicados à nobilitação do que de humano em gente se encontra».
Neste passo, é possível, é mesmo muito possível, que eu levante um pouco a voz para ser bem ouvido:
— Antes e depois do 25 de Abril.
Logo se sobrepõe a figura franzina de Raul Rego, sempre um tudo-nada agitado, tartamudeando as palavras:
— Isso é passado. Agora temos de seguir em frente. Tenho cá uma ideia para o editorial… Não demoro. Vinte, trinta minutos… Pode ser?
O que a santa da Olivetti sofria!
O Caso do Jornal Assaltado
Autor: Pedro Foyos
Capa: José Maria Ribeirinho
Editora: Prelo
336 páginas, incluindo extratexto a cores
Preço: € 16,80