memorias magicas

         Deixa voar bem alto a fantasia!
          Sem ilusões, o mundo que seria?

                                                   RAMÓN DE CAMPOAMOR (1817-1901)

    4.

        REALIDADE E LENDA

filete


A memória difusa dos enigmas tende a transfigurá-los em lenda
 e a perpetuá-los como realidade definitiva. O jornalista procurou,
neste capítulo, contrariar quando possível a inveterada propensão
 para publicar a lenda em vez da realidade.


HARRY HOUDINI:
CIRCO DO IMPOSSÍVEL

Ehrich Weiss era o seu verdadeiro nome. Nasce em Budapeste, a 24 de Março de 1874, filho de um sacerdote judaico emigrado, residente em Appleton, Wisconsin. As atribulações que marcariam toda a sua vida começam logo durante a infância, na precariedade económica de um lar tumultuoso, com o jovem Ehrich em procela interminável com a mãe. Abandona a casa paterna, não tem ainda quinze  anos, depois de desempenhar os ofícios mais diversos, desde ajudante de ferreiro a serralheiro, passando por cortador de gravatas. A atividade na área da serralharia assume relevância na biografia de Houdini. As fechaduras seduzem-no, tanto que começa a colecioná-las desde novo. As feiras e os circos também o atraem, especialmente os números de ilusionismo, e consegue ingressar no elenco de um ou outro espetáculo. Mas as suas atuações são por regra desairosas. Os primeiros equívocos históricos sobre Houdini remontam a essa fase preambular, porque, sabe-se, era muito mau manipulador. Incorre-se em erro crasso ao afirmar que foi um prestidigitador notável. Revela já, porém, apreciáveis dotes propagandísticos, pois autonomeia-se O Rei das Cartas e pompa não falta às exibições. O pior é que os insucessos são de tal desmesura que vê-se obrigado a desistir da modalidade.
Entretanto, decide mudar o nome para Harry Houdini, em "inspiração" que sobreveio à leitura das memórias do genial mágico francês Jean Eugène Robert-Houdin (1805-1871), falecido duas décadas antes. Há quem diga, com humor, que esse foi, na realidade, o seu primeiro "truque" eficaz: o de adicionar a letra "i" ao nome Houdin, gerando uma confusão de personalidades. Quanto ao nome próprio de Harry presume-se que o adota por razão da semelhança fonética com o diminutivo de Ehrich, "Ehrie".

EM LOUVOR DE UM GÉNIO ESQUECIDO

Será, então, que muitas das proezas atribuídas a Houdini pertencem, na verdade, a Robert-Houdin? Sustentou-se durante muito tempo, por exemplo, que Houdini concebera sofisticados autómatos, figurantes quase robóticos, segundo técnicas avançadíssimas para a época. A espetacularidade de certos números adviria de tais sistemas complexos. A realidade historiada com isenção (sobretudo desde os anos cinquenta) é bem diferente. Quem construiu esses engenhos extraordinários foi Houdin e não Houdini. Tudo isso está documentado nos livros escritos pelo próprio investigador francês e em peças dispersas por numerosos museus. Era um relojoeiro exímio (seguindo o ofício do seu progenitor) e podemos incluí-lo entre os pioneiros históricos da automação e da magia moderna. Dedicou-se também à eletricidade e deve-se ao seu espírito inventivo a criação de autómatos prodigiosos, alguns dos quais falavam, cantavam e executavam trechos musicais, a pedido da assistência... Muitas das técnicas de Robert-Houdin continuam atuais e a ser praticadas em espetáculos no mundo inteiro. Deixou grande número de obras de investigação e divulgação no âmbito da magia, que representam quase uma cartilha para os adeptos iniciados. Diz-se que o seu palacete residencial era uma panóplia infindável de ilusões e enigmas: o portão do jardim, as restantes portas, janelas, gavetas dos móveis, etc., tudo abria e fechava sem indícios de intervenção humana. Os visitantes eram surpreendidos com vozes misteriosas que indicavam o caminho de entrada e de saída.
Não admira que a leitura das memórias de Robert-Houdin tivesse exercido um enorme fascínio sobre o recém-cognominado Houdini. Este, inconformado com os estrondosos fracassos dos seus espetáculos de prestidigitação, procura então novas formas de diversão e descobre em si próprio dons incomuns no campo das técnicas de evasão (escapismo, segundo a designação clássica). Nesse domínio é excecionalmente bem-sucedido. Fulgurantes ações de marketing tornam-no vedeta nos jornais que patrocinam com avidez os seus escapes. Importa reconhecer que Houdini, nesta modalidade, jamais foi igualado por qualquer outro mágico antecessor ou sucessor.

ASSOMBRANDO MULTIDÕES NOS EUA E NA EUROPA

Uma primeira façanha, em especial, granjeia-lhe fama em todo o lado. Houdini, percorrendo diferentes cidades durante as festas campestres onde se exibe, convida o xerife local a algemá-lo. Este faz-lhe a vontade e, depois, é o assombro de quantos o veem, decorridos segundos, mostrando as mãos libertas.
Os lucros procedem em grande parte de apostas cada vez mais vultosas que lhe fazem. Em Boston ganha seis mil dólares ao  conseguir desenvencilhar-se de cem metros de linha de pesca, muito resistente, que lhe passam à volta de todo o corpo, por forma a não ser possível fazer o menor movimento. Em Washington é introduzido, completamente nu, numa cela prisional, de onde consegue escapulir-se dois minutos após a porta ter sido trancada. Fabricantes de fechaduras para casas-fortes perdem muito dinheiro ao apostarem na inviolabilidade dos respetivos mecanismos. Em todas as situações, uma única exigência: a de a sua atividade de libertação não poder ser observada a olho nu.
Nem sempre as atuações são desprovidas de excecionais agruras e, até, de risco mortal. É o que sucede em Detroit, num dia invernoso, quando Houdini mergulha no rio, amarrado da cabeça aos pés, as mãos algemadas, correntes por todo o corpo. A água tornara-se, à superfície, num grande lençol de gelo compacto e por isso ele penetra por um orifício, espaço diminuto que será também, naturalmente, a única via de saída. Houdini desenclausura-se, de facto, dos artefactos que o aprisionam, mas viverá a seguir um longo tempo de pavor por não conseguir re-encontrar a abertura na superfície. Só ao cabo de oito minutos reaparece – gelado e quase morto.
No início do século XX, a fama de Houdini ultrapassa fronteiras e os jornais europeus noticiam amiúde os seus feitos extraordinários. Enriquece. Começa, entretanto, a fase do marketing informativo e das reportagens sensacionais, desencadeadas sobretudo pelo Daily Mirror. A estratégia consiste em lançar ao mágico determinados  reptos que ele aceita a troco de significativos prémios, em caso de êxito, o que se verifica sempre. O jornal que atribui o prémio sabe  antecipadamente que suportará esse encargo, mas, em contrapartida, pelo período de dois ou três dias, registará colossais receitas advenientes de substanciais aumentos das tiragens. É assim que, certo dia, em Londres, por iniciativa do Daily Mirror, Houdini enfrenta uma multidão de quatro mil espetadores e se liberta de algemas «especiais», entretanto expostas ao público; entre outras singularidades, essas algemas haviam sido fabricadas por um serralheiro que levara dois anos a aperfeiçoá-las.
Ressalta na biografia de Houdini a sua cruzada durante muitos anos contra os médiuns e o espiritismo. Numerosíssimas vezes revela os meios fraudulentos usados nas pretensas comunicações com o além e chega a denunciar presencialmente, em fulminantes aparições com testemunhas, as fraudes praticadas nas sessões mediúnicas.   
Houdini morre com apenas 52 anos e até essa derradeira ocorrência  tornar-se-á motivo para fantasias delirantes. O que aconteceu, porém, com toda a singeleza, foi uma peritonite. O mágico encontrava-se a atuar em Montreal, tendo acolhido no seu camarim um grupo de estudantes universitários. Um deles, Wallace Whitehead (um nome que de forma inesperada ficou na história da magia), põe em dúvida, durante a conversa humorada, a muito difundida resistência do abdómen do mágico aos golpes mais duros; pergunta se poderá desferir alguns murros. Era um desafio que várias vezes já havia sido feito e Houdini aceita-o de novo. Nesse momento, porém, já estaria em progressão uma apendicite, sem que Houdini soubesse. Chegado a Detroit é operado e retirado o apêndice, mas os médicos não demoram a perceber que uma peritonite mostrar-se-á fatal a um prazo de dias. Ainda é realizada, sem qualquer êxito, uma segunda intervenção cirúrgica. Houdini expira em 31 de Outubro de 1926. Um dos seus biógrafos remata, a propósito, ter sido essa a última e única prisão de que ele não conseguiu libertar-se.

POSSÍVEL EXPLICAÇÃO DOS PRODÍGIOS

A mais completa biografia de Houdini foi escrita por William Gresham e editada em 1959. Alguns aspetos enigmáticos dos cometimentos inauditos desta personagem seriam explicitados, então, com bastante detalhe. Sabia-se já, por exemplo, que Houdini possuía capacidades fisiológicas verdadeiramente incomuns, mas Gresham clarificou como tal circunstância, a par de um regime intensíssimo de treinos e de uma férrea força de vontade, tornaram possíveis os fenómenos.
Assim, Houdini conseguia exercer sobre ele próprio dilatações musculares (hipertonia), em certas partes do corpo, e acionava essa aptidão durante o lapso de tempo que demorava o aprisionamento através de algemas e de outros géneros de tolhimentos; depois, num passe de brevíssima ocultação do corpo, executava um relaxe de «normalização física» (hipotonia) e desse modo se desenvencilhava de todas as amarras.
Outra capacidade insólita era a da retroperistalsia – uma expressão estranha para significar o ato de engolir e reter objetos no meio do esófago, os quais podem fazer-se voltar de novo à boca. Houdini trazia sempre consigo, escondida na boca, uma minúscula gazua de arrombador, de própria invenção, que deslizava para o esófago ou era regurgitada, conforme a sua vontade.
São justamente essas particularidades de natureza "fenomenal" que produzem entre os modernos mágicos, criativos, uma reação de certo demérito da figura do "Grande Houdini". As façanhas deste, na realidade assombrosas, reduzir-se-iam à dimensão de uma espécie de faquirismo circense. Pelo contrário, a arte mágica contemporânea é encarada cada vez mais como espetáculo onde predomina a inventividade e a imaginação. Essa constitui a diferença abissal entre Houdini e Robert-Houdin, o pioneiro da magia moderna. Mesmo os profissionais admiradores do primeiro são forçados a reconhecer que, num estrito plano técnico-criativo, os sistemas utilizados por Houdini nos seus escapes não revestiam qualquer complexidade. São conhecidos, em pormenor, por qualquer iniciado na arte. Vejam-se, todavia, os mecanismos de Robert-Houdin: são verdadeiros prodígios tecnológicos, transcendentes, que perduram no tempo como criações supremas na arte de encantar.

HOUDINI NO CINEMA

Várias vezes foi Harry Houdini tema de realizações cinematográficas, as mais antigas desempenhadas por ele próprio para a Paramount: The Grim Game (1919), com direção de Irvin Willat, e Terror Island (1920), de James Cruze. Eram thrillers cujos enredos aventurosos, centrados nas incríveis evasões, atraíam multidões às salas de cinema. Espetáculos reais também seriam reportados com frequência nos documentários de atualidades: o público, embasbacado, batia palmas no desfecho das façanhas.
Data de 1953 a primeira longa-metragem com o título Houdini, dirigida por George Marshall e com Tony Curtis a fazer o papel central. O filme seria criticado em alguns setores por refletir uma imagem distorcida da vida do mágico, protagonizando certos episódios românticos que os historiadores consideraram infundados.
O filme The Great Houdini (O Grande Houdini) foi realizado por Melville Shavelson em 1976 e firmou-se como obra rigorosa do ponto de vista biográfico. O ator Michael Glaser interpreta a figura do mágico, mas no elenco ressurgem duas estrelas que são autênticas lendas na história do cinema: Peter Cushing, o carismático monarca do terror fílmico, e Maureen O'Sullivan, mãe de Mia Farrow, que foi a inesquecível Jane do mais mítico dos Tarzans, Johnny Weissmuller.

 

© PEDRO FOYOS



CHUNG LING SOO:
ILUSÕES MORTAIS

A magia do Homem Invulnerável, internacionalmente conhecida também pelo nome de Bullet Catch, evoca entre os profissionais da arte a tragédia de uma figura estranha que emocionou multidões com um número anunciado como mortal – e que o foi, na realidade, em circunstâncias patéticas.
Nenhum outro mágico, à exceção de Houdini, seu contemporâneo, terá sido tão celebrado na época. Norte-americano, de origem escocesa, nasce em 1861. O seu verdadeiro nome é William Ellsworth Robinson, mas, na transição do século, notabiliza-se sob o pseudónimo de Chung Ling Soo, o "Ilusionista Celestial Chinês", protagonizando durante vinte anos uma autêntica epopeia metamórfica de visual e de personalidade. Transmuta-se recorrendo a severa maquilhagem que passa por rapar o cabelo e as sobrancelhas, enverga vestes orientais que por todo o lado exibe e também a nível psíquico comete outra metamorfose não menos fantástica: age e pensa como um chinês. Nas ruas, quando reconhecido e aclamado, agradece com as peculiares vénias saracoteadas. Depara-se-lhe um derradeiro escolho, o da expressão verbal, pois desconhece quase por completo a língua chinesa. Então faz-se acompanhar por um "intérprete" (a própria mulher, por vezes), não só nos espaços do quotidiano social mas também nos seus espetáculos. Pouquíssimas pessoas estão a par deste fabuloso segredo, que baqueia num ápice na noite de 23 de Março de 1918. Na manhã seguinte, a yellow press exulta sensacionalmente:

•   Mágico famoso morre em pleno espetáculo.

Títulos portentosos, coerentemente negros, alimentam, como um festim excecional, as rotativas imparáveis:

•   Ilusionista vítima mortal do próprio truque.

•   Fuzilamento simulado torna-se real.

•   A mais trágica das ilusões.

Um diário britânico aduz uma interrogação subtil à qual ninguém conseguiu, até hoje, dar uma resposta cabal:

•   Acidente, suicídio ou... crime?

O acontecimento tem por palco o magnificente Wood Green Empire Theater, de Londres, quando Ling Soo executa um dos seus mais afamados truques, por ele próprio denominado Homem Invulnerável. À semelhança do que se passara antes, em inúmeros espetáculos apoteóticos, também nessa noite o mágico se dispõe a apanhar com os dentes as balas disparadas contra si por dois assistentes com trajes de guerreiros chineses. São feitos dois disparos, um dos quais o fulmina. Os espetadores, pasmados, vendo-o cair, não sabem ao certo se o que presenciam será um drama real ou uma representação teatral levada a um extremo grotesco. É real.

UM TRUQUE COMPROVADAMENTE FALÍVEL

Encetam-se investigações policiais, extensas e porfiadas, porque a hipótese de acidente é repudiada por pessoas íntimas do mágico (um ato desvairado de ciúmes, por parte da própria mulher, afigura-se verosímil). Há uma profusa literatura sobre Chung Ling Soo e a extraordinária magia mortal. Will Dexter (1906-1985), afamado jornalista e escritor inglês de temas mágicos, publica em 1955 The Riddle of Chung Ling Soo, volumosa obra de investigação, porém inconclusiva sobre a verdade da funesta ocorrência. Em apoio à tese de acidente costuma citar-se um relatório técnico-casuístico realizado ao tempo por um detetive perito em armas de fogo, mas… não o suficiente para derrogar as demais suspeitas, sobretudo a de homicídio.
De um modo ou de outro, parece certo ter havido até agora uma boa dezena de epílogos mortais na exibição de números similares. O truque é comprovadamente falível. Harry Houdini terá chegado a ensaiá-lo mas amigos dissuadiram-no de o concretizar. Para a história das curiosidades mencione-se o facto de a arma que matou Ling Soo integrar hoje a monumental coleção de equipamento mágico de David Copperfield.
Interessante também notar que um dos primeiros ilusionistas do mundo a executar o número é um português, Bernardo Costa (1841-1908), cujos maiores êxitos ocorreram no Brasil a partir da última década do século XIX. «Bernardo Costa – descreve Eduardo Relvas – mandava disparar uma garrucha sobre si, arma que antecedentemente era examinada pela assistência, junto com as balas a empregar. Na ocasião dos disparos, o famoso ilusionista minhoto apanhava as balas com a boca e cuspia-as num prato de loiça para serem reconhecidas pelos espetadores que as haviam marcado.»

"BULLET CATCH" EM VERSÃO DE DUELO

A magia "Bullet Catch" tem variantes de execução. Uma versão moderna, representada com mestria pelos artistas Pen & Teller, é deveras sensacional: os dois disparam em simultâneo, um contra o outro. Todas as figurações, das clássicas às modernas, sempre impressionantes, consistem na sua essência em apanhar com os dentes um projétil disparado por uma arma de fogo (pistola, em geral). Para que resulte indubitável o facto de a bala deflagrada ser a mesma retida depois pelo mágico, pede-se a um espetador que faça na mesma uma marca pessoal (assinatura, desenho, etc.). Acresce, como prova real do disparo, que o projétil, no seu percurso, atravessa um vidro, estilhaçando-o. Ora, presume-se que o efeito do vidro partido é provocado por uma dissimulada ação concomitante ao disparo mas fisicamente estranha a este. Pode assegurar-se, porém, que numa das versões não é isso o que acontece: o vidro parte-se, na realidade, em consequência do impacte do projétil.
E mais não pode ser dito...


© PEDRO FOYOS



LEOPOLDO FREGOLI:
GÉNIO DA TRANSMUTAÇÃO

Texto disponível proximamente

 



CAPÍTULO SEGUINTE:
… e… hop!
(NOTAS DE REPORTAGEM)