memorias magicas

         Deixa voar bem alto a fantasia!
          Sem ilusões, o mundo que seria?

                                                   RAMÓN DE CAMPOAMOR (1817-1901)

    1.

       O MITO DO IMPOSSÍVEL

filete


Segundo uma lenda asiática, havia um rei sábio que mandava decapitar
as pessoas que pronunciavam a palavra «impossível».
Algumas gerações mais tarde, nada, naquele reino, era impossível.
Apesar disso, o rei morreu.



memorias magicas

A QUEDA DE ÍCARO (RUBENS)         


HISTÓRIAS ESPANTOSAS
QUE SE CONTAM

Era uma vez...
No Coliseu dos Recreios, um público eufórico, ansioso, enche por completo a imensa sala para assistir à atuação de um renomado mágico estrangeiro. Um pouco por toda a cidade comentam-se os truques prodigiosos com que o incomparável ilusionista tem arrebatado as maiores plateias da Europa. Os lisboetas disputam os lugares para o espetáculo. Sessão única com início previsto para as nove da noite. No minuto em ponto o pavilhão está repleto. O tempo passa, porém o palco permanece ridiculamente vazio. Meia hora depois, sobe a grita de protesto, reação compreensível porque a notoriedade do artista não justifica tamanha inconsideração para com um público tão devoto. O certo é que o tempo continua a correr, a indignação estrepitosa do povo ouve-se para lá do Rossio e do prestimano nem sombra ou o obséquio de uma desculpa mandada.
Aparece, por fim. Traz uma hora de atraso; no rosto, o ricto de uma estupefação fingida. A multidão não o poupa, feliz, agora, ao reparar que a vaia acerta num corpo exposto.
Avança dois passos. Sorrindo. Digna-se saudar os presentes. Ao fazer-se silêncio, lembra:
— Todos os jornais anunciaram este espetáculo para as nove da noite...
Perversamente, em vez de começar a cena, o velhaco ainda vem com conversa mole. A multidão reage ao desaforo, como se impõe: berrando de novo.
A custo, prossegue:
—... E também em todos os cartazes vi marcada a mesma hora: nove da noite...
A provocação é óbvia. O hipócrita força, com a malevolência de um ente diabólico, a irritação generalizada. Mas pede silêncio. Necessita  de um minuto para lograr uma brecha no alarido:
— Não vos entendo – diz, ainda a sorrir. – Se olharem para os vossos relógios poderão verificar que neste instante são, exatamente, nove horas!...
Centenas e centenas de pulsos soerguem-se num gesto uníssono como um mecanismo autómato acionado à distância.
Todos os relógios marcam, de facto, nove horas...

Esta é uma das numerosíssimas histórias fantásticas que os mágicos portugueses contam e recontam quando se juntam em iniciativas de convívio, congressos, festivais. O episódio relatado nunca terá acontecido. Mas não falta quem assegure a veracidade do evento, aduzindo o testemunho de antigos familiares e conhecidos que, justamente, até estavam lá. Em todas as reuniões, a incrível história do Coliseu de Lisboa surge como tema inevitável de conversas e controvérsias sem fim.
— Pode crer que foi verdade – diz-me um participante caloiro num congresso realizado na Figueira da Foz. – Os jornais noticiaram a proeza e recordo-me de ver, em minha casa, era eu ainda muito novo, publicações da época que o meu avô guardara.
José Dias Vilhena, personalidade que durante décadas foi bem conhecida e muito admirada no meio mágico nacional sob o anagrama de Jodivil, pesquisador e historiador perseverante, chegou a porfiar na busca de sinais indiciários do extravagante feito. As investigações, no entanto, não conduziram a nada de concreto. É pena, pois essa seria uma magia formidável. A realidade é que estamos perante um mito.
Todavia... se non è vero è ben trovato! Houve um mágico luso que, há algum tempo, se obstinou na concretização do número impossível. Era convicção desse ilusionista de que existiriam na atualidade meios tecnológicos (de cuja exata natureza fazia segredo) mediante os quais seria possível interferir nos relógios de toda uma assistência. Afortunadamente, alguém o dissuadiu. Admitindo-se a exequibilidade do empreendimento, figurava-se inevitável um desfecho calamitoso: os espetadores sairiam do espetáculo com os relógios avariados...

TODOS ANSIAMOS QUE O IMPOSSÍVEL ACONTEÇA

José Dias Vilhena, meu amável cicerone em numerosas viagens ao mundo da magia, desfia-me um rosário infindo de histórias espantosas. A fronteira que separa a ficção da realidade é com frequência tão inapreensível como os próprios truques ilusionísticos. Depois, todos ansiamos, no fundo, que o impossível aconteça. Como dizia aquele jornalista num filme memorável de John Ford: «Quando a lenda se torna um facto, publique-se a lenda.» A história da magia, repete-me Dias Vilhena, é, em larga medida, uma história mitológica. Espera-se sempre algo capaz de superar aquilo que já foi feito. Por outro lado, o público tende a exigir mais e mais do que lhe está prometido. Os mitos nascem da necessidade humana, sempre insatisfeita, de criar ilimitadas surpresas e deslumbramentos.
Chegou-se por essa forma a uma arte e tecnologia do "sobrenatural" que manufatura milagres à revelia da costumada ordem divina e com uma verosimilhança manifestamente superior. Alguns desses milagres modernos mobilizam equipas e encargos financeiros quase similares aos de uma grande produção cinematográfica.
Há anos, quando David Copperfield realizou uma das maiores ilusões de todos os tempos – voou, em estilo Superman, perante vinte mil pessoas, num espaço por completo iluminado – levantou-se um clamor de descrença. O impossível estava a acontecer, ao vivo, e ninguém queria acreditar. Fechando os olhos, retendo o mito na memória, tudo faria mais sentido. Ao adquirirem uma visibilidade literal, os mitos assim desnudados tornam-se paradoxos insolúveis, que só a magia pode interpretar.


© PEDRO FOYOS



UMA ARTE VULNERÁVEL
A TRAMPOLINICES

São criaturas indefesas, os mágicos. As mais vulneráveis de todas as criaturas. Compreende-se: praticam uma arte feita de gestos vulneráveis. Arte e gestos que, precisamente, encerram na sua essência uma vulnerabilidade suprema, as ilusões. Escoram-se por tal razão em silêncios e enigmas. Retraem-se nas iniciativas que possibilitem de algum modo a descoberta das próprias vivências. Desse modo instintivo preservam os segredos matriciais que constituem, afinal, a sua "identidade mágica". Isto ajudará a entender por que é muito raro verem-se mágicos a falar de si próprios e da sua atividade, fora do "meio". Contudo, longe vão os tempos em que venerandas figuras do teatro ilusionístico cultivavam o seu halo de misticidade e hermetismo com o propósito de sobrelevarem aos olhos do público a natureza artificiosa, singelamente humana, dos prodígios encenados.
A história da magia é um jardim minado. Nesse mundo resplandecente de maravilhas dissimulam-se episódios grotescos protagonizados por geniais embusteiros. Genialidade, de facto, somos forçados a reconhecer em figuras inimitáveis como o aventureiro italiano Giuseppe Balsamo, celebrizado com o nome de Conde Alessandro de Cagliostro, um dos expoentes máximos da alta charlatanice, não só pela mestria das pantomimas mágicas mas também pela extensão geográfica em que as foi praticando por todo o mundo durante a segunda metade do século XIX. Também Portugal o acolheu, a princípio com afabilidade, até admiração, pois Cagliostro sabia insinuar-se nos meios da imprensa e da aristocracia, auferindo reputação como excelso "espiritista", sem igual na Europa, enquanto diligenciava pacientemente ocasiões propícias para cometer as costumadas extorsões, sobretudo junto das famílias ricas que alojavam no seu seio "doentes incuráveis" ou sustentavam esperanças de comunicar com parentes falecidos. Corria o mês de Fevereiro de 1894 quando Cagliostro, apresentando-se como "doutor", chegou a Portugal, acompanhado da esposa, que, na realidade, não passava de uma prostituta de luxo.

CAGLIOSTRO EXPULSO DE PORTUGAL

Quase um século depois, quando eu fazia uma pesquisa jornalística para um livro celebrativo dos 125 anos do Diário de Notícias, captei por mera casualidade, na primeira página da edição do dia 14 daquele mês, o seguinte pitoresco registo: «O notável prestidigitador e magicien dr. Cagliostro offerece hoje uma soirée à imprensa de Lisboa, nas salas do nosso colega As Novidades. Dizem-nos que são curiosissimos os seus trabalhos, que dividirá em duas partes: o Laboratório de Cagliostro e a Casa Encantada.» No dia seguinte, em notícia mais extensa, o jornal prodigalizava elogios ao acontecimento de "hontem" – a «sessão de espiritismo e prestidigitação» – e descrevia: «O dr. Cagliostro e sua esposa, que o auxilia nos seus interessantes trabalhos, conservaram durante duas horas e meia as pessoas presentes em grande animação, deixando todos maravilhados com as suas exhibições, realmente bem feitas e curiosas. Durante a sessão e ao terminar, o dr. Cagliostro foi muito applaudido, saindo os convidados satisfeitissimos com o agradavel passatempo que o espiritista lhes proporcionou.»
Todavia, desta vez as coisas não correram de feição ao "espiritista". Terão chegado à polícia portuguesa rumores sobre a entrega a Cagliostro de apreciáveis quantidades de ouro e diamantes como pagamento antecipado pela realização de "sessões privadas"; começou a ser vigiado e acabaria por ser expulso do País, mantendo-se no maior secretismo os nomes dos abastados comerciantes e gente afidalgada que, à semelhança do ocorrido noutras partes do mundo, havia caído nos ardis de tão diabólico magicien.


© PEDRO FOYOS



UMA NOVA ERA
NA HISTÓRIA DA MAGIA

Na atualidade, o quadro alterou-se em profundidade. As novas gerações de mágicos adotam em geral retos códigos nos quais não se reveriam com toda a certeza os "Cagliostros" de outrora. Dir-se-á que, em relação à imagem pessoal transmitida para o exterior, persiste alguma sedução pelo mistério. É verdade e, convenhamos, aceitável. A questão da vulnerabilidade justificará em grau compreensível esse "dispositivo de segurança". Acresce, de acordo com uma tese cara a alguns académicos, que a visão encantatória do espetáculo resulta valorizada quando o ator consegue dissipar a própria identidade real e se transmuda para a personagem interpretada. David Devant, histórico mestre inglês da arte, escreveu que um mágico deverá ser um ator a desempenhar o papel de mágico. Tal exercício, porém, não deverá extrapolar-se para a vida do artista, fora do palco. Hoje, já nenhum mágico opera autotransfigurações de identidade, como o fez o americano William Ellsworth Robinson, que, no princípio do século XX, adotando o nome Chung Ling Soo, o "Ilusionista Celestial Chinês", modificou por completo não só o visual como a personalidade, em moldes extremos [sobre esta figura marcante da história da magia dedica-se espaço próprio no capítulo "Realidade e Lenda"].
Poderá falar-se, então, de uma nova era na história da magia? Com toda a certeza. Estamos em pleno advento de uma geração renovadora, com ideias e conceitos pioneiros, a todos os níveis. Os honoráveis comparsas de outros tempos arrepiar-se-iam se lhes fosse dado assistir, nos dias de hoje, à desfiguração místico-divinal da arte, executada, agora, por cidadãos comuns a quem as repartições de finanças não concedem, sequer, o direito de inscrição numa rubrica do tipo "Fazedores de milagres e de sucessos conexos". Acode à memória, a propósito de "milagres", o cómico episódio do empresário teatral que, tentando aquietar o público impaciente, veio ao palco desculpar-se: «O espetáculo está um pouco atrasado porque o mágico ficou retido num engarrafamento de trânsito…».


© PEDRO FOYOS


HARRY HOUDINI
"VERSUS" CAGLIOSTRO

Os célebres impostores de séculos passados, da estirpe de um Cagliostro, deixaram descendência que todavia ainda faz nos nossos dias aparições esporádicas. Na realidade, já não serão trampolineiros de elite. Recorrem ao logro manhoso, rasteiro, e espanta que as plateias não reajam de imediato com uma pateada. Mais ainda que os colegas de profissão se cumpliciem na impunidade de quem corrompe, em palavras e atos, uma arte virtuosa. Durante o tempo em que frequentei como jornalista este mundo secreto deparei com gente despudorada que se impunha junto do público como possuidora de poderes sobrenaturais. Gravemente, sem um resquício de humor ou de límpida rabulice teatral, um desses "cagliostrozinhos" modernos explicou, à boca de cena, introduzindo a atuação: «Era ainda adolescente quando notei que emergiam em mim certos poderes que nenhum cientista até hoje conseguiu decifrar…»
Em época não muito distante teve apreciável notoriedade em Portugal um autointitulado "professor" especializado em "transmissão de pensamento" – com pseudónimo ressoando um dogma oriental – que se dirigia ao público bradando: «Daqui desafio os médicos que estejam presentes na sala a desmentirem-me!»
Em Paris, entrevistei vários profissionais, um dos quais, também da família "telepática", me deixou atónito com a revelação de que ninguém na comunidade mágica internacional conhecia os truques das inauditas "adivinhações" e "transmissões mentais" apresentadas nos seus espetáculos. Depois, com um meio sorriso: «Claro que não sabem. Se eu próprio não sei! E não sei, simplesmente, porque não existem truques. Bem podem procurar, jamais encontrarão! Só abrindo-me a cabeça. Porque… tudo está no interior da minha cabeça!»
Regressado a Portugal, menciono o episódio a António Cardoso, uma personalidade prestigiosa no meio mágico e que há décadas pratica fervorosamente o chamado "mentalismo". Conhece a preclara personagem, já assistiu a um dos seus espetáculos. Explica-me com a doçura de quem já se divertiu a ouvir mil e uma historietas do género:
— Ele é sem dúvida um bom ator. Mas, quanto aos truques, bem… creio que todos, ou quase, terão mais de cem anos… Apenas variam os códigos…
São exceções. A grande maioria dos mágicos atuais observa o límpido código de conduta de Harry Houdini. Os seus feitos no domínio da escapalogia eram tão extraordinários que avassalavam as primeiras páginas dos periódicos, alguns dos quais permitiam que expressões nada ambíguas transmitissem aos leitores a ideia de se ter assistido a atos sobrenaturais. Então, algumas vezes Houdini considera-se ofendido, vai pessoalmente a esses jornais exigindo um desmentido: «O truque das algemas não passa de uma perícia manual. Quem diz que se liberta por meio de poderes de médium é um charlatão.»


© PEDRO FOYOS


MODERNOS "MILAGRES"
AO ALCANCE DE TODOS

No último quartel do século XX assistiu-se à proliferação de uma literatura bem guarnecida de atributos fiáveis quanto à sua seriedade e cientificidade, propiciando fama e fortuna aos autores. Os temas contemplavam os fenómenos psíquicos, as projeções astrais, a mística do sobrenatural, demais manifestações de "ocultismos", "esoterismos", no modelo acabado de um Guinness Book dos poderes do espírito. Era uma literatura sui generis que vendia bem, a par da fenomenologia óvni e de safras quejandas. Nada teria de condenável a divulgação de tais saberes e curiosidades não fora a circunstância abstrusa de alguns autores invocarem, em defesa das suas teses, históricos artistas do espetáculo ilusionístico, cujos cometimentos sensacionais se transmutavam nos livros (num passe, aqui sim, verdadeiramente mágico) em ocorrências transcendentais.
O mais célebre escritor deste género de bestsellers consagrados ao tema do "impossível" foi Steve Richards, traduzido e publicado no mundo inteiro (Portugal, inclusive), vendendo manuais com receitas do tipo «como conseguir tornar-se momentaneamente invisível» ou «como desprender-se do solo só pela força da mente?». Ou ainda: «Como ser imune à dor à semelhança dos faquires indianos?». Mediante o  preço módico de um livro com centena e meia de páginas os leitores podiam concretizar sobre si mesmos o "impossível", destronando mitos ancestrais. "Milagres" sortidos, económicos, ao alcance de todos.
Que levaria tanta gente em tantos países («milhões de pessoas» - proclamavam as felizes editoras) a comprar os livros de Steve Richards? O jornal Expresso tentou responder à pergunta com uma análise desapiedada: «Não rejeitando a possibilidade de aquisição de conhecimentos eventualmente úteis, verifica-se que a leitura de textos desta natureza se converteu numa espécie de tranquilizante, outras vezes de dopping, sem os quais muito boa gente já não consegue conferir um mínimo de energia e sentido ao seu mais que esvaziado quotidiano. (…) Enfim, os "zés-ninguéns", como diria Reich, podem sonhar com a hipótese de um dia virem a ser super-homens e supermulheres dotados de superpoderes, sem que a sua realidade e vida pessoal deixem de ser o que são – uma tristeza.»


© PEDRO FOYOS



DAS ANCESTRAIS MÍSTICAS
AOS "BESTSELLERS" ATUAIS

O maior êxito editorial de Richards tem o título Levitação. Um produto assombroso. O livro pretendia demonstrar, seriamente, que o leitor, dando-se ao trabalho de observar determinados preceitos, seria capaz de se libertar da força da gravidade por meio da energia mental. Numa palavra, levitar. O tema é aliciante e milenar. O anseio supremo da prevalência do espírito sobre o corpo tem a idade do próprio Homem. Existe uma bibliografia apreciável que trata do fenómeno da levitação com probidade e ponderação. Os ensaios de Aimé Michel, por exemplo, são obras perfeitas (a quem possa interessar: este autor faz uma abordagem com objetividade e clareza no Livro dos Poderes do Espírito, 1989). No plano da análise histórica encontramos relatos espantosos nas Sagradas Escrituras e na memória das mais antigas religiões. Cenas de levitação são recorrentes nas biografias dos grandes místicos, santos, ascetas e teólogos. O Museu do Louvre exibe um quadro famoso, de Murillo, representando uma levitação milagrosa, a de São Diogo.
Estará por fazer a imensa crónica - que seria fascinante - da lendária fenomenologia da levitação através dos tempos, proveniente, talvez, de relatos extravagantemente distorcidos e  elaborados a partir de episódios clínicos reais que porventura a medicina moderna classificaria como crises epileptogénicas, distonias musculares ou outros estados mais singulares das chamadas "doenças do movimento". Abundam casos saborosíssimos, como os descritos por Eduardo Relvas numa publicação de 1968. Relata que São José de Cupertino terá sido o recordista, com nada menos que setenta ascensões testemunhadas. Era visto, amiúde, balouçando-se nos mais pequenos ramos das árvores com a leveza de um passarinho. Os breviários milagreiros concedem a São José de Cupertino um lugar de honra no consistório dos "êxtases aéreos". Dá gosto ler: «Um domingo, na festa do Bom Pastor, São José de Cupertino apresentou-se com um cordeirinho nos ombros e pouco depois viram-no a levantar-se pelos ares. Durante os dezassete anos que permaneceu no Convento de Grotella os seus companheiros de comunidade observaram grande número de levitações, a mais famosa das quais aconteceu quando dez obreiros do convento desejavam transportar uma pesada cruz para uma alta montanha, porém não o conseguiram devido ao peso e à distância a percorrer. Então Frei José tomou a cruz sozinho, colocou-a sobre os ombros e, elevando-se, voou até ao alto da montanha e lá depositou a cruz, sob os olhares atónitos de seus irmãos. Num outro dia chegaram ao convento o embaixador de Espanha e sua esposa, mandaram chamar Frei José para que os atendesse numa consulta espiritual. Este chegou correndo, mas antes ainda de falar com eles calhou poisar os olhos sobre um quadro da Virgem Maria, colocado num ponto elevado da parede, logo deu o seu típico grito de prenúncio de levitação ("Ah!") e foi elevando-se no ar até ficar frente ao quadro. O embaixador e sua esposa contemplaram com emoção esta ocorrência, que jamais tinham visto. Quando Frei José desceu suavemente e voltou a tocar o solo encontrava-se muito constrangido, tanto que correu para o seu quarto, de onde não mais saiu nesse dia.»
São José de Cupertino morreu em 1663, um mês depois de uma  última levitação, no Dia da Assunção da Virgem. Steve Richards cita-o no seu manual, num anexo final consagrado a levitações históricas.
Merecem ainda referência três bem-aventuradas: Inês de Boémia, Margarida do Santíssimo Sacramento e Ana-Catarina Emmerich. Da primeira conta-se que, passeando no jardim com duas das suas companheiras, teve um súbito arroubo que a fez elevar-se nos ares, desaparecendo de vista durante uma hora; ao reaparecer apresentava «o rosto radiante de graça e de alegria.» Quanto a Margarida: «Um dia, ia ela colher uvas para uma doente, avistaram-na elevando-se sem esforço até à altura das uvas, despegando-as e tornando a descer.» Finalmente, o caso de Ana-Catarina Emmerich é mais singular: «Desempenhando as funções de sacristã, elevava-se pelo exterior do convento até às janelas, andava sobre as cornijas e sobre os ornatos, «fazendo toda a limpeza em lugares humanamente inacessíveis.»
Fora da assembleia sacra dos grandes místicos de séculos passados, e retornando a Eduardo Relvas, o caso mais fabuloso é o do filho do Lorde Norpichen. O virtuoso menino «erguia-se com tanta facilidade no ar que os parentes e os criados o vigiavam, constantemente, e, por vezes aterrados, seguravam-lhe as pernas a fim de o impedir de se levitar a grande altura.»

O ENGODO EDITORIAL DAS "ENERGIAS ASTRAIS"

Não se esperaria que Steve Richards adotasse este registo paródico, mas quem julgou que do seu trabalho adviesse um melhor conhecimento da história dos prodígios místicos ou das tão desacreditadas faculdades metapsíquicas depressa viu desvanecerem-se as expectativas. Todo o livro (e outros publicados à época, com tiragens colossais) se resumia a uma caterva de inconvincentes episódios sobrecelestes (as chamadas "energias astrais"), ou mediúnicos, muitos dos quais, é preciso dizer, estão inexoravelmente sepultados num dos esconsos museológicos da aventura da superação da condição humana. Hoje, devotamos-lhe tão-só um sorriso complacente. Mesmo assim, admitir-se-ia que Richards repisasse essas ruínas. Deveria fazê-lo, porém, com rigor e honestidade. Ora, ele cometia graves infrações de desvirtuamento da realidade ao invocar figuras e factos alheios aos chamados poderes do espírito, pois tinham que ver, tão-só, com o mundo da milenar arte ilusionística. Ao contrário da magia espetacular, as manipulações de Steve Richards não eram  defensáveis. Um exemplo, entre vários: Harry Kellar, um prestigiado ilusionista do século XIX, cuja mestria o colocou entre os grandes nomes da história da magia, exibiu a sua arte no mundo inteiro; numa das digressões permaneceu na Índia britânica e teve o ensejo de assistir às inauditas proezas dos mahatmas, que, pelo poder do ioga, segundo se dizia, ficavam suspensos no ar ou trepavam por uma corda esticada, sem qualquer apoio. Regressado à América, Kellar foi convidado por uma revista a narrar as suas observações, o que fez, num extenso artigo factual, jamais deixando transparecer a noção de as levitações indianas revestirem natureza sobrenatural. O artigo de Kellar tem sido muito divulgado nas publicações de magia profissional, tornando-se uma referência corrente nas descrições do chamado «truque da corda indiana», um clássico notável cujo modus faciendi de essência mecânica e ótica já não oferece dúvidas aos estudiosos. Pois bem, igualmente Steve Richards recorria ao texto do célebre ilusionista, mas... que fazia? Começava por lhe atribuir um título credível, o de «Professor» (assim, por extenso e inicial maiúscula), com o óbvio propósito de vincar a "cientificidade" dos depoimentos que reproduzia a seguir. A distorção acentuava-se quando omitia tratar-se de um ilusionista profissional. Por fim, fragmentava o texto original, num contorcionismo despudorado, de maneira a que o leitor acreditasse estar perante as mais sábias proposições do conhecimento transcendental. O capítulo intitulava-se «Energias Astrais». Imaginemos que o português Luís de Matos, num muito mediático happening da "adivinhação" dos números do Totoloto, em 1995 [v. referência no cap. "… e… hop! / Notas de Reportagem"], se dirigia ao público com a seguinte explicação final: «Tudo isto foi possível em resultado dos meus extraordinários dons sobrenaturais.» Por muito tremendo que pareça, era exatamente isso que Steve Richards fazia. Mais: sentindo-se na obrigação de compensar o esforçado interesse do leitor, sugeria, num lance ao estilo de pudim sintético com brinde, que se passasse à prática. Vamos lá, então, aprender a levitar. As últimas páginas do volume correspondiam, assim, a um repositório de ensinamentos e conselhos "transcendentais" que visavam, pese embora a obscuridade da exposição, o mais luminescente dos desígnios humanos: voar. Não só, porque, como esclarecia o autor, «agora que conhece a técnica sanyama, há imensas coisas que pode fazer com ela, além de voar.»
Entretanto, não deixava de cumprir a infalível norma da discrição. Vejamos, literalmente: «Quaisquer que sejam os resultados obtidos, também aconselho o leitor a não os exibir a terceiros. Há pessoas que se sentirão ofendidas por você presumivelmente fazer coisas que elas não conseguem fazer, ao passo que outras começarão a incomodá-lo, para que lhes indique leituras psíquicas e as aconselhe sobre isto e aquilo, tornando-se cansativas.»
Este aspeto era sobremaneira importante. O autor obstinava-se na privacidade dos atos levitatórios por parte dos seus milhões de leitores em todo o mundo e também - hélas! - dele próprio: «Se aprender a levitar, faça-o onde ninguém possa vê-lo. Reconhecerá a sabedoria deste conselho da primeira vez que o ignorar. Pessoalmente, tenho como política não fazer, em absoluto, demonstrações psíquicas de espécie alguma.»
Noticiou-se que Richards viria a Portugal para estar presente na sessão de lançamento de um dos seus bestsellers, o que não chegou a suceder. De qualquer dos modos, tendo em conta a perentória indisponibilidade para fazer demonstrações de levitação ou de outros  superpoderes, era já sabido que não iríamos vê-lo aterrar em Lisboa  pilotando uma vassoura.


© PEDRO FOYOS



CAPÍTULO SEGUINTE:
BASTIDORES DA ILUSÃO