De O Criador de Letras:

  • Põem-no de pé. No fim da vertigem, toma consciência da nudez. Tropeça nos atilhos soltos de uma das sandálias – as sandálias únicas, feitas pelo pai, trançadas com a forma de pétalas. Resta, no antebraço direito, o adorno de papiro reforçado que o distingue como estudante da Escola de Escribas.
    Ao abaixar-se para apanhar a túnica lacerada reconhece, na mancha pardacenta dos muitos rostos de galhofa, cidadãos que têm declarado solidariedade ao Rei Zabarbaal. Também eles riem-riem.
    Lunaâkel tapa-se. Tenta cobrir o corpo ofendido apertando com aflição a túnica: como se tivesse as entranhas a nu. Desce os degraus num torpor de condenado. Desenvencilha-se num repelão da sandália que lhe estorva os passos. Depois, corre. A populaça reflui por instinto, dá-lhe passagem. Lunaâkel corre. Corre, corre. E corre-lhe nos olhos uma lava de dor. No rosto, uma cor de sangue sem sangue, a cor da vergonha. Lunaâkel corre. Corre. Corre furando a multidão. Corre, corre como a torrente de lava que lhe corre nos olhos.
    [...]
    Birkkizon, o lenhador coxo do Bosque de Ashtart, alarma a Cidade.
    – Assassinado! Baal-ai, Baal-ai, nossos grandes deuses! Está morto! O escriba Lunaâkel está morto!


De Botânica das Lágrimas:

  • O Jeco Marado, cruel "bubu" do sexto ano, que passa o tempo a relatar histórias impressionantes vividas na night...(aparece às vezes nas aulas com óculos espelhados, consta que se divorciou dos pais, deixou de dormir em casa, amiúde se lhe topa cigarro de cowboy ao canto da boca – «... devia ter vergonha», desaprova Bravo Toninho, «com tão pouca idade e já é um fumador invertebrado»)... pois o Jeco Marado, rematado bandido, espetador assíduo nos ringues clandestinos de "chut box" e que nas costas do Rufino fala de papo sobre uma futura ascensão à liderança do gangue dos "bubus" – é esse velhaco quem trava o passo ao General, entreabre o bolso fundo das calças, retesa um dedo obsceno, convida-o a espreitar:
    – A Dona Salsicha Gorda anda sempre comigo, 'tás a ver?

    A Salsicha Gorda. O General não consegue fugir à visão daquele instrumento seu conhecido: um cacetinho negro, de borracha, tipo bastão caseiro, que Jeco Marado prefere às varas e às canas no "corredor da morte". Exibe-o com frequência aos miúdos do 1º ciclo, longe de olhares adultos e dos alunos mais velhos hostis ao gangue. O General cerra os dentes ao ouvir Jeco Marado segredar-lhe com riso alarve:
    – Olh'áqui a cabecinha dela, tão linda q'é, não é? Tadinha, há tanto tempo sem fazer exercício. Vamos ver se lhe damos hoje essa alegria (...)
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    «Quem não obedece, apanha!» – A frase velhaca é uma das que Rufino costuma gritar no terreiro das canas. Tem na mão uma vara que serve ao mesmo tempo de batuta e para vergastar as crianças cujo desempenho não satisfaça. Sempre rodeado por alguns membros da sua matilha, vai distribuindo os papéis:
    – Tu fazes de gato de telhado, miau-miau. Tu: cão de guarda, ão-ão. Tu: pintainho, piu-piu. Tu: rã, croooac, croooac. Tu : grilo, cri-cri-cri. Tu : cuco, cu-cu. Tu: patinho, quá-quá.
    Naquele dia, um menino atrapalha-se. À voz de comando "gato!" faz "piu, piu, piu". O maestro ordena "alto!", chicoteia o troca-vozes, retira-o do coro, obriga-o a pôr-se de gatas e a repetir durante dez minutos, controlados ao relógio: «miau, miau, miau, miau...» Enquanto isso, vai esclarecendo os coristas que choramingam: «Um bom escravo faz-se de pequenino. Não sendo a bem terá de ser a mal. E parem com a choradeira! Quando o programa for de choro, nós avisamos.» Então, no recomeço, já Rufino exigira um dueto intercalado "burro-galinha", com o "miau-miau" contínuo em fundo, Leonardo dá um passo em frente (não era ainda General e havia-lhe sido atribuído o desempenho vocal do cordeirinho)... dá um passo em frente e grita: «Eu não faço mais mé-mé. Não sou cordeirinho nem palhaço!» O menino-intérprete do burro pára de zurrar, o do gato pára de miar e Rufino avança para Leonardo, de vara erguida, a raiva a brilhar-lhe na dentuça. Também os restantes praxadores saltam, brutais, sobre o bobo rebelde, que lhes troca as voltas e consegue escapulir-se com a agilidade de um aranhiço em plena prova de velocidade e perícia. Aproveitando a confusão, o menino-gato-de-gatas foge espavorido na direção oposta, o menino-rã salta o muro que separa o terreiro do ginásio, outros escondem-se no canavial, embrenhados no fundo mais fundo do medo. Nessas loucas correrias não alinha o menino-galinha: em pavor, sem coragem para fugir, incrustado no centro do maremoto, com lágrimas nos olhos e na voz, vai soluçando um cacarejar infeliz. E ali, no terreiro deserto, adormece de cansaço.
    A partir desse dia, os meninos mostram-se menos dóceis, até os tímidos começam a recalcitrar. Os ousados, esses, chegam ao ponto de se insubordinarem contra a "lei do boné": no exterior da escola – determina a "lei" – indo um "abanico" de boné posto, deve tirá-lo ao cruzar-se com um "bubu". E a "prova da malagueta" (salvo-conduto individual para evitar maus tratos), regista um índice baixíssimo de adesões. Após as férias do Natal, é descoberto o tenebroso plano do rapto de Leonardo. Não chega a consumar-se graças a um grupo guerreiro que, avisado do local e hora do atentado, se enclavinha à garupa do Simão-mão-de-betão, o piolhoso agente raptor. Este ainda se desenvencilha dos primeiros atacantes, atirados de cambulhada como sacos de trapos, mas logo um miúdo corajoso lhe salta aos costados e resiste com os braços em ferradura à volta do gasganete. Os guerreiros por terra recompõem-se a tempo de domar as manápulas e as pernas da fera, que tomba no meio de uma infernal grita de índios enraivecidos. Antes de reerguer-se e fugir, Simão é por todos cuspido com desprezo. Rufino e séquito vão considerando, irritados, que as "provas" no terreiro das canas terão de aguardar pelo novo ano letivo, quando chegar à escola outra leva de caloiros submissos.
    Não mais-mais a vida de Leonardo teve sossego. Mas a dos "bubus" também não. Raras vezes gozam até ao fim a tortura de um miúdo.