memorias magicas

         Deixa voar bem alto a fantasia!
          Sem ilusões, o mundo que seria?

                                                   RAMÓN DE CAMPOAMOR (1817-1901)

    5.

     …e… hop!

filete

(NOTAS DE REPORTAGEM)        

O repórter re-encontra Mandrake em Paris, assiste no Porto aos ensaios
secretos de uma peça de teatro, participa numa conversa de bar sobre um prisioneiro acorrentado prestes a cair no rio Douro, aprende a fórmula de
dilatar um dia para 32 horas, desempenha o papel de medianeiro num
intrincado conflito no aeródromo de Espinho e finalmente regressa a Paris
para entrevistar um argentino cujo projeto de vida profissional consiste em
colocar um elefante sobre uma grande bola de sabão.


MANDRAKE, O MÁGICO
FAZ UM GESTO e… hop!

DATA: NOVEMBRO DE 1995.
LOCAL: PARIS, PORTE MAILLOT, PALAIS DES CONGRÈS.

EFEITO PRETENDIDO
: REENCONTRAR MANDRAKE.


Na véspera da sensacional estreia de David Copperfield em Paris, com a superprodução Flying – Live the Dream, a direção do Palais des Congrès cedeu um espaço daquele portentoso edifício a uma académie de ilusionistas profissionais franceses para uma sessão de convívio internacional. Mágicos do mundo inteiro recém-chegados a Paris tiveram desse modo a oportunidade de confraternizar com os seus colegas franceses. O programa, estendendo-se por cerca de oito horas, incluía uma série de palestras que em alguns casos ofereciam a saborosa particularidade de serem proferidas por quem já assistira ao espetáculo de Copperfield nos EUA. Havia a expectativa de um ou outro dos renomados palestrantes poder levantar uma pontinha do véu em relação às secretas tecnologias que sustinham as ilusões, todas deslumbrantes, sobretudo a do "voo" balético, sobre a qual, aliás, eu já ouvira nos últimos dias meia dezena de versões diferentes, em geral estapafúrdias.
O acesso à "sala de convívio" era rigorosamente interdito a jornalistas. Quem pretendesse ingressar teria de exibir comprovativo de ser membro de uma coletividade mágica ou outro documento idóneo que patenteasse uma ligação ao métier. De qualquer dos modos, eu não tinha o mínimo interesse em assistir às palestras. Desde que iniciei as minhas crónicas e reportagens sobre o mundo do espetáculo mágico tenho porfiado em não conhecer os truques. É sempre com uma ponta de exasperação que nas deambulações pelos bastidores desse mundo enfrento a desencantada entidade chamada "truque", tão desprazível, tão excrescente. Para minha desdita, isso tem acontecido demasiadas vezes, pela simples razão de não poder evitar que a cruenta realidade me entre literalmente pelos olhos dentro.
(Em Paris, apesar das precauções, um jornalista da abelhuda revista Voici conseguiu introduzir-se no espaço privado do Palais des Congrès e faria dias depois um lastimoso brilharete nas páginas daquele semanário).
Não obstante o meu desinteresse pela sessão, tive curiosidade em ler um impresso de boas-vindas aos profissionais estrangeiros, com Copperfield incensado em cada uma das oito páginas. Numa delas desfiavam-se os títulos das palestras; detive-me num, estranhíssimo: «O momento pós-Hop!». Confuso, interpelei alguns dos cerca de trinta mágicos portugueses que na ocasião se encontravam em Paris, mas nenhum soube traduzir-me o que parecia ser a sigla de um conceito (não menos intrigante o ponto de exclamação final). Por fim, foi um francês, membro da académie, quem me fez a descriptação.

A LÓGICA DAS COISAS E A COISA SEM LÓGICA

O mágico com quem converso, sentados ambos nos magníficos sofás do Palais des Congrès, é um homem charmoso, culto, porte aristocrático, revelando a todo o instante o poder de persuasão por meio da simpatia e da arte de semear bom humor em qualquer tema de conversa. De começo, porém, assume um ar sério:
— O nome Mandrake diz-lhe alguma coisa?
Feliz com este introito, respondo entusiasmado:
— Claro que me diz. Quando jovem devorei todas as bandas desenhadas que existiam e a do Mandrake era uma das favoritas. Não esqueço aquelas histórias formidáveis, a noiva dele, que era uma princesa, mais o companheiro, um gigante negro… dos nomes é que já não me lembro.
— Princesa Narda e Lothar, também príncipe de um obscuro país africano. Há um pormenor curioso, muito desconhecido: sabe que o criador de Mandrake, Lee Falk, se inspirou num mágico real cujo nome era precisamente Mandrake?
— Interessante. Confesso que desconhecia esse facto.
— Leon Mandrake. Mas Lee Falk não só adotou o nome mas também alguma gestualidade e expressões verbais do Mandrake de carne e osso. Sobretudo uma recorrente expressão… talvez se lembre… uma frase, invariável – sempre a mesma em todas as histórias – que aparecia em rodapé no quadradinho e prenunciava uma grande reviravolta mágica. A frase era: «Mandrake faz um gesto mágico, e… hop!».
— Hop! Fantástico! Estava mesmo em frente do nariz e não via…
— A expressão hop! em magia de espetáculo corresponde ao momento decisivo. Uma linha de fronteira que separa o fracasso do êxito. Todo o trabalho consumido na elaboração de um número, que terá demorado meses ou anos, pode resultar destruído se esse momento carecer de autenticidade.
— Compreendo. O pós-hop! será o tempo sequente ao momento decisivo.
— Um tempo psicológico brevíssimo. Cinco segundos, dez segundos. Um espetador que veja pela primeira vez a "mulher serrada" arrepiar-se-á nos segundos iniciais porque interpretará o lance como realidade. Logo depois cairá em si: isto é uma ilusão, não pode deixar de ser uma ilusão. Permanecendo a dúvida por escassos segundos, significará que o artista conseguiu transmitir autenticidade. Se a este elemento adicionar originalidade e criatividade terá direito à qualificação de grande mágico.
— Suponho que a norma se aplicará a todos os géneros de ilusões, sejam pequenas ou grandes.
— Todas, sem exceção, seja um truque com lenços ou, como fez aqui o nosso amigo Copperfield, o de fazer desaparecer um Boeing 747 ou a Estátua da Liberdade em Nova Iorque.
— A ninguém passará pela cabeça, nem por cinco segundos, que o avião ou a estátua desapareceram mesmo.
— Surpreendentemente, passa mesmo pela cabeça. O nosso cérebro reage célere no plano rotineiro da lógica das coisas. Se lhe apresentarmos a coisa sem lógica ele tropeça no obstáculo imprevisto e é lento a superar a anomalia.
— E… hop! – eis um cérebro que se sente enganado!
— E… hop! – eis um cérebro que não tardará a adaptar-se.   Entretanto, o ilusionista vence-o…

Andei o resto do dia com a frase de Mandrake na cabeça.
Mandrake faz um gesto, e… hop!
—Hop!– Que palavrinha admirável.
Creio que não haverá outra tão mágica.

 

© PEDRO FOYOS



PERGUNTEM
AO PETER PAN !

DATA: 12 DE DEZEMBRO DE 1998.
LOCAL: PORTO. TEATRO DE SÃO JOÃO.
PROTAGONISTA: DINIS MACHADO, 11 ANOS, ALUNO DA ESCOLA FRANCISCO TORRINHA, PORTO.

EFEITO PRETENDIDO
: COLOCAR O DINIS A VOAR NO PALCO, DURANTE A PEÇA "O BARDO", DE LUÍSA COSTA GOMES.


— O Dinis voa numa peça de teatro!
A frase andava solta pelos intervalos das aulas na Escola Francisco Torrinha. Na antevéspera, um sábado, estreara-se no Teatro de São João a peça O Bardo, de Luísa Costa Gomes, e o professor de Português levara os alunos à sala da Batalha para assistirem à representação. Outros estudantes da Francisco Torrinha integravam o elenco, mas o Dinis dava especialmente nas vistas porque... «voava»! Não admira que este jovem de onze anos, um tanto franzino mas muito vivo, estivesse no centro das conversas escolares. Um dos seus colegas, que vira a peça, chegou mesmo a afirmar:
— Voa mesmo, a sério, até parece o Peter Pan!
Um outro, mais rigoroso, entendeu corrigir:
— Bem, não é voar, não é voar como os pássaros, ele eleva-se no ar, vai subindo, subindo...
Logo respondiam os apoiantes do voo:
— Então isso não é voar?!... Diz lá, isso não é voar?!
O Dinis ia captando fragmentos destas conversas, por vezes interpelações frontais:
— Como é o truque? Como é que se consegue fazer aquilo? Diz à gente, só a nós...
Sempre o Dinis respondia, íntegro:
— É segredo. Segredo de Estado. Não posso dizer.
Perante a insistência de um ou outro mais repisativo, sustinha o avanço, fulminante:
— Perguntem ao Peter Pan!

14h55. Nesta tarde de 5 de Dezembro, quando falta exatamente uma semana para a estreia, uma equipa de mágicos profissionais e o pequeno Dinis Machado encontram-se no Teatro de São João para o primeiro "ensaio de voo". Um dos assessores procede a um controlo técnico, certificando-se de que tudo está em condições para essa  experiência inicial. Depois, o chefe da equipa senta-se nas tábuas do palco e, numa "conversa privada" com o Dinis, explica-lhe com toda a minúcia a ilusão que permitirá aos espetadores verem-no a levitar, suavemente (puxado por uma «corrente de ar», de acordo com o guião da peça). Dinis escuta com a maior atenção, maravilhado. No final, o mágico tranquiliza-o:
— Tudo quanto vai passar-se foi testado comigo próprio, há tempos, num outro teatro. Pareceu-me formidável e, pronto, agora é a tua vez!

15h40. Dinis eleva-se no ar, sem que, aparentemente, algo o sustente ou puxe. Vacilante e desajeitado, ao princípio. À terceira vez, porém, já domina esta "técnica de voo" em grau apreciável. Tudo bem. Mas, descido ao solo, num murmúrio de pudor, dá conta de que aqueles exercícios de voo, como dizer?, lhe fazem doer «num certo sítio...».
É o que acontece a quem voa e não é pássaro...

© PEDRO FOYOS



PRISIONEIRO ACORRENTADO
CAI NAS ÁGUAS DO DOURO

DATA:  10 DE DEZEMBRO DE 1996.
LOCAL: PORTO. RUA DO PASSEIO DA FOZ, ZONA DA CANTAREIRA. HELIPORTO DA MARINHA.
EQUIPAMENTO: HELICÓPTERO BELL JET RANGER III, DE FABRICO NORTE-AMERICANO. PERMITE UMA CARGA SUSPENSA ATÉ AO MÁXIMO DE 680 QUILOS. ESTÁVEL E SEM VIBRAÇÕES.
INTERVENIENTES ESPECIAIS:
1. COMANDANTE CARLOS DANIEL FERREIRA AUGUSTO, NATURAL DE ESPINHO.
SOMA NESTA DATA QUATRO MIL HORAS DE VOO. MUITO CEDO TOMOU O GOSTO DA AVIAÇÃO: «ISTO É QUASE UM VÍCIO...» ESTEVE NA FORÇA AÉREA DESDE 1973. DEZ ANOS DEPOIS (EM 1983) INGRESSOU NA AVIAÇÃO CIVIL. GRANDE EXPERIÊNCIA EM MISSÕES DE EVACUAÇÕES DE EMERGÊNCIA E FOGOS FLORESTAIS.
2. ALCINO MOURA, NATURAL DE CARVALHO DE REI, AMARANTE. PROPRIETÁRIO DO BAR-RESTAURANTE «O PALMEIRA». ESTÁ NA ACTIVIDADE DOS BARES HÁ MUITOS ANOS.

EFEITO PRETENDIDO
: O MÁGICO LUÍS DE MATOS, A BORDO DE UM HELICÓPTERO, APROXIMA-SE DO HELIPORTO DA MARINHA. DESCE EM VERTIGINOSO "RAPPEL". É ACORRENTADO E INTRODUZIDO NUM CAIXOTE DE MADEIRA CUJA TAMPA DOIS ASSISTENTES FECHAM A PREGOS. O CAIXOTE É PRESO AO HELICÓPTERO POR MEIO DE UMA FORTE CORDA. O APARELHO LEVANTA VOO EM DIRECÇÃO AO RIO. A CORDA, ENTRETANTO INCENDIADA, DEVERÁ CEDER AO FIM DE POUCOS MINUTOS. PARA NÃO CAIR NAS ÁGUAS DO DOURO, O MÁGICO TERÁ DE LIBERTAR-SE DAS CORRENTES E SAIR DO CAIXOTE. ESTE ACABA MESMO POR DESPENHAR-SE E FICAR DESFEITO APÓS O EMBATE. O HELICÓPTERO DESCREVE UMA CURVA DE REGRESSO E VÊ-SE LUÍS DE MATOS NO APARELHO, AO LADO DO PILOTO, ACENANDO ÀS MUITAS DEZENAS DE POPULARES QUE ASSISTEM EM TERRA.


Manhã ventosa, céu turvo, um frio de rachar. Fizeram-se ontem os primeiros ensaios, andei por aqui umas lentas horas e creio que a temperatura não seria tão baixa. Hoje, é mesmo de bater o dente. Passo pela viatura da televisão, o condutor está encolhido no interior, abre uma frincha do vidro para me informar:
— Três graus! Marca aqui no termómetro do carro.
Benditas palavras, tanto precisava delas para vencer a indecisão de uma nova visita ao "Palmeira", o confortável bar do outro lado do Passeio da Foz. Ontem estive lá por duas vezes, já sou conhecido do proprietário, o senhor Alcino Moura, afável amarantino de Carvalho de Rei, como fez questão de pormenorizar.
O senhor Alcino está radiante. As cerca de trinta pessoas que integram a operação mágica "Helicopter Escape" tornaram-se clientes assíduos. Acresce o povaréu vindo de todos os quadrantes da freguesia, contido a uma distância de cinquenta metros do eixo axial da grande magia; os homens, também algumas mulheres, de quando em vez não resistem a "aquecer-se" naquele porto de abrigo.
O senhor Alcino debruça-se agora um pouco sobre o balcão para me confidenciar que, animado pelo êxito de ontem, reforçou substancialmente para hoje a oferta de secos, molhados e entremeios. Declino o meu ofício e a incumbência profissional que me levou até ao local, assim justificando as constantes perguntas que lhe tenho feito.
— Jornalista, hein! – Sem surpresa reage quando adito: «… de Lisboa». – Eu já me parecera que muito deste pessoal é de Lisboa. Pois pode dizer que aqui o Alcino Moura, criado em Carvalho de Rei, a terra que produz o melhor vinho verde de Portugal, anda há muito tempo nesta atividade dos bares. Aqui no Passeio da Foz estou há oito anos. E muito mais lhe poderei contar.
De imediato volta a encher-me o copo e declara com solenidade que…  «este é por conta da casa.»
Não chego a agradecer-lhe porque nesse instante aparece com estrondo, porta adentro, um velhote de barba branca, capote preto, galochas, bradando num galope de palavras atropeladas:
—Pronto! Té parece mentira! Pois querem saber? Tá confirmado!
— Tá confirmado o quê, senhor Agostinho ? – pergunta do balcão o proprietário do "Palmeira", com a "minha" garrafa ainda no ar, dirigindo ao recém-chegado um sorriso terno.
—  Vão mesmo deitar o rapaz ao rio!
— Rapaz…?
— O rapaz ali do ilicópero. O sô Alcino tem aí o tlefone, ligue prà polícia, ligue já antes que seja tarde.
Toda a clientela, divertida, desperta para a conversa. O senhor Alcino, paciente, explica de modo a fazer-se ouvir por todos:
— Fantasias. Então o senhor Agostinho não vê que tudo aquilo são fantasias?... São fantasias, eles fazem-nos acreditar que é real, mas não é...
— Ai não é? Não é? Pois não fui só eu q’ouvi. Tá’li um espanhol, parece q’é espanhol, faz parte do grupo, o gajo contou tudo o que vão fazer ao rapaz. Vão pôr-lhe correntes, correntes grossas, à volta do corpo todo, depois metem o desgraçado num caixote, depois o ilicópero lev’ó caixote prò rio, depois, tão a ouvir?, o caixote, pumba!, borda-fora prà água! O espanhol contou tudo! Inda outra coisa…
O proprietário do "Palmeira" interrompe:
— Então o senhor Agostinho acredita nos espanhóis? Deve é antes acreditar nos portugueses. — Inesperadamente chama a atenção para a minha pessoa: – Olhe, este amigo aqui é jornalista, ele vai contar-lhe como se fazem aquelas fantasias… não vai…?
Contrafeito, entro no jogo:
— Bem, se é fantasia ou não, só no final irá saber-se…
O senhor Alcino continua com a "minha" garrafa na mão, retira um copo da prateleira, enche-o e entrega-o ao velhote:
— Vá, senhor Agostinho, tome lá e acalme-se.
Ele recebe o copo, senta-se a uma das mesas, cabisbaixo.
Oiço o som cavo e possante de um motor a arrancar. Significa que o comandante Carlos Ferreira Augusto prepara a ascensão do seu Bell Jet Ranger III, um belíssimo helicóptero. Vai iniciar-se a derradeira fase do mais inominável dos planos a que assistiu até hoje a pacífica Cantareira: um prisioneiro acorrentado, encerrado num caixote, despenhar-se-á dentro de minutos nas águas do rio Douro.
Faço as minhas despedidas apressadas:
— Senhor Alcino, não me esquecerei que Carvalho de Rei é a terra que produz o melhor vinho verde de Portugal!
Antes de sair demoro-me uns segundos junto à mesa onde permanece, taciturno, o bem-aventurado velhote de barbas brancas. Digo-lhe adeus com afáveis pancadinhas nas costas. Não larga o copo do qual se desprendem e trepam pelo ar as fragrâncias de fogo que bem conheço desde ontem. Nem levanta a cabeça. Oiço-o a rumorejar:
— Que raio! Vai-s’atirar um rapaz ao rio, tod’amarrado, e ninguém faz nada!


© PEDRO FOYOS


O DIA
DE 32 HORAS

DATA: 22 DE ABRIL DE 1999
LOCAIS: LAS VEGAS / LOS ANGELES / NOVA IORQUE / LISBOA / LEIRIA / COIMBRA

EFEITO PRETENDIDO
: DILATAR UM DIA NORMAL PARA 32 HORAS.


Quatro dias antes:
Às 20 horas, a jornalista da RTP, Fátima Campos Ferreira, destaca, na abertura do Telejornal, uma notícia estranhamente incluída num lote de trágicas ocorrências (os últimos bombardeamentos da NATO sobre a Jugoslávia e mais um massacre de civis em Timor Leste): «O mágico português Luís de Matos», informa, «recebeu ontem, em Hollywood, o maior galardão mundial da magia».
O facto tem enorme repercussão mediática em Portugal. É notícia de primeira página em vários jornais e objeto de uma desenvolvida reportagem televisiva de Carlos Fino.

Quatro dias depois:
Noite chuvosa em Lisboa. O Convento do Beato acolhe cerca de quatrocentos convidados para a sessão de apresentação de um  automóvel «made in USA.»
Um espetáculo de grande qualidade dominado pela atuação de Luís de Matos. Divertidas ilusões empolgam a assistência durante uma hora.
O que o público não sabe é a aventura vertiginosa vivida por Luís para estar nesta ocasião e neste local, aparentando a frescura de quem diz, ao sair tranquilamente de casa, que... «vou ali realizar um espetáculo e já venho».
Cinco dias antes decorrera em Hollywood a cerimónia de entrega do título «Magic of the Year». Luís permanece nos EUA por mais algum tempo, a fim de cumprir um programa intenso de contactos profissionais. E o regresso a Portugal ocorre hoje, dia 22 de Abril.
Na verdade, quando Luís sobe ao palco, nesta noite, ninguém entre o público do Convento do Beato sabe, enquanto o aplaude entusiasticamente, que ele ...

... acordara, na manhã desse mesmo dia, em Las Vegas...
... tomara o avião para Portugal, fazendo escalas demoradas em Los Angeles e em Nova Iorque...
... chegado a Lisboa, se deitara, por duas horas, numa cama de hotel e fizera depois a barba...
... se deslocara ao local do espetáculo para ensaiar...
... efetuara, entretanto, o trajeto Lisboa-Leiria-Lisboa, em automóvel conduzido por ele próprio, a fim de resolver um problema técnico de última hora...
... faria ainda, uma vez terminado o espetáculo em Lisboa, o percurso de regresso a casa, em Coimbra.   Chegou, na verdade, já num novo dia: passavam 50 minutos da meia-noite…

Considerando que a viagem entre Las Vegas e Lisboa demorou, escalas incluídas, cerca de 17 horas e o espetáculo quase três, a inevitável pergunta que se coloca é a seguinte: como meter tudo quanto ficou descrito no espaço temporal de um único dia? Resposta: esticando o dia... Foi o que Luís fez. Para tanto, não recorreu a nenhuma magia particular. Tão-só beneficiou da circunstância de existir uma diferença de oito horas entre Las Vegas e Lisboa... O resto, sim, foi magia, com a ajuda de uma vitalidade assombrosa.


© PEDRO FOYOS



UMA ENTREVISTA
(QUASE) IMPOSSÍVEL

DATA: DEZEMBRO DE 1995.
LOCAIS: LISBOA (CENTRO COMERCIAL DAS AMOREIRAS) E COIMBRA
(EDIFÍCIO CHIADO).

EFEITO PRETENDIDO
: ADIVINHAR OS NÚMEROS DO TOTOLOTO COM
UMA SEMANA DE ANTECEDÊNCIA.


Fantasista impenitente, Luís de Matos quis associar o lançamento de um livro da sua autoria a algo de verdadeiramente extraordinário no domínio da arte mágica. Um assombroso projeto. Quem nunca ambicionou poder, um dia, por graça de um qualquer miraculoso desígnio, adivinhar o número da sorte grande? Ou antecipar-se no conhecimento dos resultados desportivos que permitiria, com uma singela aposta, a vitória plena no totobola? Ou saber, com a exatidão fulminante das personagens visionárias das ficções fantásticas, quais as esferas que a tômbola eletrónica do totoloto irá fazer extrair, naquela cadência deslizante de números fortunosos que, por regra, se mostram trocistas para com o nosso esforçado palpite?
Bem sabemos que este género de cenários pertence ao mundo dos sonhos, dos devaneios maravilhosos que perpassam o espírito como quimeras apetecidas. Eivadas, porém, de algum egoísmo: porque, convenha-se, sempre vamos rejeitando a eventualidade de tais milagres se confinarem a um segundo prémio da lotaria, da mesma forma que reagiríamos mal a uma proposta do tipo: "… bem, o próximo sorteio do totoloto irá dar o seguinte resultado, porém vamos lá partilhar este segredo com mais meia dúzia de parceiros…"
Que dizer, então, se alguém, num lance de presciência mágica, conhecedor dos números que apenas serão determinados num futuro sorteio, renunciar à participação no concurso por considerar que estaria por essa forma pérfida não só a perturbar caoticamente o sistema mas também a lesar os restantes intervenientes "normais" (entenda-se: desprovidos em tão elevado grau de faculdades mágicas e premonitórias).

CHAVE DA FORTUNA ENCERRADA NUM COFRE INVIOLÁVEL

A utopia, contudo, converteu-se numa realidade difícil de acreditar, mas visível aos olhos de Portugal inteiro. Luís de Matos aceitou, de facto, uma das mais desafiantes provas da sua carreira ao propor-se adivinhar o conjunto de sete algarismos premiados, entre as costumadas esferas, num concurso do totoloto, cujo sorteio oficial se efetuou em transmissão direta pela RTP1. A aventura atingiu o seu zénite de deslumbramento no primeiro sábado de dezembro de 1995. Dias antes, numa segunda-feira, assistiu-se em Lisboa a um episódio singularíssimo. O mágico, na presença dos órgãos da comunicação social, entregou um cofre de vidro ao presidente da Câmara Municipal de Coimbra (à época, Manuel Machado). Dentro do cofre o referido livro. Dentro do livro, a inscrição dos números que, seis dias depois, o público conheceria por meio da transmissão televisiva do sorteio.
O cofre, inviolável e robusto apesar de construído em vidro, apenas poderia ser aberto mediante a libertação de duas linguetas fechadas a cadeado. A chave de um dos cadeados ficou em poder de Luís de Matos; a segunda foi confiada ao autarca de Coimbra. Significava isto que a abertura só seria exequível, a partir desse momento, com a presença de ambos. Os jornalistas e o público certificaram a inviolabilidade da urna, de facto à prova de bala.
Iniciou-se então um período expectante de "contagem decrescente". O cofre permaneceu à vista de toda a gente, protegido por um dispositivo de segurança: tornava-se imperioso acautelar um ato de ansiedade incontida que impelisse alguém ao estilhaçamento da caixa e sequente acesso aos números da fortuna.

GRANDE APARATO NA VIAGEM DE LISBOA A COIMBRA

Chegado sábado, esse dia marcou o clímax da espantosa experiência. Ao princípio da tarde, numa operação sempre presenciada pelos jornalistas, o cofre foi retirado do Centro das Amoreiras e introduzido num furgão blindado de transporte de valores, encetando uma viagem até Coimbra, cidade onde reside Luís de Matos. Acompanhava o furgão blindado um autocarro de turismo no qual seguiram os representantes da informação. O mágico fazia-se transportar isoladamente numa limusina que abria o séquito. Não faltou sequer um helicóptero com uma equipa de filmagem da RTP.
Em Coimbra, cofre e comitiva rumaram ao emblemático Edifício Chiado, na Rua Ferreira Borges. O ambiente era festivo, de convívio. O cofre permaneceu visível em local central do primeiro piso do Edifício Chiado.
Aproximava-se a hora crucial em que a RTP daria início à ansiada transmissão em direto da sessão do sorteio. No local, vários televisores permitiam acompanhar o ato.
Fez-se um grande silêncio no momento da emissão do indicativo musical do sorteio. Começou o carrossel das esferas rodopiantes. Depois foram saindo, atordoadas, compondo aquele colar colorido de números e esperanças. A última esfera, dita suplementar, desavinda, tomou um sentido contrário. Revelados os números, na totalidade, é chegado o momento de abrir o cofre com as duas chaves discrepantes. O convidado de honra extrai o livro, abre-o e… acontece magicamente o impossível: os números premiados correspondem em rigor aos que se encontram manuscritos numa página do álbum. Como prova da sua renúncia à possibilidade de ter ganho uma fortuna no caso de participação efetiva no concurso, Luís de Matos tira do bolso o boletim que preencheu com o palpite certeiro, todavia não entregue porque, como foi dito… isso representaria uma prevalência repreensível sobre os restantes concorrentes, desconhecedores do modus faciendi dos grandes sortilégios.

Dias antes deste acontecimento memorável fiz a Luís de Matos a mais impertinente e singular entrevista da minha carreira.


A ENTREVISTA (OU: UM JOGO DO GATO E DO RATO)

— O vocábulo "adivinhação", reportado ao que vai passar-se na próxima semana, deve ser escrito com aspas ou sem aspas?
— Visualmente, creio que a palavra ficará mais bonita sem aspas.
— O que se pretende saber é: assume essa adivinhação como um ato de magia ou prefere que as pessoas a encarem em termos de efetiva premonição?
— Talvez uma premonição ilusionística. Ou uma ilusão premonitória... De qualquer dos modos, devo sublinhar que procuro, em todas as minhas intervenções, criar ilusões...
— Acredita em bruxas?
— Não, decididamente. É conhecida, porém, aquela frase aforística: mas que as há, há...
— Se calhar, é o caso...
— Se calhar, é...
— Isto parece um jogo do gato e do rato...
— É o meu jogo favorito. A "escapalogia" é uma das mais fascinantes modalidades da arte mágica. Mas… quem é o gato e quem é o rato?
— Tento ser eu o gato… mas…
— Isso não lhe fica bem.
— Pois não. Ossos do ofício…
— Ossos têm que ver mais com os cães…
— Pois.
— Mais alguma pergunta?
— Mal começámos! Tenho mil e uma perguntas!
— Vai ter de reduzir um bocadinho…
— Muita gente perguntar-se-á porque não adivinha o número da sorte grande. O conceito recorrente de faculdades premonitórias está associado à lotaria. Costuma dizer-se: «Só me falta adivinhar o número da sorte grande...»
— Na realidade, a minha opção pelo totoloto prende-se tão-só com o facto de o respetivo sorteio ser transmitido por televisão e em direto para todo o País. O público poderá constatar, instantaneamente, se o meu palpite estará ou não certo.
— Há possibilidade de não acertar?
— Remotíssima.
— Numa escala de zero a cem, qual é a hipótese de um desaire?
— Zero vírgula doze por cento.
— Que preciosismo matemático!
— Prezo os cálculos rigorosos. São fundamentais em magia
— Se acontecer a hipótese «zero vírgula doze por cento», o que dirá ao público?
— Que acabaram de ter o privilégio de assistir a uma hipótese remotíssima.
— O País está suspenso, de olhos em si. Não teme o risco?
— É evidente que sim. Conheço o efeito angustioso de pressentir a pouca distância a lâmina da guilhotina...
— Apesar disso...
— Todas as aventuras envolvem riscos e é o gosto desses riscos que torna as aventuras irresistíveis e lhe dão sentido.
— Não receia que o cofre seja assaltado e alguém possa ter acesso ao vaticínio?
— Confio em pleno no forte dispositivo de segurança que vai montar-se no Centro das Amoreiras, sob a responsabilidade de pessoas competentíssimas e com larga experiência, como é o caso dos senhores coronel António Almeida Coimbra e engenheiro José Carlos Rosa.
— Vai intervir nesse plano de segurança?
— Tenho participado em reuniões com a presença, também, do administrador dr. Vítor Ruivo. Está organizada uma segurança absoluta, sem que tal dispositivo possa de alguma forma intimidar o público. Aliás, o sistema assenta, no fundamental, em procedimentos eletrónicos de que o público quase não se apercebe.
— A partir deste momento, a pergunta que mil vezes lhe vão fazer, será: «Onde está o truque?» Tem alguma resposta preparada?
— O truque não é importante.
— Reconheço o argumento: o caso das marionetas…
— Exato. Num espetáculo de marionetas, o que poderá fascinar são as próprias marionetas e não os fios que as animam.
— Admitir a existência dos "fios" já confortará muita gente...
— A verdade é que nunca os neguei. Não seria honesto.
— A sua "equipa mágica" participa nesta "operação"?
— Inevitavelmente. E em número ampliado.
— Quantas pessoas?
— Muitas, muitas. Devo a todos esses colaboradores uma palavra de imensa gratidão. É uma gente formidável.
— No dia 2 de Dezembro, o cofre viajará até Coimbra. A "operação" não poderia decorrer, do princípio ao fim, em Lisboa, no Centro das Amoreiras?
— Coimbra aparece, neste acontecimento, por razões, digamos, sentimentais. É a minha cidade. Tudo quanto de mais importante tem ocorrido na minha vida está de alguma forma associado a Coimbra. O que vai passar-se constitui, sem dúvida, algo de extraordinário na minha carreira.
— Qual será o intervalo de tempo entre o final da emissão do sorteio e a abertura do cofre?
— Não haverá, praticamente, intervalo. O cofre será aberto pelo convidado de honra logo após o anúncio do último número.
— Um minuto?
— Nem pensar! Muito, muito menos.
— Meio minuto?
— Repito: logo após o anúncio do último número. A sequência estará a ser transmitida pela televisão, não podem haver tempos mortos.
— Especula-se que, além dos números prognosticados que estão no cofre, o Luís terá consigo o boletim com a chave exata e cuja validação num posto de receção não chegou a fazer…
— Não é especulação. Por sinal tenho neste momento esse boletim na minha carteira. Não espera que lho mostre, pois não?
— Se não desse muita maçada…
— Volto a dizer: não lhe fica bem esse género de conduta. Mais alguma pergunta?
— Sim: o exemplar do livro que vai estar em foco distingue-se por alguma particularidade?
— É um exemplar normalíssimo, retirado de entre os milhares da edição. Mas há de facto uma pequena diferença…
— Ah!...
— É o único que possui na ante página de rosto os números que serão sorteados no próximo concurso do totoloto.
— Poderá ser examinado?
— Com certeza. Não esquecerei de lho apresentar se se proporcionar o nosso encontro no local.
— De que depende, sobretudo, uma realização desta natureza: dos meios financeiros, dos meios tecnológicos...?
— A componente mais importante é ter alguma coragem.
— Centenas de pessoas assistiram no Centro das Amoreiras ao momento em que o Luís, de forma oculta, escreveu no livro o seu palpite, ou seja, os números hipoteticamente certeiros. São esses mesmos algarismos que aparecerão manuscritos no sábado?
— Que pergunta estranha! Que outros poderiam ser?
— Permanecem escritos pelo seu próprio punho?
— Permanecem, claro. Não os vejo a fugirem do cofre… Continuo a não entender o sentido da pergunta.
— Poderá apontar-se algum tipo de ilicitude em relação ao facto de se propor adivinhar os números do totoloto?
— De maneira nenhuma. À semelhança do procedimento semanal de muitos milhares de cidadãos, farei apenas um palpite. A diferença é que, no final, verificar-se-á, bem o creio, que o meu palpite estava certo.
— A provedora da Misericórdia de Lisboa [instituição que tutela o totoloto] revelou-me esta manhã que se deslocará a Coimbra expressamente para assistir ao final da "operação"...
— Como, por acaso, estou lá nessa ocasião, terei a grata oportunidade de saudar a atitude desassombrada e o espírito aberto da dr.ª Fernanda Mota Pinto.
— Joga regularmente no totoloto?
— Apenas em situações de emergência extrema.


© PEDRO FOYOS


O PACTO
DE PARAMOS

DATA: 12 DE DEZEMBRO DE 1996.
LOCAL: AERÓDROMO DE ESPINHO / PRAIA DE PARAMOS.
EQUIPAMENTO:
1. CAMIÃO TIR DE 16 METROS E 16 TONELADAS VAZIO,  PROPRIEDADE DE SEGUNDO RUBIO, 53 ANOS, DE BURGOS.
2. AVIÃO MONOMOTOR CESSNA 172, DE 4 LUGARES (MATRÍCULA CS-AUD).
SITUAÇÃO ATMOSFÉRICA: VENTO DE 30 NÓS.

EFEITO PRETENDIDO
: FAZER DESAPARECER O REFERIDO AVIÃO ESTACIONADO NO MEIO DA PISTA DO AERÓDROMO.


Este dia ficará para a história de Paramos. As residências dos habitantes da pequena povoação, na orla da praia, distam uma escassa centena de metros da pista do aeródromo de Espinho, habitualmente deserta. Os forasteiros são hoje em número de algumas dezenas. A notícia põe em alvoroço, em primeiro lugar, a população jovem do lugar:
— O mágico da televisão está cá! Anda ali pela pista, com uma data de gente à volta, muitos carros, muitas máquinas, diz-se que vai fazer desaparecer um avião!
Dá nas vistas em especial um camião TIR do qual saem objetos estranhíssimos, alguns de grande dimensão. Capto a perplexidade do proprietário do descomunal veículo, o señor Segundo Rubio, de Burgos. Anda há muitos anos a transportar os mais diversos géneros de carga, mas a de hoje é deveras inusitada. Vejo-o tão pensativo que lhe pergunto:
— Señor Rubio, decerto não esperava que fazer desaparecer um avião fosse assim uma coisa tão complicada…
— Complicada, é verdade. Muito complicada. Bem, temos de reconhecer que isto não é propriamente fazer desaparecer um coelho ou uma pomba. Trata-se de um avião!
— Mas um avião pequeno, já viu?... um monomotor…
— Que seria então se fosse um dos grandes! Teria de vir uma frota de camiões!
Dá-me para a reinação, afivelo uma fisionomia grave:
— Um elemento da equipa mágica disse-me há pouco que depois de se fazer desaparecer o avião há o plano de também fazer desaparecer o seu camião. Possivelmente já sabe…
Por um instante passa pelos olhos do señor Rubio o indício de um desassossego. Por um instante, apenas. Logo reage com bom humor:
— Ah, não, o camião não. É o meu ganha-pão, meu e do meu filho (aponta para um jovem que participa na operação de descarga). Isso não está no contrato. O contrato é carregar, transportar, descarregar. Para desaparecer seria outro contrato, e muito caro, muito caro. Sabe quanto pesa este camião, vazio? Dezasseis toneladas!
Enquanto isto, um cacho compacto de miudagem envolve o mágico, fazendo perguntas, pedindo autógrafos. Passa-se à celebração de um pacto singelo: as dezenas de jovens ali concentrados manter-se-ão à distância, por mais duas ou três horas, assumindo o visitante o compromisso solene de, num intervalo dos ensaios, dedicar-lhes uns minutos de confraternização. Aceitam. O Daniel, contudo, mais afoito, lavra uma condição:
— Mas ficamos a saber já como é que o avião vai desaparecer!
Cabe ao jornalista a missão espinhosa de prosseguir as negociações. Pergunto, então, à irrequieta assembleia:
— Vocês sabem o que é uma ilusão de ótica?
Ninguém diz que não, mas também ninguém diz que sim. Passo ao relato técnico:
— Uma ilusão de ótica é um fenómeno engraçado que acontece às vezes connosco ao julgarmos vermos uma determinada coisa, quando, na realidade, é outra. Como se fosse um jogo. Olhamos para uma imagem, parece-nos que uma situação é real, e afinal não é, ou é diferente daquilo que estamos a ver.
O auditório, a avaliar pelo silêncio, está interessado no tema. Animado, prossigo:
— Ora, o avião que vai desaparecer, de facto não desaparece. Ou melhor: ele desaparece, mas só em resultado de um truque de visão. Se estivermos situados num ponto muito exato, olhando para o avião, vemo-lo desaparecer. Uma pessoa que esteja mesmo ao lado, a um metro, já poderá não captar essa ilusão. O segredo está aí. É preciso, para a ilusão ter efeito, estarmos muito quietinhos, posicionados num ponto muito preciso... E como isto é para ser transmitido na televisão, aquela câmara ali montada representa, por assim dizer, os olhos dos milhões de pessoas que estarão depois a ver o programa. É como se toda essa gente estivesse concentrada naquele ponto a assistir à ilusão...
Daniel, decididamente o líder, contrapõe:
— Nós podemos ir para esse sítio, para ver...
Agita-se entusiasmada a miudagem, visivelmente agradada com a proposta. Urge mudar com toda a rapidez o rumo da conversação. A última coisa que a equipa técnica desejaria era ver-se submergir numa onda de cinquenta petizes travessos. Procuro contornar o escolho com a suavidade manhosa de um diplomata de carreira:
— Isso seria não só complicado como muito-muito desvantajoso para vocês. Como disse, só uma pessoa de cada vez conseguirá captar a ilusão. E vocês são tantos que estaríamos aqui até ao fim do dia para todos poderem ver... Então não será muito melhor e mais cómodo verem tudo na televisão, o programa já montado...
A estas palavras reage o povo com a frieza de quem comprou bilhete para o circo e recebe a informação, em cima da hora, de que o espetáculo foi cancelado. A fila da frente agrupa-se melhor em redor do líder, como se quisesse dizer-lhe: ataca! não te abandonaremos! Uma situação de bloqueio (é dos manuais) antecede amiúde as ruturas e as desgraças irremíveis. Este é o momento de contemporizar os ânimos e sacrificar, taticamente, um peão:
— ... A não ser, enfim, que seja apenas um de vocês a testemunhar e a relatar aos restantes o que observar... Elegeriam, entre todos, um –  mas apenas um! –  que iria espreitar... e então...
Vislumbro a urgência de uma estratégia para romper caminho no dédalo de cem olhos desconfiados: satisfazer o líder. Por isso faço o  discurso enfrentando fixamente, isoladamente, o Daniel. Ele sabe – ah, não sabe ele outra coisa! –  quem é o eleito e não demora a selar o acordo com um resoluto ’tá bem, seguido de uma interrogação esclarecedora:
—O senhor depois chama-me, quando chegar a altura?...

Os futuros historiadores dos saltos e sobressaltos do mundo escreverão que às 10h20 do dia 12 de Dezembro de 1996 este planeta, subitamente, pelo espaço de um fim de manhã, voltou à normalidade.


© PEDRO FOYOS


CONVERSA À VOLTA
DE UMA BOLA DE SABÃO

DATA: NOVEMBRO DE 1995.
LOCAL: PARIS, PLACE DU TROCADÉRO.

EFEITO PRETENDIDO: RECOLHA DE DEPOIMENTOS SOBRE AS MAGIAS IMPOSSÍVEIS QUE UM DIA SERÃO REALIZADAS.


Mágicos profissionais do mundo inteiro conquistaram os bares e restaurantes da Place du Trocadéro, a poucos passos do local onde Copperfield voa (sem aspas) por estas noites, em espetáculo ao vivo. São em número inquantificável, talvez duas centenas. Só de Portugal estarão presentes cerca de trinta. Já ninguém ignora, no plano essencial da execução, a obra-prima tecnológica que possibilita o inacreditável Flying – Live the Dream. Todavia, há divergências de pormenor que animam conversas sem fim. Acabo de assistir a uma discussão de meia hora sobre se um determinado "artifício" terá a espessura de um ou de dois milímetros. Surpreendo-me ao saber que alguns destes artistas têm lugares reservados para a totalidade das noites, não obstante o espetáculo ser sempre o mesmo. O alvoroço que esta grande ilusão produziu entre os profissionais da arte está bem expresso pelo historiador e mágico veterano José Dias Vilhena:
— Eram seis horas da manhã quando o som do telefone me acordou para me contarem o efeito a que tinham acabado de assistir. Em Los Ângeles eram onze horas da noite, mas o meu interlocutor estava de tal modo emocionado que não era capaz de dormir sem trocar impressões comigo sobre o que acabava de assistir. Foi uma conversa de 45 minutos, custou uma quantia imensa de conta de telefone!

Por razões circunstanciais de agenda disponho apenas de uma tarde – a de hoje – para concretizar um projeto jornalístico a que me instigo furtivamente desde que cheguei a Paris. Desejaria interpelar estes profissionais que passam uma boa parte do dia na Place du Trocadéro sobre uma questão em tudo relacionada com a sua presença nesta cidade para assistirem ao Flying de Copperfield. Eis: será que também eles já idealizaram ou continuam a perseguir uma determinada "situação impossível", contudo esperançados em poder um dia realizá-la, magicamente? Que grande e sensacional ilusão seria essa?
Cedo me dou conta de que o cometimento não é de fácil execução. Os mágicos que abordo declinam respostas evasivas, um ou outro confirma possuir um certo plano ambicioso mas resguarda-se na necessidade de manter o mesmo no cofre dos infranqueáveis segredos do ofício.
Prestes a desistir, acorre em meu auxílio São João Bosco (padroeiro dos mágicos), convertendo a derradeira tentativa num afortunado encontro com um profissional argentino a trabalhar em Londres. Anda há quinze anos nas lides ilusionísticas, pede-me para não mencionar o seu nome e vai confidenciando que sim, sim senhor, trabalha desde o primeiro dia em algo de bombástico. Este é primeiro dos muitos espantos que me sacudirão na próxima meia hora:
— Desde o primeiro dia? Há quinze anos?
— É verdade. E sei que tão cedo não alcançarei a concretização.
Avio uma prece breve a São João Bosco enquanto sugiro ao meu interlocutor que nos sentemos numa das aprazíveis esplanadas do Trocadéro.
— Quinze anos, hein!
— É verdade.
Pedimos bebidas, peço-lhe autorização para ligar o gravador. Aquiesce após fugaz hesitação, no entanto logo me adverte que não irá fazer a revelação integral da grande magia em projeto. Respondo ser perfeitamente compreensível essa reserva (no estado de frustração em que me encontro estou disposto a lançar um foguete por cada palavra interessante que pingue para o gravador). Transcrevo o diálogo, originalmente em castelhano, a partir desse primeiro pingo:
— Contará apenas o que julgar que pode contar.
— Vai achar extravagante o que lhe vou dizer.
— Estou preparado.
— Antes disso, para compreender melhor, é importante que conheça a minha sedução por um jogo fantasioso que também muito surpreende o público. Consiste em interligar na mesma cena duas matérias imensamente diferenciadas. Por exemplo, o imensamente pequeno e o imensamente grande. Este modelo já vem dos espetáculos de circo no século XIX. Um momento sempre hilariante era a entrada de um descomunal gigante ao lado de um minúsculo anão.
— Sim, ficou célebre um desses circos, o Barnum, com exibições de fenómenos anómalos e sempre grotescos. Felizmente que tais práticas acabaram, não acha?
— Claro. Estou apenas a exemplificar. Quando ponho em paralelo o muito grande e o muito pequeno, posso estender o mesmo conceito a outras matérias, como o muito fino e o muito grosso, bem ilustrado na ficção com personagens do género do Laurel & Hardy (Bucha e Estica), do Dom Quixote e Sancho Pança e outras. Igual contraste obtém-se com o muito pesado e o muito leve. O meu projeto de grande ilusão radica precisamente nesse conceito: o imensamente pesado e o imensamente leve.
— Ah, entramos agora na magia!
— Não, a magia só acontece quando conseguimos produzir uma incongruência. Até aqui temos falado tão-só de curiosidades, caricaturas. Para haver magia temos de pôr as matérias em conflito: por exemplo, o muito grande por cima do muito pequeno, ou o muito pesado por cima do muito leve. Ficaremos confusos se verificarmos que é uma matéria muito leve que serve de suporte a outra muito pesada.
— Creio que entendo. Mas seria possível adiantar como transfere esse "conflito" para uma ilusão de grande escala?
— Teremos de começar por extremar as matérias. O muito pesado terá de ser mesmo muito pesado…
— … e o muito leve mesmo muito leve. Um jogo de contrastes. Interessante.
— Então continuemos o jogo. Em relação ao muito pesado, sei desde a primeira hora que, por motivo da natureza do espetáculo, a minha opção terá de dirigir-se para a área zoológica. Um animal. Muito, muito pesado. Dos mais pesados que existirem no mundo. Vivo, evidentemente. Quer sugerir um?
— Não sei… talvez um elefante… uma baleia…?
— Baleia não pode ser. Onde vou encontrar uma baleia em Londres?
— A arte mágica não conhece o impossível…
— Mas conhece dificuldades intransponíveis. Referiu o elefante, que é de facto a minha escolha. Ficou surpreendido há bocado quando disse que trabalho nesta realização há quinze anos. Tal acontece porque a todo o momento surgem detalhes que requerem um intensivo estudo, abundante informação. Tenho reunido quilos de informação sobre elefantes, dificilmente haverá quem perceba mais de elefantes do que eu.
— E há elefantes em Londres?
— Há. Mas a minha preferência vai para um que está no Zoo de Chester, a três horas de viagem. É um elefante asiático, ainda jovem, muito querido. Chama-se Kalf. Como sei que a construção do meu espetáculo vai demorar ainda dez anos, ou mais, o Kalf crescerá entretanto. Tenho relações de amizade com as pessoas de topo nesse Zoo, já atuei em Chester e fiz amigos, alguns ficaram contagiados e vão de propósito a Londres assistir às minhas novas sessões. No Zoo há uma anuência tácita de me dispensarem o Kalf para o meu futuro espetáculo. Sei que terei de vencer uma série de exigências ministeriais, fianças e outros atos burocráticos, mas a palavra mais determinante é a do próprio Zoo e essa já me foi dada.
— Não lhe perdoava agora que não revelasse qual é a matéria muito leve que suportará o Kalf.
— Sim, não tenho problema em dizer-lhe. Nesse grupo cataloguei ao princípio plumas, borboletas, pacotes de algodão, bolas de sabão… A oferta, nesta área, é extremamente diversificada. Quer arriscar qual selecionei?
— Prefiro não o fazer… Está no grupo que descreveu?
— Está. Eu ajudo: é algo de muito etéreo, puro, delicado, poético, inspira uma ideia de mundo infantil…
— … Uma bola de sabão?
— Bravo! Vejo que tem enorme sensibilidade, diria… mágica!
— Ai! Vai pôr o elefante sobre uma bola de sabão?!
— Uma bola de sabão muito especial. Terá três metros de diâmetro.
— Como é possível fazer uma bola de sabão tão grande?
— É o mais fácil. Nada de inédito. Já tem sido feito. Até com uma pessoa lá dentro. É o que também irei fazer, com uma bailarina.
— Vamos ver se estou a compreender: vai pôr um elefante sobre uma bola de sabão gigante e dentro dessa bola estará uma bailarina…?
— Dito dessa maneira… é um bocado descolorido e frio. Tudo isso está integrado num grande espetáculo no qual são predominantes técnicas e artes teatrais: a cenografia, a luminotécnica (que é sempre da minha responsabilidade), mesmo a arte balética, com um trecho da Coppelia
— Porquê da Coppelia?
— Tem muito que ver com magia. Eu próprio faço de Doutor Coppelius, o bruxo. Haverá quatro bailarinas, uma das quais permanece no interior da bola de sabão. As restantes três bailam sob uma chuva de milhões de pequenas bolas de sabão produzidas por máquinas de sopro. Está a ver?
— Estou a tentar.
— O público assistirá durante mais ou menos quinze minutos a sucessivas ilusões, em especial transformações (as vestes das bailarinas vão mudando de cor, do branco a cores fortes) e só depois entra em cena o meu querido Kalf.
— Como vai pôr o elefante sobre a bola de sabão?
— Toda essa sequência terei de a manter secreta. Note que poderia descrevê-la, pois está registada, mas será melhor não arriscar.
— Não sabia que era possível registar truques mágicos.
— Perfeitamente. É uma invenção tecnológica que me ocupou anos. Encontra-se descrita em texto e esquemas gráficos que se estendem por 48 páginas. Tenho vaidade nessa obra, considero-a insuperável. O registo tem uma abrangência mundial.
— Significa que mais nenhum mágico no mundo poderá empoleirar um elefante numa bola de sabão?
— Nem elefante nem qualquer género de carga, animal ou não-animal, no caso de exceder os cem quilos e de a respetiva ativação se verificar no âmbito de um espetáculo.
— Claro que o Kalf tem mais de cem quilos…
— Cem quilos é normalmente o peso de um elefante recém-nascido. O Kalf pesa agora mais de mil. Ocorrendo o meu espetáculo num prazo de dez anos o Kalf terá então cerca de dois mil quilos.
— Entretanto, vai envelhecendo…
— A duração de vida de um elefante é idêntica à dos seres humanos, pouco menos. O meu querido Kalf tem décadas de vida à sua frente. Também eu espero ter…
— Parece-me muito confiante de que nenhum seu colega irá antecipar-se à realização deste grande projeto mágico. Imagine que algum deles consegue inventar um equipamento tecnológico não abrangido pelo seu registo. Não admite tal eventualidade?
— Admito. Por isso estou a dar-lhe esta entrevista.
— Não entendo…
— Tenho interesse na difusão do projeto entre a comunidade mágica internacional. Os meus colegas ingleses e sul-americanos são já, na generalidade, conhecedores (do projeto, não da técnica inerente). Aqui em França começa agora a ter algum eco. E todos vão sabendo que a minha realização está blindada contra veleidades de imitação. Quem porventura acalentasse tal intento teria de percorrer, pelo menos em parte, o longo caminho que já fiz.
— Caminho que, pelos vistos, continua longe do fim.
— Considero que mais de metade estará cumprido. O desejo da perfeição devora-me e é devorador de tempo. No ponto em que me encontro, tudo seria fácil se substituísse o elefante verdadeiro por um outro, robótico, spielberguiano. Ou se em vez da bola de sabão trabalhasse com uma bola de granito. Nesta situação, embora ninguém pudesse duvidar de tratar-se de um elefante real, ele ficaria com os pés estáticos sobre o granito. Nenhuma pedra compacta, com uma espessura de três metros, cede ao peso de dois mil quilos. Mas sob os pés do elefante não estará uma pedra. Ele poisa, por assim dizer, numa bola de sabão. Ora é importante que o público capte a essência etérea de uma bola de sabão. Em condições não-ilusionísticas a bola de sabão desfazer-se-ia num ápice, o que seria pouco mágico. No entanto, em benefício da verosimilhança, as áreas correspondentes às patas do elefante terão de ceder um pouco, tal como sucederá se nos pusermos de pé em cima de um colchão insuflável.
— O que está a dizer… Deixe-me recuar um pouco: disse que o Kalf pesará dois mil quilos quando ingressar na vida artística…
— Mais ou menos.
— E que sob ele, dentro da bola de sabão, estará uma bailarina…
— Sim, condicionada nesse lapso de tempo a uma discreta gestualidade balética para impedir a dispersão visual dos espetadores. Eles deverão concentrar-se unicamente na empolgante chegada do Kalf à bola de sabão.
— Bem, talvez seja uma atitude alarmista da minha parte, mas o Kalf não correrá o risco de dar um trambolhão de três metros de altura, ao mesmo tempo que a bailarina será acometida por uma dor de cabeça do tamanho de um elefante?
— Disse-lhe que conviria não revelar o modo como o elefante poisa na bola de sabão. É um momento absolutamente extraordinário do espetáculo. Se há pouco lhe tivesse feito essa revelação, de certeza que não faria agora essa profecia trágica.
— Pois. Como não revelou…
— Poderei fazê-lo se me asseverar que respeitará escrupulosamente uma revelação off the record…
— Sou jornalista há mais de trinta anos, já fiz centos de entrevistas, até hoje nenhum entrevistado se queixou de eu transgredir as normas deontológicas. Garanto-lhe que detesto conhecer os truques mágicos. Mas estarei disposto a abrir uma exceção. Sabendo que a bailarina e o elefante não correm qualquer risco, essa circunstância terá de certeza uma influência benéfica na qualidade e extensão do meu trabalho jornalístico.
— Importa-se de desligar o gravador?
— Como…?
— Pode desligar o gravador?
— Ah, com certeza. Já está.

Citação de memória:
— Não leva a mal que eu me certifique de que está desligado?
— De modo algum. Aqui tem.
Off! Dá-me a sua palavra?
— Que me caia um elefante na cabeça se…
— Mais uma bebida?
— Pode ser.
— Então vou contar-lhe.



© PEDRO FOYOS