peter

    CRÓNICAS DE PEDRO FOYOS

    (pisando descontinuamente o risco)


     DIÁRIO

  filete

"O diário é um dia que não tem fim"     

Marcello Duarte Mathias     

  filete

Breviário
de um nascimento



Cheio de urgência, um anjo desceu e soprou-me a primeira frase do novo livro.

(Desdita minha, a de insistir-insistir em fazer parte desse bando de amotinados que por amor ou desamor ou presunção decapita árvores para delas inventar livros, milhões de livros reinventados em milhões de folhas que no conjunto não inventam uma folha de árvore — a sublime invenção para sorver a luz do sol).

Sumiu o anjo, não deixou rasto, silvo, apenas uma frase.
Sorvia-a com a sede de uma árvore sedenta de sol.
Permiti-me tão-só, naquele barro ainda fresco, substituir uma palavra. A que lá estava era celestial em excesso, não faltaria quem desconfiasse da proveniência.
Depois li e reli. Em voz alta, da segunda vez. Considerei a frase perfeita, insuperável. Até o computador aplaudiu. O resto, agora, é comigo.

© PEDRO FOYOS






O holocausto incógnito
de que fala Coetzee

edgar morin


«Regresso uma última vez aos locais de morte existentes à nossa
volta, os locais de carnificina aos quais, num esforço conjunto,
fechamos os nossos corações. Em cada dia há um novo holocausto e,
no entanto, tanto quanto me consigo aperceber, a nossa essência
moral permanece intocada. Não nos sentimos maculados. Parece que
é possível fazer tudo e ficar com a consciência limpa».


J. M. COETZEE / PRÉMIO NOBEL DE LITERATURA 2003
(in As Vidas dos Animais, ed. Temas e Debates)





Arrepiante… dilacerante…? Ou chocante?...
Jamais será inventado o adjetivo que exprima na mais vulcânica magnitude a lava expelida pelo documentário fílmico de seis minutos cujo link destaco adiante.
A lava começa por nos cremar os olhos, depois a consciência.
São apenas seis minutos e demoram a eternidade de um látego matraqueado sobre o nosso olhar incrédulo mas impiedosamente persuadido a ser crédulo.
Será possível, perante este filme, que um ser humano dotado de um mínimo de racionalidade permaneça insensível?
Sim, é possível. Basta que esse ser — nascido e criado humano — seja subjugado ao grau raso de uma condição robótica. A barbaridade, tornando-se uma rotina quotidiana, anestésica, transfigura-se numa normalidade laboral fundada num automatismo biológico. Irracional. Interminável. O processo é auto-regenerador: a vida é procriada com o único fim de prematuramente ser morta. Necessitamos de muita coragem para ver estas imagens.
Necessitamos de muita coragem para não ignorar.
Não podemos ignorar.
Não ignorar, já é importante.

A quem interesse este tema recomendo, além do livro de J. M. Coetzee citado na epígrafe, um outro do mesmo autor (Prémio Nobel de Literatura 2003), com tradução portuguesa: Elizabeth Costello (ed. Dom Quixote).

 © PEDRO FOYOS


FILME "LA SURCONSOMMATION"
(Duração: 06:02)








Olha, Gustavo, o velho capitão desta equipa
vence sempre por dez a zero...

HOMENAGEM A MANUEL ABECASSIS             
EM MAIO DE 2012              


Nos últimos tempos, Gustavo, muito se tem falado de ti, não só pela demora desesperante de oito meses para encontrar um dador de medula mas também e sobretudo pela notoriedade futebolística do teu pai, propiciadora de uma impressionante onda de solidariedade.
Finalmente, Gustavo, vai ser possível realizar o transplante alogénico que debelará a tua aplasia medular. Desculpa empregar estas palavras complicadas, mas as doenças terríveis escondem-se sempre nestes emaranhados para aliviarem o peso da realidade. De momento, Gustavo, agora que tudo foi feito no sentido de o teu organismo não vir a rejeitar as novas células que vai receber, é importantíssimo que saibas o seguinte: estará sempre-sempre a acompanhar-te uma equipa fabulosa, tanto que, se fosse possível transpô-la para o campo futebolístico, nem o teu pai conseguiria evitar uma derrota por dez a zero! O velho capitão dessa equipa invencível chama-se Manuel Abecassis. Já o deves ter visto aí no Instituto Português de Oncologia. É aquele senhor de cabelo branco com laivos de prata e olhos doces que de vez em quando te espreita e te sorri enquanto vai conversando rodeado dos restantes jogadores: conversas sobre táticas de ataque, fintas, coisas assim, bem conheces a toada. Sabes que ele foi o pioneiro em Portugal neste género de desafios? Pioneiro quer dizer: foi o primeiro a driblar em toda a linha um adversário de respeito no campo em que tu estás agora, precisamente aí. Esse adversário, com o feiíssimo nome de Leucemia, levou cá uma cabazada! O costume, dez a zero, toma lá e vai decorar. Porém, a grande vencedora, quem levou a Taça da Vida, maior do que ela própria, foi uma menina da tua idade, chamada Inês. Ela estava muito doente, a vida por um fio. A estratégia de então foi engraçada. Havia hipóteses de ser salva se tivesse um irmão ou uma irmã. Mas a Inês não tinha irmão nem irmã. Então os pais, com muito amor, resolveram fazer um bebé, ao qual seria dado o nome de João Miguel. E o João não esteve com meias medidas. Logo-logo que nasceu, a primeira coisa que fez foi salvar a Inês. Um dia terás interesse em conhecer a Inês, hoje uma senhorinha linda. E o João Miguel com dezoito anos. A qualquer momento o capitão Manuel Abecassis sabe a idade exata do João Miguel porque nenhum jogador esquece as datas gloriosas da sua carreira.

Gustavo: um dia conhecerás estas e muitas outras histórias. Ficarás espantado com as coisas extraordinárias que acontecem neste mundo. A começar por ti.

Gustavo: vemo-nos no final do dérbi, na festa da vitória.

© PEDRO FOYOS


TAMBÉM NESTE SÍTIO

"A HISTÓRIA DE INÊS"
Reportagem de Maria Augusta Silva









Uma lágrima romântica
pela morte da Kodak

(nos 80 anos de uma outra morte, a de George Eastman)

                                                DEDICADO A QUEM CONSIGA ENTENDER
                      QUANTO UMA MARCA COMERCIAL PODE REPRESENTAR OBJETO DE PAIXÃO


edgar morin



A 14 de março de 1932 (completam-se hoje 80 anos), um ancião bondoso, reconhecido no mundo inteiro, senhor de uma fortuna incomensurável, cansado, cansado de todos os dias continuarem a chegar-lhe às mãos rios de dinheiro, encostou uma arma de fogo ao coração e premiu o gatilho. No dia seguinte, as manchetes anunciavam: Morreu George Eastman, fundador da Kodak. Nenhuma publicação ou rádio mencionava a causa da morte. A maioria das biografias omite o epílogo trágico deste homem extraordinário, talvez porque um suicídio enodoaria a montra lustrosa dos símbolos, que se querem perenemente vivos, do capitalismo norte-americano.     
Eastman tinha 77 anos, saudáveis quanto se sabe, e também o bom hábito da franqueza cordial, por isso deixou um bilhetinho aos amigos: «A minha obra está completa.» Na realidade, a obra foi imorredoura, ou quase. Sobreviveu oitenta anos ao empresário. A empresa morre agora, ingloriosa, eivada de obscuras insipiências e cegueiras, ela que foi rainha das nossas memórias, dos nossos sorrisos, dos nossos momentos felizes e continua a sê-lo nos momentos nostálgicos. Dói ver a rainha desnudada das suas vestes joviais (vermelho e amarelo vivos, lembram-se?) e descoroada, desonrada a céu aberto. Foi impelida também a um suicídio, não fulminante como o do altivo fundador, antes ronceiro como os crimes premeditados. Porque a lenta morte da Kodak, como tentarei demonstrar, começou exatamente em 1981. No final do século já começara a cumprir-se o luto.


1. OS TEMPOS DE GLÓRIA
Que fez de incomum George Eastman há quase 125 anos, a ponto de se tornar uma celebridade mundial? Isto: um caixote tosco medindo dez por quinze centímetros, pesando um quilo. Mas no interior desse "Caixote Maravilhoso" (como foi designado) existia algo de fabulosamente inventivo e inovador que supria as "mochilas" usadas pelos fotógrafos da era pós-Niépce / Daguerre, cujo peso oscilava entre os vinte e os quarenta quilos. O manejo da "caixa" era de uma enorme simplicidade, acessível a todas as pessoas. Eastman propagandeou depois essa característica sob um genial lema publicitário: «Você carrega no botão… nós fazemos o resto.» E deu ao novo produto um nome sucinto, dos mais incisivos criados no mundo. Formidável detonação dissilábica que durante um século seria usada para nomear qualquer aparelho fotográfico, para desespero dos fabricantes concorrentes no ramo. O vocábulo "kodak" chegou a ser dicionarizado em numerosos países, Portugal inclusive. Na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira pode ler-se: «Kodak, (...) aparelho fotográfico (...) em que as chapas de vidro são substituídas por rolo de película.»

 


Quase tão importante como a invenção da fotografia foi a popularização mundial da mesma, de facto uma reinvenção, cumprida por George Eastman num breve espaço de tempo, na transição do século XIX para o XX. O "Caixote Maravilhoso" evoluiu para um género de utensílio doméstico indissociável do quotidiano feliz do mundo civilizado. Eastman ainda assistiu ao advento de um produto de "memória feliz" resultante da sua invenção: o "álbum de família". Um publicitário esteve igualmente inspirado ao transmitir uma mensagem tão banal e tão óbvia que só por meio de um sopro de genialidade seria possível dar-lhe vida: «... para mais tarde recordar.»
Milhões de pessoas no mundo inteiro não esqueciam, à partida para férias, de levar "o" / "a" Kodak.Para mais tarde recordar.


A fotografia preencheu na minha vida um ciclo longo, três décadas. O amadorismo fotográfico manteve-se especialmente exuberante no mundo inteiro até quase ao final do século. No início dos anos sessenta, quando ingressei na "arte", há muito se deixara de escrever photographia, um timbre meramente ortográfico porque o espírito de culto e devoção permanecia quase intocado. A paixão dos veteranos era muito mais photographica que fotográfica. Muitos de nós antecipámos em Portugal um aventuroso Maio de 68 fotográfico, nas  expressões artística e jornalística, esta em menor grau. Foi um tempo em que existiam nos cinco continentes milhares de associações fotográficas, muitas denominadas "clubes" – um dos vocábulos tutelares das paixões. Inseríamo-nos numa cultura e mentalidade de "grupo", não havia "grupo" tão excelente como o nosso, precisamente porque resumíamos o mundo à arte fotográfica e de interessante no resto do mundo pouco sobrava.
As conversas eram peculiares. Nenhuma conversa séria, mesmo não tocando a técnica, prescindia de alusões a marcas comerciais, nunca entendidas como tal. Kodak, sobretudo, não era uma marca igual às outras: era uma marca d'água da produção artística, jamais um comércio ou uma indústria. Citávamo-la como instrumento distintivo da arte, como um pintor exaltará sem pudor a marca predileta dos seus guaches. Nós esclarecíamos que um determinado efeito visual resultara da utilização do filme Kodak Tri-x 400 e que, não satisfeitos com o vigor inato do "grão", ainda por cima "puxáramos" a película durante a revelação química (o substantivo "grão" e o verbo "puxar" eram recorrentes). A parca diversidade opinativa admitia mais duas ou três marcas fiáveis. Víamo-las, porém, como uma espécie de contrafações bem sucedidas. De justiça realçar a principal concorrente da rainha americana: a germânica Agfa. Vinham por vezes à baila os papéis da Ilford, muito conceituados na área do preto e branco. Esporadicamente apareciam jovens ávidos de novas experiências, gabando filmes quase clandestinos. Nós, os "antigos", bem traquejados no ofício artístico ou fotojornalístico, fingíamos curiosidade e de imediato prosseguíamos serenamente a conversa, porque, curto e grosso: depois dos filmes Kodak nada mais havia para inventar. A própria Agfa declinava entre os amadores, apropriando-se com êxito do setor das artes gráficas. A história quase centenária da Kodak e a aura do seu fundador fortaleciam a afeição dos artistas e dos repórteres. Também por isso lhe era tributada deferência. Como todos os símbolos, gerava uma perceção de eternidade. Só um brincalhão insano ousaria dizer que a rainha iria morrer no virar do século.




2. A DERROCADA
Na realidade, como assinalei, a morte da marca começou a ocorrer ainda antes, no início dos anos oitenta. Nessa época eu dirigia uma revista que, em setembro de 1981, atrasou por um dia a impressão para que pudesse escrever um editorial de última hora sobre um acontecimento extraordinário: a nipónica Sony acabara de apresentar uma máquina fotográfica sem filme. O protótipo chamava-se Mavica (sigla decorrente de Magnetic-Video-Camera) e utilizava, em vez da película convencional, discos vídeo capazes de registar 50 imagens que poderiam depois ser visionadas num ecrã televisivo. Desde a invenção da fotografia que o registo de uma imagem implicava sem alternativa o recurso a um suporte químico emulsionado. Sabia-se agora que a "superfície sensível" (uma expressão secular no processo fotográfico) poderia ser substituída por um minúsculo mecanismo eletrónico. Acrescia a novidade de esta máquina da Sony ter uma configuração, tamanho e peso muito semelhantes às congéneres clássicas.
Volvidos mais de trinta anos sobre a publicação desse editorial, revestir-se-á de alguma curiosidade o trecho seguinte:

«(...) Queiramos ou não, chegou o tempo de nos rendermos ao facto incontroverso de a química estar a ser desalojada do pedestal magnificente ao qual a indústria das imagens a fez ascender desde os tempos de monsieur Daguerre. Não vamos afirmar que a química sofreu já o golpe misericordioso com a presente inovação japonesa, mas talvez seja válido o vaticínio de que o seu papel na História da Fotografia ocupe um capítulo com ponto final nos livros da especialidade a editar no século XXI (se, entretanto, o vídeo não tiver já substituído por completo os livros...)»


Nesse texto de 1981 refletia-se em vários parágrafos sobre a mutação tecnológica recém-nascida e «cuja evolução irá processar-se em condições e a um ritmo que não poderemos prognosticar com rigor.» Apesar disso, questionava-me: «duas, três, quatro décadas?» A resposta não durou muito tempo: foram duas. Menos afortunado andei noutro género de conjeturas: «Uma questão essencial consiste saber se [a Kodak] conseguirá anular o avanço de partida dos japoneses e chegar em primeiro lugar ao grande mercado com a máquina eletrónica. A Kodak, que possui sempre a palavra mais poderosa em tudo quanto se relaciona com o itinerário universal da indústria fotográfica (...) não aceitará conformadamente a circunstância de lhe ter escapado a primazia mundial da apresentação de um protótipo [eletrónico].»
A verdade é que aceitou. Erro crasso. Anos e anos de passividade, chegando um dos vice-presidentes, John Robertson, vir a público manifestar «as maiores reservas» quanto à eventualidade de uma máquina fotográfica eletrónica ocupar «um espaço predominante na fotografia de amadores.»


3. AS TREVAS
Alucinados permaneceram os gestores internacionais da Kodak ao insistir na crença risível (já nos anos 90) de que a química e a eletrónica coexistiriam eternamente. Alguns deles nem sequer admitiram que a primeira viesse alguma vez a perder a supremacia de mercado a favor da segunda. Gregori Volokhine, um economista que tem vindo a estudar as falências de empresas multinacionais, resumiu: «O drama, mais uma vez, é que esta empresa não fez a adaptação tecnológica quando podia tê-lo feito.»
Existe um mecanismo diabólico para soterrar uma empresa indolente: chama-se "patente tecnológica". Um único invento relevante poderá envolver largas dezenas de patentes. Quem se atrasa, morre. Na melhor das hipóteses, terá ainda fôlego para optar por um rumo divergente, porém perspetivando um resultado quanto possível similar à da primitiva opção. Nada disto fez a Kodak. Placidamente, abriu a própria cova, permitiu que a concorrência a fosse sepultando sob um número infindo de consecutivas patentes. Numa paráfrase trágica do anúncio histórico de Eastman, o que as empresas concorrentes disseram à Kodak foi: «Vocês abrem a cova, nós fazemos o resto».     


14 março 2012


© PEDRO FOYOS

 

 

 

UM PAI EXPLICA AO FILHO
COMO SE FAZIA FOTOGRAFIA NO SÉCULO XX

Trecho final de uma crónica de Pedro Foyos
publicada na revista "Nova Imagem" em 1981
vinte anos antes do advento comercial das câmaras digitais


[Acredito] terem já nascido os homens que um dia explicarão aos filhos como se fazia fotografia neste século [XX]. Assim:

– Introduzia-se na máquina uma película em forma de rolo, muito comprido, que ia correndo no interior da câmara à medida que se faziam as fotografias.
– Rolo?!
– Sim. A esses rolos chamavam-se filmes. Havia-os com características muito diversas: escolhiam-se consoante as condições de luz em que se pretendia utilizá-los ou de acordo com os efeitos artísticos desejados pelo fotógrafo…
– Efeitos artísticos?
– Exacto, tal como começa a suceder agora com a vídeo-arte computadorizada. Depois, quando o tal rolo se encontrava já todo impressionado, efectuava-se uma operação laboratorial – a revelação…
– Revelação?
– Pois. Para que as imagens aparecessem era necessário passar o filme por uma solução reveladora, composta de vários produtos químicos…
– Que complicação, papá!



 © PEDRO FOYOS







Edgar Morin: o nonagenário
que não desiste de mudar o mundo

edgar morin

 

   «As ideias têm vida própria.   É por isso que se pode viver, e também morrer,
   por uma ideia»

Edgar Morin celebra hoje [8 julho 2011] noventa anos.
Embora correndo o risco de me considerarem desmesurado, sempre declaro: Morin é, a uma escala mundial, o maior pensador vivo. Não encontro outro espírito tão polivalente, tão inventivo, repartindo o seu imenso trabalho criador por áreas múltiplas, da biologia aos mitos culturais, dos fenómenos sociológicos como o cinema e os media à ecologia e à cibernética. Um Leonardo da era moderna. Passou uma boa parte do século XX a inventar as reformas indispensáveis à sobrevivência da humanidade. Há dois anos [maio 2009] veio a Viseu (porque o colóquio em que participou teve por cenário o trigésimo aniversário do Instituto Piaget), dissertando em especial sobre o ensino, cuja «reforma radical» defendeu, apontando alternativas que possibilitariam aos jovens enfrentar os desafios do presente e do futuro. «O ensino», disse, «continua separado de uma visão global do mundo exterior. Essa visão global é indispensável à compreensão do que está a passar-se, a sociedade precisa de um saber não compartimentado, mas transversal.»
Cedo me seduziu na obra de Morin (em parte significativa traduzida para português) o seu pensamento planetário, as reflexões universalistas sobre a natureza e a condição humanas, o ceticismo angustiado de incertezas com que conceptualiza as contradições do mundo e, em especial, aquele olhar herético, provocador, que arrasa tudo quanto são ideias feitas. Sabe-se que um filósofo jamais poderá gerar unanimidades. Todavia, Morin converte essa premissa num exercício desafiantemente revolucionário, cumprido de cada vez que exterioriza uma ideia. Até os leitores fiéis que por hábito lhe tributam uma atenção admirativa não conseguirão evitar objeções, porventura dissidências irremíveis. Ou quase... Já me aconteceu que, lendo-o, em determinado passo me desvie do livro e murmure: «Aqui não estamos de acordo! Desculpa, mas...» Anos depois, um acontecimento de natureza diversa projeta-me para o conceito por mim renegado e transijo, penitente: «Bem, Edgar, é possível que tenhas razão. É mesmo muito possível...»
Morin está sempre na contracorrente de tudo, a começar, naturalmente, pelas "verdades irrefutáveis", as "tradições inquestionáveis", os dogmas políticos,económicos, religiosos, filosóficos...
Quem não o conheça e mostre interesse em dar uma espreitadela ao seu universo transdisciplinar poderá optar por Os Meus Demónios (ed. Europa-América), uma espécie de breviário de pensamentos rebeldes, de convicções e dúvidas ancestrais. Saímos do livro com a impressão de termos percorrido um grandioso fresco histórico de uma vida, uma vida de ideias. Ideias que, por seu turno, como assinala, têm vida própria, porque não existe simplesmente vida biológica: «É por isso que se pode viver, e também morrer, por uma ideia.»
Particularidade desta obra invulgar é a de não se tratar, em rigor, de uma autobiografia, na aceção corrente do termo. Morin não se cansa de evocar a sua vida fabulosa mas rapidamente abandona os episódios pessoais para iluminar as ideias que os enquadram ou lhes estiveram subjacentes. Essa rememoração quase sempre magoada principia no próprio nascimento, em circunstâncias trágicas: a mãe ou o filho, um deles teria de morrer no parto. Milagrosamente, sobreviveram ambos, mas a mãe nunca recuperou, partiu poucos anos depois. Edgar carregaria para sempre o primordial demónio dessa sombra.
Revisita com inclemente lucidez as ideologias e combates que atravessaram o século XX («Que época! Quantas reviravoltas e cegueiras! Quantas tempestades! Quantos mitos e desmitificações!»). Tempos de sucessivas resistências: primeiro, ao nazismo, depois, ao estalinismo. A excomunhão sofrida em 1951, por parte do Partido Comunista francês, trouxe-lhe a aversão de muitos companheiros de jornada para os quais o marxismo ortodoxo constituía uma autêntica religião da salvação terrestre. Foi o primeiro a teorizar sobre um inevitável colapso do império soviético. Descrente, sempre rebelde, prosseguiu quase sozinho, permanecendo por longos anos em "hibernação política".
Outras linhas de força: o progresso civilizacional indissociável da barbárie, o túnel infindo dos antagonismos: «O pensamento, quando chega às regiões mais profundas da realidade, encontra contradições logicamente insuperáveis.» Dilacerado por estas contradições, escreve, referindo-se à Alemanha nazi: «Como é que a nação mais culta do mundo produziu uma das piores barbáries universais; como é que o país onde nasceram a música, a poesia, a filosofia que mais me tocam deu origem às ideias que mais me repugnam?»
Cada livro de Morin submerge-nos numa avalancha de interrogações. Sempre latente, no entanto, a ideia da mudança, da reforma das ideias, de um urgente «começar de novo», da refundação de um crescimento sem limites e bloqueador do futuro da humanidade.
Há dois meses, Guilherme d’Oliveira Martins, num artigo notável inspirado no pensamento "insurrecional" de Morin [Jornal de Letras, 4 maio 2011], sublinhava que «a ideia fixa do crescimento contínuo e interminável não pode continuar.» Prosseguindo, com uma transparência que derruba aparentes enigmas ou incertezas: «Basta fazermos simples operações aritméticas, considerando os sete mil milhões de habitantes da Terra, para percebermos que sem consciência dos limites apenas poderemos chegar ao desastre global. É preciso conceber uma sábia complementaridade entre crescimento, decrescimento e estabilização, segundo a compreensão da complexidade. O desenvolvimento indiferenciado, seguindo o modelo ocidental produtivista, está votado ao fracasso, uma vez que desconsidera a diversidade e a complexidade, não compreendendo os limites. A hiperespecialização, o híper individualismo e a perda das solidariedades conduzem à incapacidade de corresponder às mais elementares exigências da justiça. E Morin afirma mesmo que não basta contentarmo-nos com o "durável" ou o "sustentável" de reminiscências ecológicas – é preciso ir mais fundo. As crises misturam-se, do conhecimento, da política, da economia, da sociedade, e levam-nos aos bloqueamentos da globalização, da ocidentalização e do desenvolvimento.»

A crise da humanidade será inelutável? Edgar Morin opõe-se à resignação, os seus livros estão repletos de trilhos novos, clarividentes. Aos noventa anos continua a resistir com a pertinácia de quem acredita que o pior de tudo é desistir de mudar o mundo.

 © PEDRO FOYOS








Terra
da memória


flavio


Entre os que partem e os que ficam
há sempre uma impossibilidade
feita de terra espessa
ou de coisa nenhuma
afogando nas lágrimas um segredo último
apertando no coração
a memória do primeiro segredo.


© PEDRO FOYOS





Por favor...
... a sua idade?


Tenho saudades do tempo em que me perguntavam a idade.
Hoje, por educação, ninguém me pergunta quantos anos já soma o extenuante cadastro da minha existência.
Em situações raras, como numa primeira consulta médica, recobro a felicidade da pergunta:
– Por favor... a sua idade...?
A falta de hábito faz-me vacilar, já errei à primeira, trocando a ordem dos algarismos. A senhora que preenchia a ficha mirou-me cheia de perplexidade, incrédula por ter diante de si um quarentão tão envelhecido.
Na realidade, a pergunta começa a desvanecer-se à medida que progredimos na adolescência. Aos vinte anos já ninguém mostra o mínimo interesse em saber a nossa idade. O verso de José Gomes Ferreira – «Recuso-me a ter mais de vinte anos» – eu o modificaria um nada-nadinha para: «Recuso-me a ter mais de dez anos.» Essa, sim, é a idade em que (ainda) detestamos que nos perguntem quantos aninhos temos. Ah, que saudades do tempo em que detestava a pergunta redobradamente detestável quando vinha mimada de aninhos e de outras denguices que tais! Como eu desejaria que a senhora que me questiona enquanto vai preenchendo a ficha, de súbito fizesse um sorriso caricioso e perguntasse:
– Por favor... quantos aninhos tem...?
Pelo contrário, das pouquíssimas vezes em que alguém coscuvilha a minha idade, a pergunta vem áspera, enodoada de rudeza:
– O senhor 'tá com que idade?
Enfurecido, apetece-me deitar a língua de fora, para verem bem que o "senhor" ‘tá com a idade de um menino que brinca fazendo de conta que é um "senhor".

Menino sou ainda, de facto, para pessoas próximas. Uma delas confidenciou-me com fina elegância palaciana que os meus olhos mantêm o «brilho desafiante» refletido nas antiquíssimas fotos dos meus seis anos. Felizes dos velhos que têm pessoas a dizer-lhes patetices deste género. Nós acreditamos, eu acredito que a infância não se extinguiu por completo no corpo prescrito. Serão os olhos, os olhos dos velhos, o último baluarte de resistência? Faz sentido: os olhos são um belo paradeiro da rebeldia e da desobediência, embora o meu primeiro ímpeto, ouvindo tal asserção, seja procurar os óculos para ver melhor o resquício sobrevivo.  

A condição de sexagenário (mais ainda a de septuagenário) permite-nos pequenos erros, pecadilhos, simulacros menores, falsos lapsos que vão por conta da idade e merecem em geral uma beatífica indulgência. O mesmo já não acontece depois dos oitenta. Há então uma causa indubitável: a velhice néscia, insana. Um epíteto corrente resume quem está nesse limbo: "gagá". Para evitarem tal crueldade, os octogenários lúcidos são quase sempre pessoas que refreiam as travessuras que bem desejariam fazer. Mas nós, os que já divisamos a outra ponta da ponte mas não chegámos ainda lá, devemos explorar o fugaz tempo de tolerância que nos resta. Dissimuladamente, semeemos pedrinhas na engrenagem. Sendo descobertos, confessaremos, lastimosos, que foi sem querer. Com sorte e para nossa felicidade dir-nos-ão que parecemos crianças. Será um dia ganho.

Outra pergunta detestável entre as mais detestáveis e de que tenho imensas saudades é aquela que invariavelmente sucede à da idade:
– O que queres ser quando fores grande?
Também já ninguém nos pergunta – a nós, aos velhos – o que queremos ser quando formos grandes.
É pena. Justificar-se-ia que a pergunta fosse feita aos velhos, porque todos os velhos são meninos a fazer o papel de velhos e mantêm intacto o secreto desejo de um dia poderem vir a ser grandes.

© PEDRO FOYOS




...E não poderá criar-se em Portugal
um sindicato dos alunos?



      ESCRITO NO TEMPO EM QUE O PAÍS ASSISTIA A ESTRIDENTES REIVINDICAÇÕES POR PARTE DOS
   SINDICATOS DOS PROFESSORES. EM CAUSA ESTAVAM O SISTEMA DE AVALIAÇÃO E A POSSIBILIDADE
             DE TODOS ESTES PROFISSIONAIS TEREM ACESSO GARANTIDO AO TOPO DA CARREIRA.

Aconteceu há dias no espaçoso auditório da Escola Secundária de Mem Martins. Perante uma centena de alunos fui reconhecendo naquela assembleia juvenil um quadro díspar daqueles preconceitos que em geral enquadram a visão do sistema educativo português e do muito precário interesse pela cultura por parte dos nossos estudantes mais jovens. "Geração rasca" foi um dos epítetos associados historicamente a tal juízo. Não sou profissional do ramo, ignoro se a experiência vivida naquele dia foi rara ou se, pelo contrário, poderia repetir-se em inúmeras escolas de outras regiões do País. Manifesto apenas a surpresa de se me ter deparado ali uma situação de Excelência – vocábulo tão em voga nos últimos tempos, porém nunca aplicado aos alunos.

Logo à entrada causou-me imensa satisfação o espaço da Mediateca, integrando um bem apetrechado setor audiovisual e uma biblioteca com centenas de volumes. Tudo devidamente ordenado, classificado, denotando um plano de culturalização e promoção da literatura.

A sessão teve início com um vídeo excecionalmente criativo sobre o tema de que iríamos falar. Um documentário dinâmico, pleno de inventividade técnica e... realizado pelos próprios alunos. 

A surpresa seguinte, no prosseguimento da sessão, teve como protagonista uma aluna, de nome Carla, que transmitiu aos colegas, numa dissertação de vinte minutos, com um nível lexical não aprendido decerto nos concursos televisivos, a essência de um romance de quase 400 páginas. Não se julgue esse exercício como resultante de um "empinanço" do livro ou de partes do livro. Não. O que a Carla fez, com admirável proficiência, foi uma leitura atentíssima da obra para depois não só gizar o enredo mas também e sobretudo realçar a filosofia e a pedagogia subjacentes, de forma mais ou menos discreta, à narrativa.

O espaço dedicado às perguntas, que se prolongou por uma boa hora, não foi menos cativante. Perguntas formuladas com imensa lucidez, objetividade, pertinência. Pobre de mim, tão necessitado ando de ânimo e confiança que não desperdicei o ensejo para me entregar, fraterna e familiarmente, aos meus jovens interlocutores. Não o teria feito com os alfabetizados funcionais com que me cruzo todos os dias. Assim, dei comigo a desenlaçar confidências que uma hora antes juraria não fazer.

Em silêncio me deliciei com apartes brevíssimos dos professores presentes. De facto, nas alusões a um autor, a um tema, a uma situação, lá estavam os mestres (professores Sérgio Quaresma e Luís Martins) advertindo os eventuais interessados para a possibilidade de consultarem um determinado livro na biblioteca ali ao lado.

Saí desta escola modelar com a tristeza de saber que outras (muitas outras?) estarão longe de alcançar um tão elevado nível de excelência.

Ocorreu-me então a ideia espaventosa de os nossos alunos do ensino básico e do secundário se organizarem, também eles, num briguento sindicato que reivindique, estrepitosamente, obstinadamente, o "acesso garantido" a escolas excelentes.

Mesmo que nenhum, ou poucos, ascendam ao "topo da carreira".

© PEDRO FOYOS



O mistério do baú sem fundo
das memórias de infância

Tenho um baú valioso, de aspeto exterior indefinido, quase diria imaterial, mas o que me interessa é o conteúdo. Está cheio de memórias vivas. Memórias de infância. Há outras, mas por razão que desconheço são as da infância que primeiro tateio ao meter lá a mão, ou serão elas que procuram os meus dedos e se ferram de um tal jeito que inadvertidamente causam dor. Fora isso, torna-se divertido. Basta meter a mão e logo vem à luz um sem número de pepitas mágicas. Desse baú me sacio, mesmo sem fome, porque sou um predador compulsivo de memórias inocentes. Tanto-tanto que tenho passado os últimos tempos a remexê-lo, desentranhando as lembranças da pré-adolescência, em especial explorando o veio riquíssimo dos sete anos e meio, quas'oito – a idade que tem Alice quando me convida a visitar um certo País por ela nomeado das Maravilhas que acho, já lho disse, uma maluquice pegada e fartamo-nos de rir ao acordarmos.

Numa dessas ocasiões fantásticas passou por mim a correr o Daniel Sampaio que me informou, tirando do bolso um relógio com o tamanho de um prato de sopa, estar atrasadíssimo, «ai, que atrasado estou!», repetiu, acrescentando que me daria conta de algo de importante se o acompanhasse na corrida. Nunca desperdiço uma oportunidade de saber "algo de importante", para mais vindo de uma douta personalidade, e lá emparceirei botando fogo às canelas, como costuma dizer um amigo brasileiro que é Imperador com maiúscula. Aquela idade, esclareceu-me o apressado cavalheiro andante, é uma das mais importantes na vida do ser humano porque, explicou sem abrandar a passada, nessa fase a criança começa a construir a sua identidade, a autodescobrir-se e a reinventar, com inesgotável inventividade, a realidade, a vida, os heróis de ficção, os amigos imaginários...

Retorqui: «Doutor!, pare lá um bocadinho e diga-me... Não se pode parar aí, como fez a Alice?». Vi-o sorrir, pareceu-me ter-se revigorado naquele corre-corre e quem parou fui eu, vencido na lufa-lufa. Invejo-lhe a energia.

Fiquei sentado numa curva do caminho, à sombra de uma oliveira, meditando com ela em disparates próprios de quem chega à idade velhusca do pé-de-pantufa (era o meu caso, e o dela, da oliveira raiz-de-pantufa porque todas as oliveiras já nascem velhas). Assim pensei e repensei como se erigisse o pórtico luminoso de um teorema para a salvação da humanidade. Eis: o mundo será maravilhoso quando todos conseguirmos parar nessa idade. A idade-passarinho. Alguns conseguem parar mas têm de passar a vida a disfarçar que são crescidos. Recordei a minha amiga Cecília Meireles, sempre saudosa dos "contos de fadas", que me interrogava com imensa angústia: «Em que espelho ficou perdida a minha face?» Sabendo o que sei hoje ter-lhe-ia respondido: «Olhe aqui, Cecília, 'cê se lembra daquele espelhinho redondo, cor-de-rosa, em que se mirava pequenininha, pelos seus sete anos e meio, quas'oito? Pois foi aí, aí mesmo, que ficou perdida sua linda face. E não volta mais não.»

Logo saltei para o epílogo: o que há de mais aproveitável na espécie humana confina-se ao tempo efémero da pré-adolescência. Antes, há insuficiente racionalidade; depois, há de mais. Do estado natural da pureza (já se insinuando, todavia, a perversidade com que todos somos ungidos à nascença) passa-se bruscamente para o estado natural da parvoíce.

A este pensamento sucedeu uma antiga interrogação: por que motivo, ao meter a mão no baú, de imediato colho, à superfície, as memórias antiquíssimas, as da infância? Não deveriam elas estar no fundo-fundo e as recentes à mão de semear?

As oliveiras costumam ter respostas para tudo, mas desta vez valeu-me o poeta António Gedeão que sob a forma de um anjo me soprou ao ouvido: «Pergunta aos sábios.»

Em consequência e abusivamente envolvi nos meus devaneios dois ilustres das neurociências portuguesas, Pratas Vital e Carlos Lima, que, com uma infinita paciência, me elucidaram por correio electrónico:

«Quando somos mais jovens, os registos importantes ficam gravados no DNA das células nervosas, os neurónios. Com a idade, o registo passa a ser feito nas ramificações dos neurónios, as dendrites, e, por isso, mais passíveis de alterações, nomeadamente a sua perda.»

Dito de maneira a que os leitores jovens compreendam: um acontecimento de há 50 anos encontra-se gravado no disco duro, só desaparecerá no momento fatídico em que o computador sofrer um crash irremediável, definitivo. Em contrapartida, algo que se passou há meses permanece num patamar de imponderabilidade, uma espécie de reciclagem cujo destino a brevíssimo prazo é o delete vagaroso, baço. Como sabemos, ao contrário do crash, a supressão das memórias na área da reciclagem não afeta o computador.

«Um dia vais mesmo crashar», observou-me a oliveira. «Puff!... lá se vão as memórias de infância...»
«Sim», concordei. «Entretanto... é um festim.»

© PEDRO FOYOS



O livro
que ando a ouvir

Sou um incondicional apoiante do "audiobook" (como se diz ainda por aí), tão escassamente explorado em Portugal, em contraste com o que acontece nos EUA, em vários países europeus e também agora no Brasil. Há anos, no metro de Londres, surpreendi-me ao dar conta, pelas capas plásticas sobre os joelhos de alguns passageiros com auscultadores, que eram livros o que ouviam e não música.
Segundo os dados divulgados pela organização do "Festival Silêncio!", existem países onde o áudio livro abarca dez por cento do mercado editorial. Quase sempre o lançamento do livro impresso ocorre em simultâneo com o respetivo CD áudio, o que é desejável, pois não se defende a substituição de um modelo por outro, excetuando a situação óbvia dos invisuais. Desconhece-se a percentagem desse segmento em Portugal, mas não erraria calculando que em dez mil títulos publicados em papel haverá um com a correspondente versão sonora.
Sublinhe-se, no entanto, que o pouco existente é de magnífica qualidade. Dos autores de língua portuguesa merecem destaque Fernando Pessoa, Eça de Queirós e os contemporâneos Gonçalo M. Tavares e José Eduardo Agualusa. Os estrangeiros são em maior número, com realce para Paul Auster, Stefan Zweig, Luis Sepúlveda e Gogol. As vozes ascendem em geral ao nível de excelência (não escondo a minha predileção pelo jornalista da TSF, Fernando Alves, e a atriz Maria do Céu Guerra).
Em Junho de 2007 participei num colóquio em Lisboa, na Livraria Barata, em que o tema do áudio livro atraiu confrangedoramente pouco mais de uma dezena de cabeças pensantes. Numa troca de impressões com alguns dos presentes sugeri que uma futura campanha promocional incorporasse a ideia da imensa antiguidade do áudio livro. Exemplificando: «Quando o livro foi inventado, muito antes já o havia sido o áudio livro.» Indispensável complementar tal asserção com a imagem dos bardos homéricos que representaram de facto os primeiros "áudio livros". Em comunidades de analfabetos, esses bardos garantiram a perpetuação memorial de muitas obras-primas. Os antigos gregos apreciavam os livros mais pelo efeito auditivo do que visual. A "literatura" era para ser lida em voz alta, entoada, declamada. Tucídides, o primeiro que deu à História um caráter científico e que chorava em público ao escutar as Histórias de Heródoto, chegava a pedir desculpa por recorrer à palavra escrita, um registo menor, cujo único mérito – dizia – era o de permitir «uma posse para sempre». Sócrates, intermediado por Platão em Fedro, fustigava «aqueles que não conseguem erguer-se acima das suas compilações e composições, que passam o tempo a remendar e a cerzir...» E qualificava com impiedade de indignos do nome de "amantes da sabedoria" quantos não se mostrassem capazes de defender as ideias «com argumentos orais, que levam vantagem na comparação com os escritos.»
Melhor promoção, admito, seria alertar as pessoas para milhares de horas malbaratadas a ouvir e a ver programas de superlativa estupidificação, publicidade massacrante, concursos infindos. Ah!, também os nossos ayatollahs da política e da bola, esses sábios que à hora do costume vão ratando em todos os televisores da Nação e que nas pantalhas envelhecem connosco, noite após noite, com os ritos e tiques de todos os dias. Poderiam ser revezados de quando em vez pela audição de um bom romance.
Outra promissora via de futuro para o áudio livro são os engarrafamentos de trânsito. Com algum grau de alucinação consigo imaginar um mar de condutores imobilizados, cada qual ouvindo o género de literatura da sua preferência: romance, conto, poesia...
Montemos a peça. Enclausurados no nosso veículo de rodas tolhidas, vemos um condutor lavado em lágrimas. Inúmeros fatores estarão na origem do estranho comportamento. Prefiro o seguinte: o sujeito ouve E Tudo o Vento Levou, precisamente aquela sequência lancinante em que a bela Scarlett O'Hara regressa a casa e encontra a mãe morta, o pai louco e toda a fortuna em fanicos.
Mas, repare-se!... ali bem perto, outro ri-se a bandeiras despregadas. O próprio carro parece gargalhar, saltaricando nas oportunidades de avançar um metro. Poderemos intuir (mera presunção) que está a ouvir uma antologia das mais veementes promessas eleitorais dos nossos políticos nas últimas décadas.

© PEDRO FOYOS






Reflexões lacrimosas
sobre a chegada do Homem à Lua

                                         ESCRITO NO DIA EM QUE SE COMPLETARAM 30 ANOS
                                                   SOBRE A CHEGADA DO HOMEM À LUA

Faço parte daquele grupo de milhões (um quinto da Humanidade, foi dito) que em Julho de 1969 testemunhou com emoção o momento em que Neil Armstrong comunicou ao Centro de Houston: «Aqui Base Tranquilidade. A Águia alunou.» Recordo que a minha maior surpresa, num misto de ingenuidade e de ignorância, foi a frequência com que Armstrong e Aldrin se referiam à luz lunar. Luz intensa. Luz? Então, não se previa que naqueles ermos estivesse tudo apagado? Não. Naqueles 160 minutos em que os dois astronautas foram os senhores da Lua ouvimos frases como: «Vejo tudo nitidamente, a luz é muito clara.» E: «Posso ver perfeitamente a minha pegada.» Depois, uma declaração esplendorosa: «Pode dizer-se que isto aqui é muito belo.» Numa croniqueta que publiquei na ocasião selecionei para título estas palavras magníficas de Armstrong: «Vou caminhar para a luz do Sol.» Sempre se dirá que as "tiradas" iam preparadas, a começar pela mais memorável: «... Um pequeno passo, etc.» que de tão conhecida dispensa repetição. Respondo: que importa? No final de um grande espetáculo não se questiona o ensaio que o antecedeu. E assumo a enorme comoção com que ouvi o comandante da missão reproduzir de viva voz a inscrição que lá foi deixada: «Viemos em paz e em nome de toda a Humanidade.» Por um minuto lacrimoso reconciliei-me com a Humanidade. O problema de sempre, o problema humano, é que, findo o espetáculo, as luzes apagam-se neste planeta discrepante e a Humanidade perde-se num quotidiano de infinitas escuridões que nem a luz do Sol consegue dissipar.

© PEDRO FOYOS





A propósito de aventuras espaciais:
Yuri Gagarin proibido pela Censura de Salazar


flavio


Oito anos antes da chegada do Homem à Lua ocorreu a odisseia do astronauta russo Yuri Gagarin – o primeiro homem no espaço a bordo da nave Vostok. Este acontecimento pioneiro na história da exploração espacial foi imensamente adverso para os regimes políticos antissoviéticos. Em Portugal, a Censura salazarista proibiu todo o noticiário relativo às manifestações de regozijo que alastraram no mundo inteiro pelo facto de, pela primeira vez, ter sido possível colocar no espaço um ser humano, numa órbita em torno da Terra, recuperando-o com vida no final da missão. No jornal onde eu começava a dar os primeiros passos como repórter – o diário oposicionista República – o furor censório foi ao ponto de limitar o espaço de destaque dos títulos na primeira página, ao mesmo tempo que eram golpeados com impiedade os textos editoriais. Até um desenho inócuo de um grande artista, Miguel Flávio, com a legenda " um Amigo no Espaço" foi proibido. Preservo o original dessa bela alegoria gráfica à Paz, que o autor me ofereceu e me dedicou na ocasião em que lhe comuniquei a proibição.

© PEDRO FOYOS








... E ao oitavo dia, já descansado,
Deus criou os vírus


1. AS PROFECIAS DE C.W. CERAM



C W Ceram


Sempre que se prenuncia uma nova ameaça de infeção pandémica lembro-me do profético C.W. Ceram, um dos mais populares historiadores científicos do século XX e cuja visão da sobrevivência da Humanidade era aterradora: um dia, os humanos sucumbiriam aos pés (uma força de expressão) dos germes patogénicos, a não ser... A não ser – escreveu há 60 anos –, que nós, os ditos humanos, reconheçamos a tempo «o mais temível monstro, que ganhou, invisivelmente, mais batalhas do que os elefantes de combate com os quais Aníbal atravessou os Alpes.»
C.W. Ceram propunha então um gabinete multinacional de crise que integraria as sumidades planetárias na área da microbiologia a que se juntariam, presumo eu, alguns cérebros militares. Uma Caça Universal ao Micróbio. Era a exata expressão: caça. Uma caça impiedosa ou, dito de um modo provocador: desumana. Matar para não morrer, o ancestral postulado de todas as guerras. Precisamente o livro Caçadores de Micróbios, do médico americano Paul de Kruif, terá estado na origem não só da sua obstinação pelos microrganismos mas também de um género literário que despontava no início dos anos 30, a ciência romanceada. A obra de Kruif, confessava Ceram, lia-se «com uma paixão só disputada pelo romance policial». Explorando com eficácia o filão, conquistou milhões de leitores no mundo inteiro. Em Portugal, a sua obra magna, Deuses, Túmulos e Sábios (ed. Livros do Brasil) foi um duradouro best-seller nos anos 60. Um estilo desarmante: nesse livro, logo na primeira linha, recomenda que o leitor salte umas dezenas de folhas e principie a leitura por volta da página 80, porque, aí, sim, as coisas começam a ser realmente interessantes. Depois reconsidera: «Após essa iniciação, faça o favor, no seu próprio interesse, de voltar atrás e começar no princípio (... porque...) é preciso obedecer a uma certa orientação.» Foi este escritor-comediante, porém de uma inquestionável probidade historiográfica, quem, a par de um notável professor chamado Joel Serrão, despertou no adolescente que eu era um interesse perene pela História da Antiguidade. Ambos representaram um importante esteio na recriação do cenário social em que decorre a ação do meu livro O Criador de Letras.
Decorridas seis décadas, as acabrunhantes profecias de C.W. Ceram parecem cada vez menos especulativas. Observando o que tem acontecido nos últimos anos é impossível não sentir um frio a passar-nos pela espinha, como se diz nos romances. O que virá a seguir? Milénios de civilização ter-nos-ão impelido, afinal, para um dédalo inglorioso de sobrevivência à custa de antivirais? A Guerra dos Mundos volta à cena com uma alteração no elenco: criaturas invisíveis, caprichosamente abstratas, substituem os marcianos.

© PEDRO FOYOS




2. A GUERRA DOS MUNDOS


a guerra dos mundos

 

Andamos de sobressalto em sobressalto, de crise em crise. Ontem foram as vacas loucas, depois uma epidemia "atípica", ainda no rescaldo de uma trapalhona Gripe das Aves enfrentamos a neófita vedeta ex-suína, ex-mexicana, entretanto promovida a Gripe A (do tipo A, ou seja, o mais contagioso). Porquê esta sucessão vertiginosa de ameaças, alarmes, mortes? Parece, por vezes, que a salvação da Humanidade depende agora de um fármaco com o desgracioso nome de Tamiflu. Estamos presos por um tamiflu, valha-nos isso.
Procuramos respostas em nós próprios, desalentados interrogamos a Natureza (ou Deus, na variante criacionista). Uma ou outro, consoante as crenças, já se haviam descontrolado há tempos ao criarem uma espécie inimaginavelmente destrutiva do género Homo. Eis que ressurge, impetuosa como nunca, uma entidade da mesma "estirpe", resguardada na invisibilidade, dotada de extraordinárias capacidades de mutação e de recombinação genética, decidida a pleitear com os humanos a supremacia do planeta. É a Guerra dos Mundos que Wells não concebeu. Mas a natureza do grande confronto é similar. Tão-só se alterou o aspeto do inimigo. Os marcianos mal-encarados deram lugar a criaturas beneficiadas, convenhamos, de alguma beleza cromática quando vistas através do microscópio eletrónico.
Contra-argumenta-se com o progresso científico: a Humanidade está melhor preparada. Difícil não concordar. O problema é que o vírus diz o mesmo, porventura encarecendo, no meio de gargalhadinhas de soberba, a fórmula evolutiva do velho Darwin: «Vejam, espertinhos, a brevidade com que já consigo desenvolver genes neutralizadores dos vossos ataques químicos! Eh eh eh!»
Haverá Tamiflu que chegue?

© PEDRO FOYOS



3. A GUERRA DAS ESTRELAS



Darth Vader


A globalização humana caminha a par com a globalização viral. Na Idade Média os vírus viam-se na contingência de viajar de trem. Um vírus do século XXI já não viaja de trem. Apanha um avião num continente e, passadas horas, apeia-se num outro continente sem nada declarar ao pessoal alfandegário. Pelo caminho vai picando o ponto numa catrefa de nacionalidades, rumos, destinos... Admirável mundo novo. Por que criou Deus os vírus? A resposta a esta pergunta poderia gerar uma biblioteca inteira. Fiquemo-nos pelo primeiro parágrafo do preâmbulo, recorrendo ao Génesis:
«... Cada bicho da terra, cada pássaro do céu, e tudo aquilo que se move sobre a terra, e todos os peixes do mar – na tua mão eles estão entregues.»
Significativamente não foram mencionados os vírus. Seria  disparatada a inclusão dos mesmos a classe dos bichos. E não se movem sobre a terra. Também, em definitivo, não são pássaros nem peixes. Conclusão: já naquele tempo os vírus estavam fora do controlo do próprio Deus. Em consequência era-Lhe impossível (sim, a Ele, a Deus) entregá-los à mão humana, o que constituiria, repare-se, um ato mais próprio do demo. 
Aludi à Guerra dos Mundos a propósito do agente viral de que se fala. Foi-lhe atribuída a designação de "H1N1", um nome que parece inspirado nas impagáveis personagens robóticas de outra épica ficção científica, A Guerra das Estrelas. Lembram-se do rotundo "R2D2" (Artoo Detoo) e do luzente "C-3PO" (Threepio)? Pois deixaram descendência maléfica. Trágico que este não seja um novo filme de George Lucas. O filme é agora bem real, transmitido em direto nos telejornais. Não entram em cena robots paródicos. Darth Vader esconde-se sob a máscara da invisibilidade absoluta. E nem Deus tem mão nele.

© PEDRO FOYOS