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        CRÓNICAS DE PEDRO FOYOS

            (pisando descontinuamente o risco)



        MUNDO NATURAL

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          Homenagem a Alexandra Escudeiro


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                                                          Imagem: cortesia da Escola Damião de Goes

            O mais belo sorriso da Sétima Colina de Lisboa

Alexandra Escudeiro, que nos deixou há cinco anos, era um ser imensamente especial. Inesquecível o seu sorriso radiante, sorriso franco e animado em permanência por paixões e descobertas. Paixões de vida, em primeira linha, iniciativas de valorização e divulgação do Jardim Botânico da Sétima Colina de Lisboa. Fora de discussão se haveria um outro tão formoso no sistema solar e circunvizinhanças.
Admirava-a. (Não ouso um vocábulo que seria verdadeiro mas eventualmente equívoco). Tanto que lhe dediquei um capítulo de um dos meus romances, incorporando a partir da terceira edição do livro uma historieta maluca e cumpliciada com o apelido «Escudeiro».
Como jornalista do Diário de Notícias beneficiei das suas sugestões de temas que deram interessantíssimas reportagens, algumas das quais publicadas com enorme destaque porque o diretor de então tinha um “fraquinho” pelos mistérios do mundo natural, circunstância que eu explorava, pois claro…
Nasceu nesse tempo a Tertúlia Naturalista da Sétima Colina, grupo amador (“amador” é o que ama) que tinha por guia a jovem Alexandra Escudeiro, recém-formada na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e inexcedível no labor-amor com que nos desvendava os mistérios do Jardim Botânico. As atividades da Tertúlia contavam muito com o apoio de dois notáveis cientistas: os Professores Fernando Catarino (o “Mangas”, para os íntimos) e Galopim de Carvalho, sim, o dos dinossáurios, de quem se dizia que tinha escondido em casa um jovem dinossáurio que ele passeava à trela larga pelo Jardim da Estrela, quando o recinto, nas noites cálidas, estava mais despovoado de humanos. Afirmou-me o Professor, certa vez, que tal história não passava de uma lenda. Fiquei desiludido mas, por cortesia, condescendi meneando a cabeça. Hoje penso que terá sido preferível assumir a realidade como lenda, pois a realidade é sempre perecível, enquanto as lendas são eternas. E que boa-fortuna ouvir a pergunta que me fazem os mais jovens: «Sabes se o Professor Galopim continua a passear, à noite, no Jardim da Estrela, um dinossauriozinho?» Confirmo, obviamente: «Sim-sim, desde que não chova…».
Histórias, lendas, mitos, não faltavam no Jardim da Sétima Colina. Cada planta, um tesouro de sonhos. Alexandra sorria-lhes e logo elas lhe sorriam também, cúmplices. E eu, sem tradutor nem intérprete, furtivamente olhava para todas e rendia-me à mimética da conversa, expressando, silencioso e feliz, gratidão por a família vegetal me aceitar.
Sempre que visito este Jardim não dispenso dois dedos dessa conversa silenciosa com uma certa árvore brasileira. Tem brasão imperial, mas tagarela como nenhuma outra. Com essa árvore, a Alexandra e eu partilhámos segredos. Nessa época costumava vir ao nosso encontro o fundador do Jardim, Francisco Malagueta (professor catedrático, tratado em público, respeitosamente, por Conde de Ficalho), que passava o tempo todo a trocar correspondência com um amigo de além-mar, o Pedro das Barbas (idem, respeitosamente: Imperador Pedro II).
Essa árvore, conhecida há século e meio por “Árvore do Imperador” (os botânicos dão-lhe agora o arrevesado nome de Chrysophyllum imperiale), é, porventura, a mais histórica árvore em Portugal. O mesmo não sucedeu na sua pátria brasileira: aí foi condenada à morte logo após o derrube da monarquia. Uma razia em consecutivos anos. A árvore centenária que persiste no Jardim da Sétima Colina de Lisboa foi, precisamente, oferta pessoal de Pedro das Barbas. Uma árvore especial, única. Ao ver-me (ela vê-me a considerável distância, sinto-o), sempre recria para os meus olhos (velhos e sentimentais) o sorriso mais belo da Sétima Colina. Só ela, essa árvore, consegue fazê-lo, talvez porque acolheu a Alexandra como parte integrante da sua contextura arbórea, da sua seiva, da alegria silenciosa que as árvores transmitem quando estão felizes.

PEDRO FOYOS
Agosto de 2018

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          A CORDA PELO BOTÂNICO !

           Imaginativo acontecimento em Lisboa
   de apoio ao projeto 121

                                                            (Dia 19, sábado, 16h00)


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Corda-de-água é o nome vernáculo de uma bonita planta trepadeira africana da família das rubiáceas. O seu nome científico é Plectronia henriquesiana e consta que os antigos exploradores botânicos, exaustos no meio das florestas, rejubilavam quando a encontravam: era o dia ganho. Dos ramos da corda-de-água escorre abundante seiva, muito refrescante, com a qual os viandantes matavam a sede. Não nos desviaremos do âmbito botânico para mencionar uma outra corda que desempenhará um papel central, no próximo sábado, dia 19, em Lisboa. É a corda-de-gente (Chorda multi homines). Uma corda com mais de um quilómetro! Em rigor serão duas cordas, esticadas a partir das 16h00 pela boa gente amiga da Natureza em geral e do Jardim Botânico em particular (JB da Universidade de Lisboa, vulgo Jardim da Politécnica). 
As duas cordas serão levadas desde a Praça da Alegria e do Jardim do Príncipe Real até à feira que decorre no Jardim Botânico. Aqui, junto à escadaria, será dado um "nó simbólico" — epílogo desse magnânimo abraço em torno dos três espaços verdes daquela área da cidade.
A curiosa similaridade da corda-de-água Plectronia henriquesiana com a Chorda multi homines do próximo sábado é que também esta proporcionará uma seiva especialmente revigorante do Projecto 121, candidato ao Orçamento Participativo para renovação do Jardim Botânico.

Bem sabemos, nós, os amantes da Natureza, os amigos deste belíssimo Jardim, quanto ele está necessitado de intervenções de ordem diversa para a preservação e valorização do seu património natural e histórico, continuando a progredir sob a égide de uma secular missão científica e ambiental que infelizmente tem vindo a declinar.
Os autores da iniciativa "A Corda pelo Botânico!" são merecedores do mais caloroso aplauso. Surpreenderam-nos pela imaginação e capacidade de mobilização da sociedade por meio de um empreendimento singelo mas extraordinariamente aglutinador de vontades. Vontades urgentes: «Queremos melhorar os caminhos e a circulação de água do Jardim Botânico. Queremos criar áreas de lazer, quiosques e esplanadas. Queremos abrir o portão para a Praça da Alegria. Queremos facilitar a circulação das pessoas pelo centro de Lisboa. Queremos Mais Botânico na Cidade».

Alento contagiante. Idêntico fôlego possui o Prof. Fernando Catarino, um querido amigo que também é da corda. Com a expressividade que lhe reconhecemos relata-nos a seguir como vão passar-se as coisas no próximo sábado.

PEDRO FOYOS



ADENDA EM 6 NOVEMBRO 2013

Uma votação retumbante que a todos surpreendeu pela amplitude. Acaba de anunciar-se que o grande vencedor do Orçamento Participativo de Lisboa 2013 foi o projeto "Proteger, Valorizar e Promover o Jardim Botânico da Universidade de Lisboa", proposta apresentada por Ana Ribeiro Santos, Nuno Carvalho e José Pedro Sousa Dias. Num total de 208, esta foi a mais votada pelos cerca de 36 mil cidadãos que participaram na eleição, com 7553 votos. O montante de meio milhão de euros vai possibilitar a urgentíssima recuperação deste Jardim secular, um dos mais belos do mundo. De acordo com o plano divulgado nas últimas semanas, serão criados novos espaços de lazer e aberto o portão que dá acesso pela Praça da Alegria. Entre as iniciativas prioritárias assumem especial relevo a reabilitação dos caminhos e do sistema de rega. O Jardim deverá passar a depender parcialmente de uma captação subterrânea de água, como ocorria há um século. PF



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O INEXTINGUÍVEL "ARBORETUM" SENSUAL
DA PINTORA ISABEL LOBINHO
EXPOSTO EM VILA FRANCA DE XIRA

    Celebração da alegria
    nos paraísos da flora em festa

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Isabel Lobinho perfaz quarenta anos tocando a paleta completa da inventividade pictórica. A banda desenhada, ainda no início dos anos setenta, foi o género que primeiro despontou e perduraria como marca de água de um estilo pioneiro, arrojado e provocatório para a época claustrofóbica de um país terminal, já em vésperas de mudança histórica.
De forma multidisciplinar, Isabel Lobinho conjuga nesse percurso inaugural a banda desenhada e criações publicitárias, paginação editorial e ilustração de livros, merecendo destaque nesta área a colaboração em obras de Maria Alberta Menéres e José Jorge Letria. Memorável, num outro registo (puro repto carnal aos "costumes") foi um livro realizado em 1975 com Mário Henrique Leiria, ícone luciferino da subversão que a revolução reverdeceu. Marcou a nova época de arte livre (ou "libertina" para alguns). Na verdade, tivesse essa publicação aparecido um ano antes e estaria condenada ao apresamento imediato nas livrarias. Essa pulsão plástica obsessivamente erotizada tem identificado o imaginário muito particular de Isabel Lobinho. As suas personagens movem-se com natural elegância num universo onírico de folias sensuais, de cumplicidades íntimas, aflorando uma inocência virginal.
"Alegria", título insubstituível da mais recente exposição, resume e ilumina esse universo radiante. O casting continua sendo predominantemente feminino. Agora, porém, com menor ostensividade erótica, pecados insinuados quase tão-só nos olhos com sabor a mel como os das Graças de Botticelli. A artista envolve-nos nessa explosão da vida, nesse movimento belo de todos os elementos que interagem na mais perfeita comunhão de cores, numa linguagem sublime.
Reencontramos os cenários docemente paradisíacos da flora em festa. A flora sempre omnipresente na arte de Isabel Lobinho. A flora abraçando as figuras humanas, angélicas, fluidas, baléticas, numa reinventada e perpetuada dança de Matisse sob a regência de um outro genial feiticeiro chamado Chagall.
À semelhança de Cosimo, O Barão Trepador de Italo Calvino, as personagens de Isabel Lobinho só vivem felizes num contínuo arboretum, se necessário nas copas das árvores, como preferia o Barão. Essa coreografia floral e florescente, enchendo o espaço de musicalidade, franqueia-nos a genuína alegria. Diante de cada uma destas pinturas pressentimos um certo toque de mágica que faz nascer o desejo quimérico de passar para o lado de lá. Ou de regressar.


© PEDRO FOYOS


EXPOSIÇÃO PATENTE NA GALERIA
DA BIBLIOTECA MUNICIPAL DE VILA FRANCA DE XIRA
(Travessa do Curral, nº 8)
DE 13 JUNHO A 20 JULHO 2013

HORÁRIO:
3ª, 4ª e 6ª feira das 10h00 às 19h00, 5ª feira das 10h00 às 22h00.
Sábado das 10h00 às 13h00 e das 14h00 às 17h30.
Encerra: 2ª feiras, domingos e feriados



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Fernando Catarino

ANTOLOGIA DE FRASES, IDEIAS E CONFIDÊNCIAS
DO CIENTISTA E PROFESSOR EMÉRITO


kim peek


• Gostava de ter nascido agora, mas tive uma sorte espantosa. Apanhei a mudança de paradigma da velha Biologia. Assisti a todo o desmontar do código genético. Quando a Dolly foi clonada, eu dei isso imediatamente em Botânica.

• As minhas memórias mais antigas, ainda antes da escola primária, são de que gostava saber o porquê das coisas mais comezinhas. (...) Quando chego a casa e digo que, afinal, vou para veterinário, a minha irmã desata à gargalhada e fala do nojo que me metia ver o Dr. Durão tirar os vitelos. E era verdade. É então que opto por Biologia.

• Entrei na Faculdade em 1952 e lá conheci a minha mulher. Foi no plano intelectual que nos aproximámos. Começámos a andar mais juntos e o amor aconteceu a seguir. Ela tem nota melhor do que eu na licenciatura. Abre-se um lugar na Faculdade, concorremos os dois e eu ganhei. Tirei-lhe o lugar porque os membros do Conselho Científico acharam que para aquilo era melhor um rapaz. Quando o professor Resende sai dessa reunião encontra-me e diz-me: «Olhe, ficou você, eu propus a moça».

• Ainda por cima, aquela tonta casou comigo. Casou e sacrificou-se. Porque eu fiz o doutoramento, mas ela tem uma carreira muito melhor do que a minha, em termos científicos. Ela trabalhava na planta do cafeeiro.

• Já fui uma centena de vezes àquela zona [Sagres] e gosto de deixar-me perder pelos terrenos. Acabo sempre por encontrar plantas como quem encontra amigos.

• Enterneço-me ao ver o espantoso crescimento do eucalipto selvagem. É uma árvore que bebe muita água? Cabe ao homem não ser ganancioso e não plantar de mais e onde não deve. A culpa não é da planta.

• Sou capaz de fazer uma visita guiada ao Jardim Botânico sem dizer uma palavra acerca das plantas ou da biologia, só pela estética, pelo prazer estético de ver um sistema agradável, que é a função dos jardins e parques, o aspeto estético, espiritual… Em resumo, temos de ter a capacidade de transmitir as nossas ideias, transmitir o gosto pela descoberta.

• Sou muito tolerante na bioética e acho que a bioética não pode de maneira nenhuma travar a investigação. Isto da vida é muito mais sério do que se possa imaginar. Mas é a vida toda, de uma minhoca, de uma flor, de uma folha. Se olharmos para uma folha, somos bestialmente iguais. No fundo, no fundo, está tudo lá, nos genes. Nós somos um bocadinho melhores. Temos um sistema nervoso, uma cabeça maior e convencemo-nos que somos bons. Mas é que somos mesmo.

• À escala da célula, já percebemos como é que calamos um gene. E um gene pode ser importante, por exemplo o da paramiloidose. Através do trabalho de investigação feito no Porto, nasceram os dois bebés filhos de pais portadores de paramiloidose. Escolheram as células que podiam avançar porque não tinham a doença, e temos duas crianças filhas de pais com a paramiloidose. Isto é espantoso.

• Sou do tempo em que era complexo mexer no ovo, nas células, porque aquilo é vivo, depois mata-se. Estão aqui os problemas do aborto. Cada uma destas células é potencialmente um ser vivo. Gostava de ser pró-aborto, mas não sou capaz. Nós somos a nossa cultura.

• O problema é que, por exemplo, de manhã, quando lavo as mãos, deito fora uma grande quantidade de células. Com jeitinho, um bom laboratório pode, a partir das células que lavo da minha mão, fazer um Fernando Catarino novinho em folha.

• Quando andava lá na escola [Leiria] fui crismado. Nessa altura punha-se o problema religioso. Eu era de missa diária. Toda a gente pensava que iria para o seminário. Só que havia uma visão da Igreja um bocadinho beata, muito tradicionalista.

• Fátima nasceu comigo. Aquilo fazia parte da nossa existência. Assisti àqueles fenómenos. Íamos numa charrete, também fui muitas vezes a pé com a minha mãe.

• O Rodrigues era uma pessoa espetacular, que foi apanhado pelo cardeal Cerejeira. O cardeal era brilhante. Tinha pessoas encarregadas de despertar vocações. Tentavam colocar gente no seminário já com uma licenciatura. Muitos amigos meus, dezenas deles, foram para o seminário, todos tocados pelo Rodrigues.

• [Crise Delgado] Nós estávamos ali numa corda bamba. Há um certo momento em que corre um abaixo-assinado e toda a gente assina, a começar pelos quadros da Católica. Os cem primeiros nomes que lá estavam eram todos de gente ligada à JUC [Juventude Universitária Católica]. Aquilo vai à PIDE e de lá segue para o Cerejeira, que chama o Rodrigues e lhe diz para ver os nomes e verificar quem lá está. Tivemos uma reunião dramática. O Rodrigues chorava, afirmava que era uma situação complicada e dizia que quem estivesse com ele podia continuar, quem não estivesse, que saísse. A conclusão daquela reunião foi: meus caros amigos, nós temos de bater a bola mais baixo. E quem não for capaz, está ali a porta. No meio de 25 ou 30 pessoas, há um único tipo que se levanta e vai embora.

• Não fui para padre porque não calhou, mas podia ter ido. Agora já era bispo. Para mal dos meus pecados, tenho fé, mas tive várias fases.

• Com esta questão da eleição do Papa, estava sempre à espera que o Espírito Santo não se enganasse e não pusesse lá o Ratzinger, porque eu queria outro.

• Deus, desde Darwin, tem mais que fazer do que criar cada plantinha.

• O 25 de Abril foi a experiência mais espantosa que tive, mas tenho a sensação de que devia ser mais coerente.

• Devíamos repensar o País todo. Devia-se tornar mais atrativo viver na Covilhã ou em Vila Real. O País está inclinado.

• Não podemos deixar a política só para os políticos porque é uma coisa séria de mais. O cidadão tem de estar sempre a pau, tem de intervir e castigar.

• Os portugueses, dantes, comiam melhor e com menos dinheiro. Por exemplo, retiravam grande parte da proteína das couves. Na minha casa, procuramos comer couves todos os dias, das mais escuras.

• Venho de uma origem rural e habituei-me a considerar normal que, ao plantar uma batata, ao fim de um tempo sai uma batateira e, no tempo certo, saem batatas; o feijão, a germinar; o porco, mandava-se a marrã ao varrasco e ao fim de um certo tempo vinha uma ninhada… Portanto, eu vivi isto, cresci com isto, enquanto os miúdos hoje andam nos ATL’s a ver estas coisas, a minha vida era um ATL! Ainda hoje vivo em ATL.

• A vida deu-me uma grande tolerância. Sou tolerante mas não clemente. Se há uma palavra que não uso, é clemência. Eu não tenho nada que ser clemente.

• A coisa melhor que há no mundo, é rir. Rir de nós mesmos. Sou perfeitamente capaz de rir de mim. E rio-me mesmo. Não me levo muito a sério. Mas sou sério. A vida ensinou-me a não ser arrogante, impositivo, convencido.

• Das coisas que são agradáveis neste estado de aposentado e jubilado, é o tempo. Temos todo o tempo do mundo. Claro que continuo a não ter tempo, porque sou muito solicitado. Mas saber que amanhã às 8h30 não tenho nada de especial para fazer, é uma coisa absolutamente espantosa.


[Compilação de Pedro Foyos]


VISITA GUIADA AO JARDIM BOTÂNICO
pelo Professor Fernando Catarino



                                      Autor: Luís Osório. Realização: Rui Pereira e João Silva
                              AGRADECIMENTO: DIREÇÃO DE ARQUIVOS E DOCUMENTAÇÃO DA RTP


© PEDRO FOYOS


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Não estamos sós
(segundo uma fórmula heraclitiana)

                                                   PARTE II: ADENDA EM MARÇO 2011
                                 EM TORNO DE UMA IMPORTANTE DESCOBERTA PORTUGUESA
                                                   NO ÂMBITO DA BIOLOGIA VEGETAL

Tudo é uma coisa só
Heraclito


O último número da prestigiosa revista Science dedica espaço à descoberta de um facto sobre o qual havia conhecimento mais ou menos empírico por parte de investigadores botânicos. Conforta possuirmos agora conhecimento científico. E reconforta-me particularmente saber que a descoberta fica a dever-se à equipa de investigadores do Instituto Gulbenkian de Ciência liderada pelo Prof. José Feijó.
Eis: O mundo vegetal integra mecanismos sexuais em tudo similares aos do mundo animal. Isto já se sabia. Todavia, acresce agora um rol imenso de pormenores científicos. Assim, moléculas presentes no sistema nervoso e associadas à esclerose múltipla ou à doença de Alzheimer existem também no mecanismo que permite a comunicação entre os gâmetas masculinos das plantas, presentes no pólen, e o pistilo (órgão sexual feminino). Estarão assim abertas as portas para o estudo da conservação dos mesmos mecanismos celulares em plantas e em animais, como o homem. A equipa do Prof. José Feijó explica ter descoberto que a polinização nas plantas envolve canais e moléculas que também participam nos processos de comunicação entre células do sistema nervoso central de animais.
Além de estarem envolvidas na memória e na aprendizagem, os investigadores já tinham associado estas estruturas a diferentes doenças neurodegenerativas.


                                         Anatomia da reprodução sexual da Arabidopsis
                                                        (Cortesia do Prof. José Feijó)


Com base na revisão recente do trabalho que me facultou o Prof. José Feijó fica a saber-se que o estudo das moléculas foi feito através da observação genética, farmacológica e eletrofisiológica da planta do tabaco e da Arabidopsis, uma planta da família da mostarda. «Os nossos resultados – adianta o biólogo – que identificaram genes análogos nos processos de crescimento de plantas e animais, indicam como a evolução reutiliza mecanismos eficazes uma e outra vez.»

Transcrevo estas palavras e a memória reverte vivamente para uma página (exatamente a 57 da 3ª edição) do meu romance Botânica das Lágrimas, escrito em 2009. A personagem Professor Brotero dirige-se a um grupo de estudantes que vai conduzir numa visita de estudo ao Jardim Botânico da Sétima Colina. Desenvolve reflexões prévias sobre o tema da Biologia:

«(…) é uma atividade [a Biologia] de tal forma compensadora que muitos cientistas são ou se tornam pessoas materialmente desprendidas, despretensiosas. Isso deve-se ao facto de o biólogo conseguir ver coisas que mais ninguém vê. "Tudo é uma coisa só" – já afirmava há dois mil e quinhentos anos o genial Heraclito, primeiro filósofo a compreender verdadeiramente que todos-todos, animais e vegetais, advimos da mesma "célula primordial" – o plano único [citado antes] –, com variações menos significativas do que poderá parecer à primeira vista.»

A narrativa é a todo o instante disturbada com fragmentos em itálico que exprimem o pensamento do muito jovem protagonista – o General Leo, sete anos e meio, «quase oito». Ele medita, neste passo: «A vida é só uma». Guardará na memória estas palavras que transmitirá à mãe, como se fosse um professor:

«Mãezinha, acredita: a vida é só uma e nós dois somos uma coisa só. Mais o paizinho, e a [irmã] Flor, e os avós e todas as plantas q’estão na marquise.»

«A vida é só uma, tudo é uma coisa só» – o velho Heraclito bem sabia o que dizia e melhor dizia o que sabia.


© PEDRO FOYOS

Nota:
A Primeira Parte desta crónica, escrita em 2010 e igualmente inspirada em Heraclito, encontra-se um pouco atrás nesta secção.




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O mistério
das distâncias

                                        UMA VIAGEM ALICIANTE AOS MUNDOS INVISÍVEIS
                                                             COM GIL MONTALVERNE


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                                                                                               © GIL MONTALVERNE

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                                                                                                                    © GIL MONTALVERNE

A Natureza tem sido para ele, desde sempre, um apelo. Com uma singular paixão, a par de um virtuosismo executivo que lhe conferiu um curriculum internacional invulgarmente extenso e prestigioso no panorama da fotografia portuguesa, Gil Montalverne tem passado a vida a tentar reduzir, fotograficamente, distâncias. Sabe-se: a Natureza é o mais difícil exercício fotográfico. Os modelos são irrequietos e longínquos. Para lá da objetiva é sempre imensa, por vezes intransponível, a distância a que está o inseto, o réptil, o pássaro, e, mais ainda, o coroláceo reduto de uma flor. Incansável, pertinaz como os fotógrafos paparazzi que fazem longas vigílias à espera da “estrela” apetecida, do mesmo modo Gil Montalverne espia pacientemente a “exúvia” (nome que se dá ao tegumento) de onde há de sair (não se sabe a que hora, mas sairá!, quando eclodir o estado de crisálida), uma bela borboleta Papilio Machaon... Assim perscruta as obras da Natureza, capta-as, os répteis e os insetos em poses de espanto pela descortês intromissão. Em plantas obscuras vai descobrir resplandecentes arquiteturas de cores, de formas.

A utilização de equipamentos técnicos mais ou menos complexos tem especial importância neste género de trabalhos fotográficos. Todavia, por um imperativo irresistível, Gil Montalverne resolveu transpor as fronteiras convencionais da fotografia naturalista (a alta qualidade do material ótico fotográfico é, em geral, a ambição limite), e não cessa de empreender novas experiências na aventura interminável das imagens e das distâncias.

Recorrendo ao microscópio, porque já se lhe esgota, nas objetivas, a capacidade de alcance, Gil Montalverne investiga os microcristais: frágeis partículas naturais que a química cria e recria, inventa e reinventa em ciclos infinitos no espaço de uma lamela. O fotógrafo cada vez mais próximo, mais-mais. A distância cada vez mais curta, mais-mais. Cada vez mais. É um jogo sem fim: ao microscópio artesanal poderá suceder um outro sofisticado, capaz de fazer variar independentemente, ou em conjunto, as suas frequências de interferência; a seguir um outro eletrónico de transmissão tipo scanning. E depois? Quantas máquinas mais precisamos inventar para prosseguirmos a viagem pelo microespaço? Cedo se conclui com exasperação que sozinhos, sem as máquinas, não conseguiremos ver e registar as novas cores desses mundos. Apetece dizer, como Richard Avedon: «A máquina fotográfica é um estorvo. Se eu pudesse fazer o que quero com os olhos apenas, seria feliz.»

Com os olhos apenas! A realidade, porém, é muito diferente do sonho de Avedon. Os nossos olhos têm acesso, unicamente, a uma pequeníssima parte do espetro eletromagnético ao qual damos o vulgar nome de luz. As duas extremidades do espetro são para nós invisíveis: numa encontramos a luz ultravioleta, os raios X, os raios gamma e os raios cósmicos; na outra, os infravermelhos, as micro-ondas e as ondas produzidas pela geração de energia elétrica.

Vale-nos, em parte, a fotografia. E os telescópios. E os microscópios... As mais colossais objetivas fotográficas permitem, tão-só, alargar numa ínfima parte o acesso visual ao infinitamente grande e ao infinitamente pequeno. Os mais potentes telescópios e microscópios revelam-nos uma secção restrita do universo. De um lado, planetas, estrelas, galáxias; do outro, a vida microscópica, o imenso submundo do nosso pequeno mundo visível. Em ambos os sentidos persistem ocultos outros mundos que continuamos a perseguir.

Neste mistério das distâncias, a Fotografia é, apesar das limitações conhecidas, a única linguagem possível. Como transmitir, de outro modo — e regressamos aos microcristais de Montalverne — toda a irradiação cromática, de reflexos, de transparências, deste geometrismo fantástico que rompe, por um instante, a escuridão e se deixa capturar perenemente?

Mais tarde, Gil Montalverne virá dizer-nos, com mágica simplicidade, como se descrevesse um número de ilusionismo acabado de inventar: «...isto é uma partícula de cloridrato de fenilmetilaminopropanolio» (a que extremo vai a obsessão humana de nomear as coisas!).

Ficamos no deslumbramento daqueles coloridos vibrantes que nos chegam de um outro mundo, na pura visualidade de um país das maravilhas em dia de festa e que cabe, com guarda-roupa completo, numa cabeça de alfinete.

Por agora, a viagem acaba aqui.


© PEDRO FOYOS

parag Imagens de abertura cedidas ao Autor por Gil Montalverne.



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O fabuloso desígnio
dos super-sapiens cabeçudos


kim peek

REFLEXÕES A PROPÓSITO DA MORTE DO VERDADEIRO "RAIN MAN".
NUM DIA FUTURO DISPENSAREMOS O GOOGLE POR DESNECESSÁRIO.
CADA SER HUMANO INTEGRARÁ NO CÉREBRO TODA A INFORMAÇÃO DO GOOGLE
ACRESCIDA DAS PRINCIPAIS ENCICLOPÉDIAS MUNDIAIS.
MAS ESSE DIA ESTÁ AINDA UM BOCADINHO LONGE. OU TALVEZ NÃO.

Passou despercebida a morte recente de Kim Peek, o homem que no filme Rain Man inspirou a personagem principal, o inesquecível Raymon Babbit. Esta obra memorável de Barry Levinson, estreada em 1988, viria a ganhar quatro Óscares, incluindo o de melhor ator, Dustin Hoffman).

Man ray
E, no entanto, poucos seres humanos terão concitado, durante a segunda parte do século XX, um tão grande interesse por parte da comunidade científica internacional. Kim Peek sofria desde o nascimento de uma singular enfermidade do espetro autista, deficiência associada à síndrome de Savant. Os "savants", como são denominados, não somam mais de dez por cento dos pacientes autistas, mas Kim Peek era especialíssimo, um "mega-savant" (apenas uma ou duas ocorrências, documentadas, por século). A sua capacidade de memorização era inacreditável, tanto que cientistas do mundo inteiro viajaram para os EUA porque descriam dos relatos difundidos pelas publicações médicas. De facto, Kim Peek retinha toda a informação que lia ou ouvia. Em contrapartida, deparava com dificuldades invencíveis para realizar os mais singelos atos quotidianos, como vestir-se ou calçar-se.

Era o pai, Fran Peek (autor de um livro sobre o filho), quem tinha de o acompanhar para todo o lado, ajudando-o nas inúmeras e triviais tarefas diárias, ao longo de 58 anos de vida.

kim com pai

É longo, nesse livro e em revistas científicas, o repositório de "façanhas" de Kim Peek. Ingressa-se no género "a realidade ultrapassa a ficção". Tentemos uma síntese: com dois anos, Kim já conseguia ler e memorizava largos trechos dos livros; com 16 memorizou toda a obra de Shakespeare; em 2006, com 55 anos, Kim Peek sabia de cor 7 500 livros, entre os quais a Bíblia e volumosas enciclopédias. Depois disso foram enumerados 12 mil livros memorizados; todavia, por testemunho científico, o cômputo validado correspondeu apenas aos referidos 7 500.

A síndrome de Savant pode ser congénita ou adquirida após um dano cerebral. Característica recorrente nos "savants" é a de apresentarem, em termos volumétricos, grandes cabeças. Alguns cientistas observam cautelosamente nem sempre ser correta a sinonímia grande cabeça = grande cérebro = grande inteligência, embora, no caso de Kim Peek, lhe tivesse sido reconhecida uma inteligência mediana ou mesmo acima da média.

Interessante coincidência, sem relação direta com Kim Peek: seis dias depois da sua morte, o diário Público preenchia mais de metade da primeira página com uma chamada para a entrevista de Ana Gerschenfeld, publicada no interior, com o paleontólogo francês Yves Coppens. Título: "Vamos tornar-nos cada vez mais cabeçudos". À pergunta "Como vamos evoluir?", Coppens responde:

«Vamos transformar-nos noutra coisa. Não em mil ou dois mil anos, mas mais para a frente: vejo um desenvolvimento do encéfalo, do cérebro, que vai tornar-se mais complexo, mais denso, mais rico em neurónios, com mais sinapses, mais volumoso também – o que quer dizer: partos mais problemáticos. Mas isso pode resolver-se naturalmente com uma redução do tempo de gestação, dando ao crânio da criança a possibilidade de crescer tranquilamente fora da barriga da mãe.»

Sorri. O escritor e cientista Carl Sagan é um dos meus dilectos. Morreu prematuramente, deixando uma obra magistral que gosto de revisitar.


Carl Sagan

Em Os Dragões do Éden Sagan apresenta ao leitor uma série de factos a partir dos quais desenvolve teorias cristalinas. Há cem mil anos, o cérebro humano já era um problema para as parturientes. Continua a sê-lo, cada vez mais, a ponto de violentar a própria biologia matricial. Somos únicos, irrepetíveis, acidentais. «O parto», nota Sagan, «só é doloroso para uma espécie de entre milhões existentes na Terra: os seres humanos. (...) consequência do contínuo aumento do volume craniano.»

Coppens, na entrevista ao Público, tem razão ao vaticinar um futuro de super-sapiens cabeçudos: «Em vez de termos 1 500 centímetros cúbicos de volume craniano, o que não é nada, vamos ter 5 000 centímetros cúbicos.»

Curiosa a expressão «não é nada». Este é o momento de chamarmos ao palco um dos maiores estudiosos mundiais do cérebro humano, o lendário biólogo evolucionista John Eccles (Prémio Nobel de Medicina, 1961) que confirma: os Neandertalienses, há cem mil anos, tinham cérebros praticamente tão grandes como os nossos.


cerebros comparativos


Esta gravura, do próprio Eccles, mostra quatro crânios fósseis vistos de perfil, sendo que os dois superiores (a) e (b) são modernos e os inferiores (c) e (d) representam o Homem de Neandertal. As diferenças são mínimas, sendo manifesto, contudo, que os crânios anatomicamente modernos descrevem uma caixa cerebral mais alta e mais redonda. Significará isso que nos distinguiremos dos Neandertalenses tão-só por um punhado de centímetros cúbicos acrescidos ao cérebro? Claro que não. Porque a evolução agrega não só a volumetria e a forma mas também e sobretudo a complexidade. A uma velocidade cada vez maior. Mais cérebro, mais complexidade, mais velocidade. O nosso ritmo evolutivo é incomparavelmente superior ao percurso temporal que o Homo habilis fez para chegar a sapiens. Yves Coppens exemplifica com bom humor: «Apenas um bocadinho de cérebro a mais e sobe-se logo para o nível acima. Acontece como nos impostos: basta ganhar mais uns cêntimos para passar para o escalão superior e pagar três vezes mais...». Ou seja, não teremos de esperar cem mil anos para obter o acréscimo de "cubicagem" que nos separa dos Neandertalenses.

Mas... Que papel desempenha Kim Peek na grinalda destes acontecimentos fantásticos? Inspirar-me-ei no estilo de Coppens para o exemplo seguinte, imaginando que o cérebro de Kim seria um supercomputador construído por nós próprios. Fomos escrupulosos e sábios em todo o processo de fabrico, equipámo-lo com um incomensurável espaço de memória, deveras inusual, porém cometemos a inadvertência de fazer todo esse trabalho na parca estrutura de um computador doméstico. O resultado imediato, tão logo o pusemos a funcionar, foi quase crashar. Mas aguentou-se, espantosamente. E armazenou a diluviana informação que sobre ele jorrámos. Infelizmente não foi possível evitar alguns danos colaterais. A todo o momento lhe detetamos deficiências de operacionalidade no sistema motor. Quando empreendermos a construção de um novo computador tentaremos suprir esse erro de desproporção física, procedimento jamais exequível em relação ao cérebro de Kim Peek.

A Ciência vangloriou-se com esta prova real do potencial inimaginável do cérebro humano, mas Kim Peek saiu derrotado. Era um cabeçudo com vida tropeçuda: olhares e gestos enviesados, passos instáveis, palavras entarameladas. De nada valerá sabermos de cor toda a informação contida no Google e conseguirmos papaguear página a página as principais enciclopédias mundiais se, ato contínuo, tivermos de pedir a alguém o favor de nos meter o sapato no pé (Kim Peek, relembro, jamais conseguiu vestir-se e calçar-se sozinho).

Lamento agora ter de encerrar com más notícias. O género Homo não existirá na Terra daqui a centenas de milhares de anos. Muito antes de alcançar os 5 000 centímetros cúbicos de volume cerebral, como pretende Coppens, este planeta, exangue, devastado, ter-se-á rendido. Estaria preparado, vá lá, para continuar a acolher o Homo erectus, esse pacóvio que se fica pelos mil e picos centímetros cúbicos cranianos (mas que é já um senhor doutor ao lado do pre-hominídeo Australopithecus africanus, iniciador do processo de hominização com uns ridículos 450 centímetros cúbicos). Mas o tempo foi correndo, não cessou o desenvolvimento da capacidade craniana, até ao dia em que um centímetro cúbico transbordou e o Imperador Cabeçudo começou a escangalhar a Criação.

No entanto, é possível que tal não signifique a extinção dos super-sapiens-cabeçudos. Ao alcançarem o apogeu evolutivo dos dois ou três mil centímetros cúbicos de cachimónia cerebral estarão aptos a migrar para as estrelas. Terão muito por onde escolher: cem mil milhões de destinos na nossa galáxia, entre cem mil milhões de outras galáxias.

Mas ai, coitadas das estrelas.


© PEDRO FOYOS


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Em louvor das mulheres portuguesas
que "fazem ciência" às escondidas do País


Sim, tenho várias famílias ideológicas. Com dificuldade as ordenaria segundo uma escala de importância na minha vida, mas, tendo de o fazer, não duvido que as Ciências da Natureza ocupariam um lugar preponderante.

Os acasos do descaso cedo me levaram para o jornalismo, contrariando sonhos adolescentes de ser biólogo. Por fortuna obtive mais tarde um bom acolhimento por parte de notabilíssimos académicos que me reconhecem na qualidade de "amante da causa", permitindo que o prego não-académico que sou se mantenha à tona de água e participe e conviva como membro da comunidade. Vejo-me aldeão deslumbrado e grato na grande cidade dos sábios.

A data de 24 de Novembro (nascimento de Rómulo de Carvalho / António Gedeão, o cientista e o poeta em dupla identidade numa só pessoa) está sempre vivamente anotada na minha agenda. Hoje, portanto. Dia Nacional da Cultura Científica. Desta vez a grei da investigação científica vive moderadamente expectante dos resultados de um acontecimento julgado relevante. Durão Barroso acaba de apresentar em Bruxelas o esperado Manifesto da Criatividade e da Inovação que integra entre os seus enunciados o de aumentar a capacidade e qualidade da investigação científica. Isto possibilitará, dizem-me os mais confiantes, que cientistas portugueses acedam com maior facilidade às redes europeias de excelência. Numa palavra, poderão "fazer ciência", melhor investigar – caminho tão escarpado em Portugal por motivo dos parcos financiamentos.

Pouca gente imaginará o número surpreendente de cientistas portugueses que estão a "fazer ciência" no estrangeiro. Homens e mulheres. Estas, contudo, encontram-se em crónica desvantagem na lusa perceção de tal realidade. Perturba saber, como foi demonstrado há um ano, que o simples conceito de investigação científica desempenhada por mulheres é estranho a uma parcela apreciável da população portuguesa. Já se aceita, enfim, que uma mulher conduza um táxi, até um autocarro, mas... conduzir um foguetão..., ou seja, essa coisa do outro mundo chamada ciência... Ciência a sério?... Alto lá!

Regredimos ao século XIX, à pré-história de Madame Curie. Que desgraça.

A verdade é que as mulheres cientistas portuguesas são milhares, dentro e fora do País, não raro chefiam grandes equipas e os seus nomes surgem nas publicações internacionais da especialidade assinando artigos de referência. A nossa comunicação social, no afogadilho dos mil e um casos sensacionais de cada dia, de cada hora, da última hora e da hora que há de vir, esporadicamente pica o ponto quando um cientista português é distinguido. Por razão obscura, inexplicável (porquanto, na atualidade, em geral o sexo feminino predomina em muitas redações), afigura-se-me que, tratando-se de uma mulher, nem um sucinto eco se ouve ou lê. Gostaria de estar enganado mas é fácil observar que, com uma ou outra exceção, o País ignora as suas concidadãs cientistas. De bom grado citaria uma ou duas dezenas, porém hoje destacarei Mónica Bettencourt-Dias. Alguém sabe quem é? Pois bem: Mónica recebeu uma espécie de "prémio nobel" da ciência europeia (o Eppendorf, abrangendo cientistas com menos de 35 anos) – atribuído pelas suas investigações na área da biomedicina, desenvolvidas sobretudo em Londres e Cambridge. Depois, a Organização Europeia de Biologia Molecular reconheceu-a merecedora de um financiamento de cinquenta mil euros em apoio ao seu trabalho. Falta dizer que, para além da candidatura de Mónica existia mais de uma centena e apenas dezassete foram selecionadas. Uma única coisa falhou: o futebolista Cristiano Ronaldo jamais pronunciou o nome de Mónica nas proximidades de um microfone. Isso bastaria para que Portugal a ovacionasse e considerasse exíguo o "prémio" de cinquenta mil euros, porque, que raio!, então uma mulher daquelas não merecia cinquenta milhões?!

De entre a infinidade de dias mundiais, internacionais, nacionais – nenhum contempla a mulher cientista. Sou avesso a esse género de celebrações classistas e sexistas, mas, por uma vez, aplaudiria a instituição em Portugal de um temporário Dia Nacional da Mulher Cientista. Pelo menos nesse dia a população aperceber-se-ia de que habitam dentro e fora do País milhares de concidadãs admiráveis cuja existência nem sequer é pressentida. E já sabemos que não podemos contar com o futebolista Ronaldo.


© PEDRO FOYOS


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Saudades de um certo Frankenstein
abandalhado, geneticamente português !

 

nao estamos

                    Foto laboratorial de Pedro Foyos

Passou meio século, ou quase. Um dia, nesses anos 60, a curiosidade jornalística conduziu-me aos meandros de um Laboratório (sim, com maiúscula, como devem ser designados os lugares mágicos). Um Laboratório de Biologia. Confesso que a visita de estreia me desapontou um bocado. Com penetrante sagacidade, a par da intensa experiência de vida dos meus vinte e poucos anos, logo vislumbrei um mistério que se ocultava horizontalmente sob uma diáfana cobertura branca, lá ao fundo. Bem entendi: era naquele desvão secreto que estaria a ser engendrada uma criatura similar à do Doutor Frankenstein, mas imaginava-a com o aspeto decadente, abandalhado, que ao tempo exibiam os bordeleiros do Bairro Alto (um "Frankenstein" geneticamente português!, não sei se me faço entender). Todavia, de cada vez que tentava um passo na direção do monstro, antesaboreando uma sensacional "cacha" jornalística, os meus dois cicerones intercetavam-me, curto e grosso: «Por aqui, por aqui» – apontando a fileira de microscópios em cujas plaquetas me aguardavam, no oposto extremo biológico, outros fadistas, estes liliputianos, translúcidos, parecendo bracejarem como náufragos de uma eternidade aquosa, silenciosa.  

O Laboratório é a oficina da Ciência. Nesse santuário assético de milagres explicáveis e de mistérios em trânsito tudo pode acontecer: os êxitos, os desaires, as refregas. A procura é por via de regra mais atrativa que a descoberta. Porque a descoberta representa o fim de um curso maravilhoso, laborioso, desassossegadamente incerto, desaguando no sossegado estuário da certeza. Grita-se Eureka! uma vez, nos dias seguintes não há grito nem ânsia. Cessa o efeito hipnótico da espera, o êxtase do ensaio, a fervilhante "neurose" que levada ao extremo fixou no universo cinematográfico e literário a figura portentosa do "cientista louco".

Ah, a falta que faz um "cientista louco" que recrie para mim, só para mim, por um minuto, só por um minuto, aquele Frankenstein que o velho quimérico em que me tornei pressentiu há 50 anos no desvão secreto do Laboratório Prodigioso da Ciência – um Frankenstein abandalhado, geneticamente português! 


© PEDRO FOYOS

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Viagem pelo interior
da cabeça de uma formiga


cabeca formiga


Seduzem-me as revistas científicas. Incluo na classificação genérica as Ciências da Natureza, temática que abraça atualmente na Europa e nos EUA uma boa dezena de publicações admiráveis que em muito transcendem o âmbito restrito do academismo e se dirigem também, sem excessivas concessões de tipo magazinesco, aos amantes curiosos. O prazer do conhecimento. O prazer inocente e simples dos simples que se alegram avulso com os salpicos do rio fundo por onde corre a sapiência.
E cometo três ou quatro vezes por ano o supremo requinte de percorrer quase cinquenta quilómetros para confiar essas revistas ao meu bom amigo Pedro Sousa, artista ímpar na arte da encadernação, saindo as mesmas, mais tarde, com uniformes pomposos e a respeitabilidade de lombadas dignas de se aprumarem nas estantes.
Não posso deixar de assinalar a edição portuguesa da National Geographic, sem dúvida uma das revistas de maior qualidade do País, em circulação desde Abril de 2001 e que na minha biblioteca já ultrapassa a trintena de volumes. Outra das prediletas, malgrado o grafismo um tanto austero, é a britânica e centenária Nature, cujo último número me arrastou para os devaneios filosóficos que adiante partilharei convosco. Em destaque, as contínuas descobertas permitidas pelos prodigiosos microscópios eletrónicos em incessante evolução há três décadas.
O tema do infinitamente pequeno (a par do infinitamente grande) é recorrente nestas revistas. Deslumbrantes, de puro assombro, os textos e as fotos sobre os universos que se revelam nos polos micro / macro do infinito, sendo que o conceito de infinito é tão indefinível que permitiu a António Gedeão descrevê-lo, num poema, como «essa incomensurável distância de meio metro que vai do meu cérebro aos dedos com que escrevo.»

No que respeita ao mundo microscópico, os novos desafios consistem, se bem interpretei, em aprofundar a exploração da estrutura interna dos organismos, o que se faz há muito tempo, porém agora numa dimensão visual tão infinitamente pequena que permitirá descobrir «novos universos dentro do micro universo.» Alucinante. O micróbio que sem inibição e de boa-fé posava para a fotografia, porque exibia tão-só a roupagem exterior, encobrindo com justificado pudor o que estava por debaixo, agora é tramado por um sôfrego voyeurismo eletrónico que não olha a meios para atingir as tripas.

«Todo o enigma da vida», escreveu Teixeira de Pascoaes, «está fechado na cabeça de uma formiga.»
Pascoais gostaria de saber que já podemos viajar pelo interior da cabeça de uma formiga. Interrogar-nos-ia:
– E o enigma, desvendaram?
Seríamos forçados a um trejeito negativo, de desalento, como o farão talvez os nossos sucessores do próximo milénio, dos próximos milénios.
– E o enigma, desvendaram?
– Não – responde com amargura Edgar Morin, o meu filósofo. – O segredo está em nós, mas ignoramo-lo e ele é incompreensível. É o mistério do mistério. Continuamos cercados por esse mistério.  

Fecho a revista Nature e por um instante parece-me dramático, inglório, inútil, podermos viajar pelo interior da cabeça de uma formiga. Em qualquer lugar, seja desbravando telescopicamente os recônditos de uma estrela longínqua, seja viajando microscopicamente pelo interior da cabeça de uma formiga, o mistério cerca-nos. Sempre saímos como entrámos: sem entender nada.

© PEDRO FOYOS

Imagem de abertura: cabeça de uma formiga fotografada por David Scharf
por meio de microscópio eletrónico
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Não estamos sós
(segundo uma fórmula heraclitiana)

 

nao estamos


Tudo é uma coisa só
Heraclito


A epígrafe é velha e revelha de milénios, anterior quinhentos anos ao início da era cristã. No entanto, será a mais intemporal das fórmulas filosóficas, tão moderna hoje como daqui a mil anos. Releia-se a frase do grande filósofo sofista. É genialmente simples e óbvia. Ninguém disse tanto em tão poucas palavras. Todavia, à semelhança de muitas outras observações de Heraclito, foi ele o primeiro a iluminar o que para todos era visível, o que estava à vista de todos mas... ninguém tinha ainda visto. Como o conceito do «tudo flui» – exemplificado com outra citação histórica: «Ninguém se banha duas vezes na água do mesmo rio.»
Na continuação deste texto verificar-se-á que a invocação de Heraclito faz sentido.
Eis: uma experiência extraordinária decorre há anos na Faculdade de Medicina da Universidade de Nova Iorque. Uma equipa de cientistas liderada pelo microbiólogo Martin Blaser elegeu como objeto de exploração a "vida invisível" na epiderme humana. Não a totalidade da epiderme mas tão-só uma área restrita a escassos centímetros do antebraço de um ser humano saudável. O primeiro estudo, em 2005, permitiu identificar cerca de 50 espécies de organismos diferentes. Entusiasmados, os cientistas solicitaram então mais apoios tecnológicos, no convencimento de ser possível aumentar o censo da população de bactérias e de ácaros hospedados nas nossas impolutas epidermes. Foi assim que, no início de 2007, dispondo a equipa de renovados equipamentos eletrónicos, a par de avançadíssimos métodos moleculares, se encontraram 247 espécies de bactérias, 44 das quais desconhecidas. Algumas destas, presume-se, não fazem da pele a sua residência permanente, estão apenas de passagem, espairecendo por breves temporadas: pura fruição de mudança de ares.
A exploração está longe de poder considerar-se terminada – anuncia a revista norte-americana Proceedings of the National Academy of Sciences. A mesma equipa estreará proximamente equipamentos mais sofisticados que revelarão, com elevado grau de certeza, novos e desconhecidos seres que se passeiam à superfície dos nossos corpos.
O lema memorável da ficção científica Não estamos sós continua adiado no respeitante aos planetas de longes-longes mistérios. Inútil perscrutar as estrelas. A nave espacial exploradora do infinitamente grande inverte a direção para o infinitamente pequeno:nós próprios. Sabemos agora que transportamos uma Gorongosa liliputiana. Não vemos (pelo menos a olho nu) os alienígenas domiciliados na nossa epiderme, que são, estes sim, bem reais, ao contrário dos outros, os entediantes extraterrestres da nossa eterna espera.

Tudo é uma coisa só. Tudo flui, disse Heraclito. Dois mil e quinhentos anos depois, Feyerabend resigna-se a dizer o mesmo, mas em inglês: «Everything goes», ou seja: tudo possui a sua função numa organicidade global.
A equipa de Martin Blaser descobrirá amanhã a última criatura microscópica, mais microscópica do que todas as anteriores. Mas será mesmo a última? Talvez seja a primeira de um novo ciclo de sombras. Ou de luz. Não sabemos. Onde e como acaba a confusão e começa a fusão?
Quantas vidas contém a vida? Quantas vezes se morre? 

Vi há tempos uma imagem, criada por microscópio eletrónico, de um grânulo de pólen ampliado três mil vezes. Impressionou-me, para além do prodígio, a espantosa semelhança desse grânulo com as conhecidas imagens do planeta Terra visto do espaço. Diverti-me a imaginar um habitante de uma estrela incógnita observando o planeta Terra ampliado três mil vezes e impressionando-se com a espantosa semelhança desse planeta com um grânulo de pólen. Não ampliado.

© PEDRO FOYOS

Imagem de abertura: à esquerda, um grânulo de pólen, e, à direita, o planeta Terra. Ou o contrário?

 




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Paisagens de morrer
(alegoricamente)

 

A ultima edição de um semanário inclui um interessante desdobrável, "Mapa do Ar Livre", que encerra com a meticulosa secção Os 10 melhores espaços ao ar livre para...
Uma centena de sugestões tão diversas como o local ideal para andar de bicicleta, ou namorar, ou fazer um piquenique. Atraiu-me em especial um rol de sítios sob o título Paisagens de morrer.
Mas entristeci-me. De entre os muitos «locais que nunca mais vai esquecer» omite-se um deveras inesquecível e que não me canso de propagandear quando o tema de conversa é o Portugal paisagístico. Pois bem: deixem que vos conduza à Beira Alta. Panorama de incomparável beleza – afiança este nativo das Sete Colinas – é o que se desfruta do alto da Senhora do Castelo, em Mangualde. Alcançando o enorme rochedo cimeiro, adaptado a miradouro, mesmo ao lado da igreja, sentimo-nos no centro do mundo, da vida, em equilíbrio numa fenda da eternidade, entre o passado e o futuro. O horizonte dissipa-se num anel infindo, estonteante, de 360 graus (e mais graus houvessem!).
A título de serviço público, eis algumas recomendações: podendo optar-se pelo momento da visita, a fase tardia do pôr-do-sol vale pelas Sete Maravilhas em pacote por inteiro. O espetáculo dura meia hora mas o "grand finale" dos últimos dez minutos é arrebatador. Deve permanecer-se em silêncio. Nesse silêncio eu me descobri algumas vezes inquieto, emocionado, imaginando Viriato, que tanto calcorreou aquelas veredas, ali estático e deslumbrado. Também em silêncio ele terá imaginado que muito antes, há centenas de milhares de anos, outros seres humanos, já suficientemente complexos para se maravilharem, ali se maravilharam. Mais me emociono imaginando que daqui a mil anos (se existir ainda este planeta), novas testemunhas existenciais, ascendentes ou mutantes do género Homo, pisarão aquele penhasco e ali se deslumbrarão.
Compreendo o título Paisagens de morrer. Pode morrer-se de deslumbramento. («Um bom dia para morrer» – título formidável de um romance de Simon Kernick).

O espetáculo é levado à cena diariamente, sem folgas. O encenador, pontual, inspirado, introduz ligeiras variantes nas combinações cromáticas, porém sempre escrupuloso no que respeita ao ritmo, formato artístico e, sobretudo, estética dramática. Como Penélope, tece e destece a obra continuamente.
É-lhe indiferente ter ou não a presença de espetadores. Na realidade, ele é o único e eterno espetador. Nós somos parte do espetáculo, figurantes, como as nuvens, as rochas, as árvores da Senhora do Castelo, imensamente abaixo do ator principal, que vai transfigurando-se do amarelo ofuscante ao vermelho-sangue luminoso enquanto sai de cena pela linha do horizonte.
São os gloriosos minutos finais.
Nesse fragmento de tempo, o descrente que sou, vacila.
Logo a seguir cai o pano.
E recupero o sossego dos espelhos de água.

© PEDRO FOYOS

 

Paisagens de morrer
(literalmente)

 

«Os extremos tocam-se» – escreve um leitor a propósito da minha alegoria sobre as paisagens de morrer. Morrer de deslumbramento, admitia eu, evocando o esmagador espetáculo de um pôr-do-sol contemplado do alto da Senhora do Castelo, em Mangualde. Morrer de horror, replica o meu interlocutor, perante a paisagem inimaginável cuja foto me envia e se reproduz a seguir.

MONTANHA

 
Mas que é isto?! Valha-me a Senhora do Castelo! Ao princípio quis acreditar tratar-se de uma brincadeira do género "photoshop" ou programa similar. Mas não, é bem real. Uma realidade que atinge a dimensão do mais incomensurável dos absurdos. Eis: Uma «autoridade superior» no sul da China mandou pintar de verde a encosta de uma montanha, tentando desse modo simular o reflorestamento da área extirpada por uma pedreira.
A agência espanhola EFE conta a história em pormenor, reportando-se a jornais e revistas de Hong Kong e Pequim. Os habitantes da aprazível região de Fumin protestaram durante sete anos contra a instalação da pedreira que lhes infernizou as existências com pó e barulho. Assistiram impotentes e de coração apertado à destruição de centenas de árvores que viviam em paz na vizinha montanha Laoshou, a qual ia aparecendo a cada dia mais escalavrada. Por fim, os protestos foram ouvidos e a pedreira desativada. Mas os habitantes, inconformados com a montanha esventrada, formaram um grupo de idosos que se dirigiu a uma entidade governamental denominada Escritório de Agricultura e Florestas. Pediram o reflorestamento da encosta devastada. Entra em cena, nesse passo, a "autoridade superior", comunicando aos idosos já ter ponderado uma melhor solução, pois plantar árvores é coisa que dá um trabalhão dos diabos (não sei como dizer isto em chinês), acrescendo que teriam de ser exemplares imberbes. Logo, eles, os velhos, jamais iriam poder contemplar árvores a sério na montanha. Anuncia, então, a opção pelo que estaria preceituado no Feng Shui – crença milenar que trata da influência vibracional do ambiente e do espaço sobre a saúde e a prosperidade das pessoas.
E foi assim que, sob o influxo espartano de uma eventual fórmula do Feng Shui, chegou a ordem: pintar, pintar, pintar.
Camiões-cisterna a transbordarem de tinta verde avançaram para Fumin, e os funcionários do Escritório de Agricultura e Florestas pintaram a montanha em 45 dias de trabalho.
Depois disso, não duvido, os habitantes vibram desde que o Sol nasce.

Nada tenho contra o Feng Shui, todavia receio que venha a revelar-se insensata a divulgação desta notícia em Portugal. Inquieta-me um pressagiado cenário de patos-bravos que resolvam adaptar ao luso-criativo-desenrascanço os preceitos do Feng Shui. Já vejo, por exemplo, inspirados exterminadores de sobreiros a semearem a paisagem de outdoors com silhuetas mais ou menos arbóreas. O Feng Shui em Portugal poderá converter-se na musa multidisciplinar de toda a sorte de velhacos fingimentos, astutas simulações, renovados ardis em nome da saúde e prosperidade das pessoas. Um "faz-de-conta" fundado na milenar sabedoria chinesa, porém mais despachado: «Quê?! 45 dias para pintar um bocado de montanha? Que atraso de vida, devem tê-la pintado a pincel de aguarela!»  

Ainda há dias Galopim de Carvalho barafustava no Diário de Notícias contra o desleixo que persiste em relação aos achados arqueológicos. Andou longos meses a quezilar com as "autoridades superiores" por causa das pegadas de dinossauros na Pedreira do Galinha. Vá lá, saiu vitorioso (fui um dos que ao tempo o levou em ombros). Mas ai!, caro Professor: sem querer ser profeta da desgraça, dir-lhe-ei que as coisas, amanhã, poderão ser diferentes. Projeta-se uma estação de serviço que soterrará para sempre umas pegadas do tigre-de-dentes-de-sabre? Não há problema, dir-lhe-ão os devotos tugas do Feng Shui. Alguém se incumbirá da tarefa de imprimir no solo umas formosas e vibrantes pegadas, muito parecidas com as reais mas em tom metálico e com exatidão topográfica, ou seja, entre o túnel de lavagem automática e a máquina medidora da pressão dos pneus.


© PEDRO FOYOS





Voando
sobre um mar de rosas

OITOCENTISTA

 

Francisco Gião, piloto de longo curso da TAP, reparte a sua vida entre os Airbus 310 e vinte mil roseiras, que, numa várzea do Cartaxo, o aguardam, serenas e formosas, no final de cada viagem. Rosas vermelhas, na maioria. Matizadas de tons diversíssimos, do carmesim-escuro, solene, ao magenta-flamante das Jacaranda, uma variedade predileta que o piloto-floricultor elegeu, no dia da minha visita, para decorar a própria casa. Uma vivenda moderna e aprazível, às portas da vila. Em redor, abrangendo uma extensão considerável, as estufas. Seis, no total. Cada uma abriga mais de três mil roseiras, dispostas em imensas filas compactas, formando grupos criteriosos. Um deles fascina em particular, pela cor luminescente dos grandes botões entreabertos, de um branco-pérola suavemente rosado no recôndito das pétalas, como segredos de porcelana. São as Osian, esclarece, feliz, Francisco Gião – e esboça um gesto afetuoso de apresentação. Mais adiante, há um conjunto amarelo, cor de seara madura, as Darling, e por todo o lado a folhagem verde, do claro ao bronze, parece macia. Milhares de variedades de rosas e todas têm nome. Poéticos, delicados, quase sempre.

Como se relaciona, afinal, a aviação com a floricultura? Pois bem, nada de comum existe. Ou, reconsidera Francisco Gião, haverá, porventura, em ambas as atividades um certo aceno desafiante. O mesmo desafio encantatório de pilotar um Airbus com duas centenas de passageiros poderá intuir-se na produção de rosas, porque estas são, de facto, na floricultura, uma das mais árduas especialidades, com exigências singulares. Quem cria rosas enfrenta adversidades numerosíssimas e peculiares que a generalidade dos floricultores não conhece. A rotina técnica que se aplica satisfatoriamente às restantes plantas resulta, neste setor específico, insuficiente. Uma produção de qualidade e com êxito reclama do roseirista uma atitude de verdadeira cientificidade. «Esse é o aspeto que me seduz» – confidencia-me o piloto.

Sob uma aparência rústica, as roseiras são, na verdade, plantas vulneráveis em grau extremo. Com poucas exceções, observa Francisco Gião, sofrem todas as pragas e maleitas existentes no mundo vegetal, com a particularidade de serem sempre as primeiras vítimas quando esses tormentos tendem a dar sinal de si. Dir-se-ia que esse é o tributo que, pela sua beleza, a natureza faz recair sobre a rainha das flores.

Na realidade, a história deste piloto de aviões, um dos portugueses mais conhecedores de tudo quanto se relaciona com a cultura de roseiras, começou há muitos anos. Sua mulher, Paola, de nacionalidade italiana, terminara um curso Jovem Agricultor. Entre ambos foi ganhando forma o projeto de empreenderem uma pequena exploração florícola, tirando proveito, para tanto, de terrenos disponíveis no Cartaxo. Não demoraram na escolha do género: «Gostamos muito de rosas», conta Paola, com simplicidade, «e a opção pareceu-nos inevitável. Que outra flor poderia ser? Não considerámos, sequer, outras hipóteses.»

Instalada a primeira estufa, Francisco entregou-se ao estudo das roseiras. Com o apaixonado apego e a cooperação não menos entusiástica de Paola. A componente científica da iniciativa aliciava-o, em especial. Descobriu que os resultados eram tão mais magníficos quanto maior o ânimo e o empenho investigativo. Pesquisou fórmulas em publicações inúmeras. Encetou contactos internacionais e passou a visitar, com assiduidade, os certames estrangeiros da especialidade. Sistematizou as análises foliares e do solo, em moldes inéditos no nosso país, recorrendo mensalmente a consultores químicos norte-americanos. Na eventualidade de ocorrer um desequilíbrio, pequeno que seja, a América alerta, de imediato, o roseirista português: «O potássio regista uma diminuição de 15 por cento. Recomendamos a correção deste elemento.»

O afável floricultor que de tudo isto me fala com a paixão do cientista empolgado na descrição das suas descobertas e êxitos, capaz de dissertar durante horas sobre o mundo maravilhoso das rosas, capta, numa pausa, o meu espanto e justifica-se: «Só assim vale a pena.» Depois, há uma mal disfarçada tristeza quando comenta a pouca formação especializada dos agricultores portugueses, em geral, e a angustiante falta de apoios, a todos os níveis, com que os mesmos se debatem. No caso concreto da cultura de rosas, Portugal tem condições magníficas de clima para ser um exportador de grande qualidade, mas isso requereria um grau de formação que está longe de verificar-se.

Uma pergunta singela: qual a rosa mais bela do mundo? Francisco Gião responde rápido, convicto: «Todas, todas são bonitas. Por vezes, uma ou outra flor poderá parecer menos atrativa, mas exibirá, em contrapartida, uma grande beleza foliar. Poucas plantas possuem folhagem tão exuberante e diversificada como as roseiras.» Insisto: não haverá porém uma rosa excecional cuja beleza o sensibilize em particular... Uma rainha das rainhas? Hesita, pensativo. Súbito, assentindo com veemência inesperada…





… elege a Barcarolle, um ser deslumbrante com longas pétalas de um vermelho-veludoso e profundo. De imediato quase se desdiz, repetindo: «...mas todas, todas são bonitas, todas são muito bonitas!» – como um pai inadvertido que distinguiu uma das suas filhas e fica no receio de que as restantes, vigiando-o, os espinhos eriçados de inconsolo, lhe não perdoem a desfeita.

 

© PEDRO FOYOS


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O último Imperador
(Crónica de uma árvore em vias de extinção)

OITOCENTISTA

 

Reconhecendo-me desde sempre como um republicano dos quatro costados, assumo-o não só por convicção mas também porque tento honrar o legado político do ramo familiar paterno, precisamente um avô e um tio cujo republicanismo e ideologia progressista lhes custaram as mais ignominiosas punições, do cárcere ao desterro.
Nessa circunstância poderei ter-me exposto, no meu livro Jardim República, a críticas de tendenciosidade, pois os autores das atrocidades descritas naquela obra provinham indisfarçavelmente das fações extremistas do poder monárquico deposto. No entanto, o fanatismo, esse veneno que alastra indominável, que vai escurecendo a racionalidade até petrificar-se na cegueira opaca da barbárie, não é exclusivo de um regime político em particular.
Condoído evocarei um cruento episódio protagonizado por não menos fanáticos republicanos brasileiros, 25 anos antes da sanha eclesial e monárquica em Portugal contra o "Dia da Árvore” (as frágeis árvores plantadas por milhares de crianças em todo o País logo eram dizimadas durante a noite).
Manter-nos-emos no reino vegetal. A instauração da República no Brasil foi funesta para uma bela árvore cujo nome científico atual (já teve vários) não é fácil de memorizar: Chrysophyllum imperiale. A esta árvore de grande porte, nativa da região da Mata Atlântica, chamavam os indígenas de língua tupi "Guapeba". Na época colonial, os portugueses alteraram-lhe o nome para "Marmeleiro-do-mato", sugestionados pela parecença dos frutos com os marmelos lusos. Há uma fase do ano em que a árvore exibe uma folhagem deslumbrante, como poderá verificar-se na foto aqui reproduzida.

 

IMPERIAL

  
Porventura terá sido esta beleza, a par dos frutos saborosos, que originou o fascínio do imperador Pedro I (Pedro IV em Portugal) pela árvore que ao tempo existia em abundância numa vastíssima região costeira baixa, do Rio de Janeiro ao sudeste de Minas Gerais. Pedro II, filho do primeiro imperador, herdou desde criança a sedução por esta árvore e seria mais tarde o mecenas do célebre botânico Martius que, por seu turno, elegera a formosa "Guapeba" como a espécie botânica de sua predileção (a anterior designação científica – Martiusella imperialis – constitui uma homenagem a Martius e aos dois imperadores brasileiros).
Bem se entende o motivo por que no decurso da segunda metade do século XIX a outrora "Guapeba" passou a ser nomeada por Árvore do Imperador. Pedro II estatuiu-a "oferta imperial", enviando espécimes para vários jardins botânicos do mundo, entre os quais o de Sydney, na Austrália, onde continua a ser conhecida por Royal Tree.
No final de 1889, com o advento da República no Brasil e o "banimento" de Pedro II, a Árvore do Imperador é igualmente "banida". Ao contrário da realeza não se lhe concede o exílio. Começa por desaparecer iniquamente dos jardins botânicos do País, parques e vias públicas. Ocorre, num processo mais lento, situação idêntica em toda a extensão da Mata Atlântica, onde já começara a declinar devido à excelência da madeira desta espécie para a construção naval. Mas alguém terá ordenado que a prioridade de abate deveria concentrar-se na Árvore do Imperador.
Foi assim que muitos navios nasceram pelo preço medonho de uma espécie vegetal caída em desgraça entre a espécie humana.
Na atualidade, as instituições ecológicas internacionais atribuem ao Chrysophyllum imperiale um dos mais elevados níveis de "ameaça de extinção".
Há seis anos foi criado um grupo de pessoas de vários países (Brasil, Austrália e Portugal) que lutam apaixonadamente pela salvação desta árvore indissociável da história do Brasil e também, de algum modo, de Portugal. Esse grupo – precisamente o "Grupo do Imperador", que honrosamente integro desde o primeiro dia – trata a árvore pelo nobilíssimo e justo nome de Imperador. O objetivo é reintroduzir o Imperador na sua pátria de origem, a Mata Atlântica.
Fora do Brasil estão apenas referenciados sete exemplares. Excetuando a Argentina, com três espécimes em Buenos Aires, há um "último Imperador" em quatro países: Portugal (Lisboa), Austrália (Sydney), Bélgica (Bruxelas) e Itália (Florença).
O Imperador português encontra-se no Jardim Botânico do Museu Nacional de História Natural da Universidade de Lisboa e terá sido oferecido pelo imperador Pedro II ao seu grande amigo Conde de Ficalho, figura relevante da cultura portuguesa do século XIX e um dos principais impulsionadores da criação do Jardim.
Nesta odisseia intercontinental, um magno acontecimento foi a descoberta em Agosto de 2008 de um Imperador que sobreviveu ao extermínio de há 120 anos. Aparenta idade centenária, seria muito jovem à data da instauração da República no Brasil e encontra-se solitário mas saudável na floresta submontana vizinha da Baía de Guanabara. Será também o último Imperador da Mata Atlântica.
Infortunadamente, de todos estes espécimes apenas um frutifica com regularidade: o de Sydney. Pratica-se, então, um rito sublime. Os frutos são recolhidos com o maior cuidado e as sementes enviadas por avião para o Brasil, mais exatamente para Eugenio Arantes de Melo, um dos membros do "Grupo do Imperador".
A germinação destas sementes é de uma excecional dificuldade, com reduzidíssimo índice de êxito. Mas Eugenio já possui nos terrenos adjacentes à sua casa em Ipatinga, Minas Gerais, alguns pequenos Imperadores. Filhos de mãe nascida no Brasil e residente na Austrália para onde viajou em 1864. Ali foi plantada com todas as honras por um amigo do imperador Pedro II, Sua Alteza Real o Príncipe Alfred, filho de Vitória, Rainha do Reino Unido e futura imperatriz da Índia.

Esta árvore dava um filme.

© PEDRO FOYOS

 

Nota.   Agradeço ao meu amigo Gerald Luckhurst, notável arquiteto paisagista inglês a residir há anos em Sintra, a possibilidade de reproduzir aqui um fragmento da folhagem do Imperador de Lisboa, na sua fase exuberante. A estampa botânica de um Imperador jovem, extraída de uma publicação de 1874, pertence à coleção, inigualável no género, de Gerald. A quem se interesse por temas botânicos, sobretudo no âmbito da flora de Sintra, recomendo vivamente o seu blogue  jardimformoso.blogspot.com (em língua inglesa).
Quem pretenda conhecer mais em pormenor a história do Imperador poderá encontrar no site "Árvores do Brasil”, de Eugenio Arantes de Melo, espaço alargado de informações, fotos e um desenvolvido texto (em português do Brasil) que escrevi há anos a pedido deste membro pioneiro do "Grupo do Imperador": 
www.arvores.brasil.nom.br/Chrysophyllum/index.htm

PF