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        CRÓNICAS DE PEDRO FOYOS

           (pisando descontinuamente o risco)


        DO OFÍCIO

filete



INFORMAÇÃO DA EDITORA PRELO DIVULGADA EM FEVEREIRO 2015

Novo livro de Pedro Foyos
evoca o jornalismo dos tempos idos


O "GRANDE JORNALZINHO" DA RUA DOS CALAFATES

O tema foi suscitado pelos 150 anos do Diário de Notícias, agora celebrados. O jornalista Pedro Foyos balizou a efeméride como ponto de partida de um livro sobre os primórdios da publicação deste jornal e o jornalismo estritamente noticioso (ou seja, não panfletário) que começou a praticar-se na segunda metade de século XIX. Como era feito um jornal diário há 150 anos? Para responder a esta pergunta, o autor realizou uma extensa viagem ao passado, percorrendo o tempo pioneiro documentado numa obra repleta de episódios surpreendentes. Particularmente ilustrativo das agruras vividas por um jornal diário é o capítulo que relata, entre outros acontecimentos de "última hora", as mortes do rei D. Carlos e do príncipe herdeiro, em 1908. O regicídio, «ali mesmo ao lado», ocorre quando a primeira página já estava quase fechada. Ora a redação, composição e montagem de uma primeira página demorava então 12 horas a processar! E depois, claro, ainda era preciso imprimir… O jornal enfrentava o drama de sair no dia seguinte com uma notícia mínima sobre um dos mais importantes acontecimentos do século. Tal não acontece porque alguém, num rasgo de genialidade, desenreda a situação por meio de uma espécie de «ovo de colombo», expediente inédito a que recorrerá, doravante, em circunstâncias idênticas, a imprensa estrangeira.

Também romancista e autor de obras no âmbito da historiografia do jornalismo e da imprensa em geral, Pedro Foyos elegeu para título deste seu trabalho literário as duas palavras com que o escritor Bulhão Pato nomeava o Diário de Notícias: «grande jornalzinho». Era de facto o «grande jornalzinho» da Rua dos Calafates, no Bairro Alto de Lisboa, alfobre durante um século dos artistas impressores, dos jornais e dos pioneiros de um jornalismo informativo.
Uma obra que reafirma a memória como um bem essencial para todas as gerações, as de ontem, as de hoje e as do futuro.

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O livro, impresso inteiramente a cores, tem a chancela da editora PRELO.
152 páginas. Preço: 16,50 euros
ENCOMENDAS DIRETAS À EDITORA:
prelo.livro@gmail.com






REVELAÇÃO NOS 40 ANOS DO 25 DE ABRIL

Último relatório confidencial sobre livros apreendidos
que chegou à PIDE na véspera da Revolução

Descobri o documento, por mera casualidade, quando fazia na Torre do Tombo uma pesquisa jornalística sobre a Censura na fase epilogar do consulado marcelista. O documento preservado naquele Instituto dos Arquivos Nacionais constitui um repositório das informações encaminhadas para o Ministério do Interior por todas as organizações policiais portuguesas durante o período de 6 a 13 de abril de 1974, vésperas da Revolução. Deu entrada na PIDE/DGS no dia 24 de abril, quase na alva de um tempo novo. Antes, naquela mesma rua, agentes da polícia política disparariam no dia seguinte sobre a multidão, assassinando quatro pessoas.
As informações secretas, denominadas perintreps (acrónimo de periodic intelligence report) tinham na maioria das vezes um carácter político, porém não deixavam de escriturar com minúcia intervenções policiais em delitos comuns com repercussão nas áreas populacionais onde os mesmos haviam sido cometidos.
O relatório em apreço abria com «Factos» classificados de secretos, abrangendo distritos do País ordenados pela importância das informações e não por ordem alfabética. Lisboa, Porto e Coimbra disputavam quase sempre as primeiras páginas. No último relatório, porém, Torres Vedras ascendia a uma posição honrosa porque: «… foram detectadas as inscrições murais: Liberdade para os 43 activistas do movimento CDE, e: Abaixo a PIDE/DGS».
Uma secção sistemática e sempre extensa principiava com um título expedito: «Actividades do adversário durante o período», ou seja, «na última semana». Não podia exigir-se maior franqueza. Os portugueses, pelo menos a maior parte deles, eram de facto o «adversário».
O tratamento da informação decorria numa primeira fase no Comando-Geral da Polícia de Segurança Pública (PSP), ali se apondo o carimbo SECRETO às «políticas subversivas ou suspeitas» e o carimbo CONFIDENCIAL aos delitos comuns e situações de rotina policial, como era o caso das apreensões de livros e panfletos.
O comandante-geral da PSP (general Tristão Carvalhaes) remetia depois o dossiê ao ministro do Interior (Artur Gonçalves Rapazote, até novembro de 1973, e César Moreira Baptista, até ao 25 de Abril). Uma rotina cuja periodicidade semanal era alterada quando uma alvoroçante ocorrência ou suspeita política de elevada "perigosidade" justificava a emergência de um perintrep intercalar.
O próprio chefe do gabinete do ministro classificava as informações, sublinhando a encarnado as mais relevantes ou que mereceriam uma especial prevenção por parte da PIDE/DGS, privilegiada destinatária deste circuito de vigilância policial.
Pelo documento reproduzido a seguir fica a saber-se que, a escassos dias da Revolução de Abril, foram apreendidos 63 livros (cujos títulos não eram citados) e 94 panfletos «subversivos» (…) «os quais serão enviados, oportunamente, à entidade competente».
A «entidade competente» era uma fera e rija brigada legionária aquartelada na Calçada da Estrela que dispunha de proficiente salamandra para excomungar por meio de gasolina e fogo os livros danados. Livros a rodos, todas as semanas. O jornalista Artur Inez, também ele um excomungado, sempre na primeira linha da resistência, escreveu que havia na Estrela uma certa chaminé que expelia frequentemente papel e tinta tipográfica sob a forma de rolos de fumo, não existindo na cidade chaminé tão letrada.
A Censura, que há décadas o olhava de viés, topou e tesourou-lhe a arteirice.

© PEDRO FOYOS




Nota: o documento original corresponde a uma página A4, encontrando-se a branco
a metade inferior.






Fidalgo Pedrosa
e o momento esteticamente decisivo





A imagem de capa deste livro [A Vida num Instante] é um prelúdio vertiginoso e eloquente do que o visitante encontrará nas páginas seguintes. A fotografia tem um título congruente: «O pulo». Um desconhecido salta de um ponto desconhecido, por motivo desconhecido. À esquerda, dois pilares atemorizadores, fúnebres, impenetráveis, trazem à memória outro perturbador objeto desconhecido — o monólito negro — que domina e nos domina na histórica Odisseia fílmica de Stanley Kubrick. Significativo ponto de partida. A obra fotográfica de Fidalgo Pedrosa está povoada igualmente de gente desconhecida (sim, todos nós) fluindo como elenco sortido de um grande teatro de imagens instantâneas. A representação tem por insígnia a Estética, quanto possível bem caldeada de um tempero furtivo chamado Geometria. Paisagens, sejam urbanas ou rústicas, e personagens, sejam fulgentes ou espectrais, incumpridoras destes predicados não entram em cena por um motivo claro: o mundo artístico de Fidalgo Pedrosa é cénico, naturalmente cénico, ou seja, despojado de quaisquer arteirices tecnológicas pós-captação (o que não desvirtuaria, como parece óbvio, o processo criativo, no entanto importa sinalizar, para melhor compreensão da obra e do autor, este género de quesitos).
O título A Vida num Instante é também claríssimo. Há um quase-jogo, um desafio para que vençamos a contemplação errática que é o roteiro comum aos livros de fotografia e habituemos o olhar à descoberta dos prodígios de geometrismo estético da vida nos consecutivos e infindos instantes que por norma nos escapam. Não escapava a Camilo que, não sendo fotógrafo, teria apreciado o olhar fotográfico de Fidalgo Pedrosa. O escritor era avesso ao conceito de "ciência abstrata" aplicado à geometria. Atento aos movimentos corporais das suas personagens, fazia com frequência alusões ao geometrismo dos mesmos. Uma dessas personagens, por exemplo, a páginas tantas do romance está refastelada e de copo na mão; cruza as pernas e logo Camilo transcreve o instante: «...com as duas pernas [fazia] um curso de geometria...»
Entre o real sem artifício e o fotógrafo (que viu e registou) encontramo-nos nós (que não vimos). Nada se ocultava por detrás do real, mas não vimos. «Íamos a passar, não vimos...» — pode ser a desculpa expedita. A verdade é que precisamos de ver o instante paralisado no tempo para que o nosso olhar siga o do fotógrafo e finalmente vejamos.
A vida é uma magistral encenadora mas avara no que respeita ao tempo concedido para admirarmos as suas criações. Por fortuna, a talentosa instantaneidade e presciência visual de fotógrafos como Fidalgo Pedrosa conseguem mobilizar para os nossos olhos desprevenidos e perdulários as pérolas imagéticas que menosprezamos a todo o momento. O que vemos, o que cremos que vemos e o que vemos porque o fotógrafo viu e nos mostra o que viu são olhares tão diferenciados que o desinteresse, o alheamento coabitam inesperadamente com a surpresa encantatória de uma descoberta. Não chega a instantaneidade, é evidente. Fidalgo Pedrosa herdou dos remotos mestres os segredos e as perícias da depuração do preto e branco, mais exatamente: das luzes puras e das sombras fantasmáticas do preto e branco.

De tudo isso e da soma final de outras parcelas que poderiam enumerar-se dimana a força emocional do momento esteticamente decisivo tão presente neste livro celebrativo de um nome maior da moderna fotografia portuguesa.


© PEDRO FOYOS







FOTO-JORNAL NASCEU HÁ 35 ANOS

História de uma grande aventura jornalística
devotada à valorização da Fotografia em Portugal



                 UM SONHO BELO COM BANDEIRAS NEGRAS NO FIM



Número inaugural em maio de 1978. Apesar de impressa em papel de jornal, a nova publicação exibia um grafismo e uma profusão cromática invulgares na época. Os títulos principais
reportavam os protestos dos fotógrafos portugueses em relação ao agravamento incessante dos preços de material fotográfico



Foi um empreendimento cultural singularíssimo, porventura inédito no mundo. Quatro jornalistas profissionais da Imprensa diária, amantes da Fotografia, uniram-se para fundar um jornal com expansão nacional, dirigido aos fotógrafos do País, fossem amadores ou profissionais e abrangendo todas as expressões e áreas de atividade, da arte ao fotojornalismo. Com periodicidade mensal e 32 páginas, muitas das quais a cores, o jornal tinha uma distribuição similar à dos semanários e mensários de informação geral, acrescendo os estabelecimentos do comércio fotográfico nas principais cidades. O êxito foi retumbante. A tiragem inicial de três mil exemplares era aumentada quase mês a mês até estabilizar no início de 1979 nos sete mil (dez mil em duas edições especiais). Também o preço de venda aumentou, de 25 escudos para 40, porquanto se abandonara entretanto o papel de jornal para um outro de elevada qualidade.
O núcleo fundador de jornalistas (Pedro Foyos, Maria Augusta Silva, João Aguiar e Victor Dimas) acolheu logo de início dois grandes fotógrafos e colaboradores primordiais do empreendimento: Armando Cardoso e Fernanda Cardoso.
Fernanda, João e Victor partiram muito cedo para estrelas longínquas. Dos sobrevivos, apenas o Armando mantém um notável dinamismo criativo no plano da fotografia de arte, com extensão não menos magnificente na área do web design, bem patente no vasto itinerário temático que perfaz o desígnio cultural deste "Casal das Letras".
O êxito de Foto-Jornal incentivou a equipa a convertê-lo numa revista — Nova Imagem — também mensal, cuja excelência gráfica e vigor jornalístico ampliou o número de leitores, suplantando o público restrito à área fotográfica. A revista ombreava com as melhores do género a nível mundial, tendo sido premiada duas vezes pela Federação Internacional de Arte Fotográfica, também pela Associação Portuguesa das Indústrias Gráficas.
Empresa editorial de sucesso, o apogeu verificou-se nos anos de 1981 e 1982 com novos lançamentos: um Anuário Português de Fotografia e uma segunda revista — a Foto-Profissional. Entretanto, mercê de acordos com grandes editoras estrangeiras, começaram a ser distribuídas em Portugal algumas obras de referência, em língua francesa e inglesa. E é inaugurada numa artéria nobre de Lisboa, em cooperação com a empresa Fotocolor, uma Fotolivraria, novo cometimento nunca visto no País.
Todavia, no final de 1983, a pátria começa a ser varrida por ventos uivantes que ameaçam não deixar pedra sobre pedra. Portugal recorre pela segunda vez ao FMI. Abatem-se sobre os cidadãos pesadelos similares aos que se vivem no momento da redação deste texto (2013). Agravam-se dramaticamente, a partir de 1984, as condições de vida dos portugueses. O último subsídio de Natal já sofrera um corte substancial. Multiplicam-se as falências, o desemprego dispara, torna-se drástico o aumento dos preços de bens essenciais.
À Redação da revista Nova Imagem chegam angustiosos portfólios de jovens fotógrafos em que o tema dominante são manifestações com bandeiras negras. Esse foi o tempo das bandeiras negras içadas por todo o País.
Também as publicações fotográficas sofrem num grau extremo a retração publicitária. Na transição de 1983 para 84 as receitas sofrem uma redução de 80 por cento. A primeira a soçobrar é a Foto-Profissional. António Coimbra, administrador da Kodak Portuguesa, tem o gesto cortês de comunicar pessoalmente ao diretor a impossibilidade de aquela multinacional continuar presente na contracapa. Também Orlando Rego, um bom amigo, gerente da firma Profoto, então um dos baluartes do comércio fotográfico, vê-se obrigado a cancelar o plano anual de exclusividade do espaço do verso da capa. Os produtos fotocine são considerados sumptuários, o agravamento dos preços deixa desertas as lojas do ramo.
A mesma retração publicitária ocorre logo depois com a revista Nova Imagem. A alternativa de duplicar o preço de venda afigura-se impraticável. A publicação resiste aflitivamente, e em derradeiro salvatério vai desfigurando-se diminuindo a qualidade do papel e o número de páginas. Exangue, o fôlego esgota-se e a direção lega aos leitores um extenso historial das vicissitudes. Escreve, a terminar: «Tantas miragens frustrantes se nos têm deparado nos últimos tempos que hoje confiamos quase tão-só na dedicação dos leitores. Mas esse foi sempre, e continuará a sê-lo, o mais importante estímulo para o nosso trabalho. Um estímulo e uma inexorável razão de vida durante muitos anos; agora, uma razão para não morrer».
Inelutavelmente, morreu. Morreu velada por largas centenas de mensagens solidárias. No Porto correu uma circular na qual os assinantes se propunham duplicar ou mesmo triplicar o valor das assinaturas enquanto o «mau momento» não passasse.
Não era um «momento» e não passou. A "crise" viera para se demorar. Todos os dias e por todo o lado a morte se passeava vestida da mesma cor das bandeiras revoltosas.
Apenas o Anuário Português de Fotografia perdurou até 1988, num trabalho solitário do seu diretor. A dificílima situação financeira impusera a dispensa da totalidade dos colaboradores. Já Pedro Foyos, entretanto, regressara à Redação do Diário de Notícias, de que se retirara para abraçar o empreendimento foto-editorial.
Doloroso. Terrível. Ontem como hoje.
Quando, no terço final da década, o País começa a reerguer-se, já não era possível recomeçar.
Não era possível construir o que quer que fosse sobre o mar de cinzas em que se convertera o sonho belo germinado dez anos antes.
Mas a Fotografia, nos seus diferentes registos, tem irrevogável e digna morada neste sítio. Morada com nome fraterno: Fototeca dos Aliados. Antigos e novíssimos Aliados socorrem-nos na ânsia de um sonho que desejaríamos eternamente continuado.

Maio de 2013








O PRIMEIRO EDITORIAL (MAIO 1978)
UM SONHO NA MOLA DE ROUPA
PEDRO FOYOS


Com a humildade de quem reconhece não ter direito a pregão vivo na cidade, tão só a grampo ou mola de roupa à ponta do cabeçalho, enaipado com outros no quiosque, dizemos: aqui estamos. Estreantes no escaparate ou na banca de jornais à beira da circulação urbana, aqui estamos com a imodesta certeza de que nos pertence um espaço nesse mundo do papel impresso. Recém-chegados, de nós se esperará o rito habitual dos noviços, a apresentação — quem somos, o que queremos, para onde vamos.
Pois bem, comecemos. Somos um jornal de Fotografia, também de Cinema. Mas há lugar — perguntar-se-á — para um jornal com essa fisionomia, em Portugal? Já dissemos que sim e é nosso propósito muito firme prová-lo. Mais do que um prognóstico apaixonado, confrontamos resultados aferidos ao longo de um exaustivo trabalho de prospeção e consolidados numa força numérica. Conhecemos, de facto, a grandeza da parcela populacional que se dedica às atividades fotográficas, e nunca como hoje esses praticantes careceram tanto de apoio face ao áspero panorama dos custos dos materiais. Contra a situação de violência administrativa que se abateu sobre esse sector do comércio, cada vez mais asfixiado pela catadupa arrasadora de taxas e de impostos, lutará de imediato este novo jornal, com quanta força de voz puderem conter as suas páginas.
Um jornal de Fotografia e Cinema? Decerto: em nome da Cultura, preserve-se este país da condição tristíssima de ter sido, até agora (excetuando o período de edição simultânea de três malogradas experiências) o único da Europa a não possuir uma publicação periódica do género (para quem franzir o sobrolho, diremos que se edita, na Turquia, uma revista fotográfica com periodicidade mensal...).
Aqui estamos, com um nome: Foto-Jornal. Em Portugal. Apesar de tudo. A equipa que deu corpo a este projeto tem consciência das grandes limitações e adversidades que o mesmo encerra. Idealizamos e ambicionamos, naturalmente, ir mais além. Mas não nos tentaremos, como a rã da fábula, a imitar o boi. É essencial saber condicionar os sonhos a um sentido realista das possibilidades e não perder o caminho — o único, exato e viável — que é integralmente suscetível de ser percorrido com segurança. Por isso, apresenta-se esta publicação com um figurino bastante diferente daquele que caracterizou as tentativas editoriais anteriores, com as quais não tem, é oportuno sublinhar, qualquer ligação.
Prevenidos estamos de algumas miragens perigosas que aniquilaram belos sonhos embalados primorosamente em papel couché.
Foto-Jornal é, em rigor, isso mesmo, um jornal — mas tal circunstância, que tecnicamente pode sofrer a carência dos altos apuros qualitativos indispensáveis a uma revista moderna, será compensada, no maior grau possível, com uma atratividade gráfica inusual nos modelos congéneres que circulam entre nós. Esta premissa determinou a opção pelo sistema offset e a prática de reprodução de fotografias a cores.
O projeto de realização do Foto-Jornal integrou ainda um esquema redatorial inédito no âmbito da nossa Imprensa de especialidade. Com efeito, um núcleo extenso de especialistas, em diversos sectores chave, laborará com o apoio de uma equipa de jornalistas profissionais, cuja participação no processo de feitura do jornal proporcionará uma correta e atraente expressão informativa.
Por outro lado, Foto-Jornal propõe-se criar uma rede de correspondentes, que incluirá os principais centros mundiais fotográficos, estando previstos, igualmente, exclusivos de algumas das mais prestigiadas publicações estrangeiras.
Como é compreensível, o cenário nacional envolverá, dominantemente, o conteúdo destas páginas. Foto-Jornal nasce convicto de que lhe compete o desempenho de um papel importante na vitalização do panorama fotográfico português. Todavia, o empreendimento não deve confinar-se ao grupo redatorial que impulsiona esta publicação, por mais firme e fecundo que se mantenha o seu labor. Tem, antes, de ser fruto da ação empenhada do vasto sector populacional que exerce, quer a um nível amador quer profissional, a Fotografia e o Cinema, e que acredita na validade da existência de um órgão informativo difusor dessas atividades. Por tal razão, de todos esperamos uma crítica, um aceno de orientação, uma vontade determinada de valorizar e divulgar este jornal. Ele será tanto mais completo e atuante quanto for a expressão do interesse e participação dos seus leitores. É fácil, aliás, antever que assim irá suceder, a avaliar pelas numerosas provas de dedicação, esperança e incentivo recebidas nas últimas semanas, desde que começou a anunciar-se o próximo aparecimento do Foto-Jornal. Tudo faremos para ser dignos dessa confiança e não iludir nunca as esperanças que acompanham a nossa aparição.
Partimos na convicção de que este jornal irá possibilitar um efetivo alargamento dos conhecimentos de quantos se dedicam ao exercício da Fotografia e do Cinema, e que será um lugar vivo, um centro de convívio, um elemento de união entre todos os que nele procurem um apoio e um estímulo à criatividade.

Aqui estamos com um nome: Foto-Jornal. Começamos sem direito a pregão na cidade, é certo, mas que orgulho sentimos, amigos, em reencontrar, a partir de hoje, na abada de porta de uma tabacaria, com molas de roupa às orelhas, o nosso sonho realizado.

Maio de 1978





DEPOIMENTO NO PRIMEIRO ANIVERSÁRIO (MAIO 1979)
MARIA AUGUSTA SILVA: TUDO COMEÇOU DESTE JEITO...


Foi há um ano, de facto. O Pedro Foyos, para quem a Fotografia é, decidida e irremediavelmente, o seu primeiro e grande amor, resolveu, sem mais aquelas, ir buscar-me para jantarmos num sítio tranquilo. Escusado será dizer que, logo de entrada, e em lugar de um bom aperitivo, apanhei com uma dose de sabedoria sobre os movimentos culturais fotográficos. Era preciso aguçar o apetite... Depois, em vez de uma sopinha de legumes, quente e bem apurada, apareceu o senhor Nièpce, com Daguerre de intermeio — assim uma espécie de sanduíche bem aviada. E, enquanto as glândulas salivares trabalhavam em seco e os maxilares ganhavam ferrugem, o bom do Foyos, sempre inconformado com uns senhores que ainda teimam em fechar os olhos às realidades, sai-se com esta: Que tal a ideia de se tentar publicar um jornal especializado em Fotografia?
Juro que não escancarei a boca até às orelhas. Fiquei serena e comecei, com gosto, e finalmente, a saborear o que entretanto chegara à mesa de mastigável a sério. O que poderia eu dizer? Antecipadamente sabia que não o demoveria. O Foyos limitar-se-ia, neste caso especial, a respeitar pura e simplesmente a minha opinião. Só que as opiniões eram, e quiçá desgraçadamente, convergentes. Estava decidido: sacrifícios sem conta. Muito trabalho. Contrariedades. Empenhamento. Uma luta dura e difícil.
E ao meu cúmplice silêncio, o Foyos toca de responder apenas este mimo: Vai chamar-se Foto-Jornal. Tudo começou deste jeito. Quatro loucos da Fotografia (ele, a Fernanda e o Armando, por «Cardosos» mais conhecidos, e eu) vá de levar por diante o projeto, roendo as unhas de quando em quando, mas sem desencorajamentos.
A completar o quarteto fundador, e a constituir o grupo redatorial efetivo, apareceram o João Aguiar e o Victor Dimas, para além dessa tal Maria Augusta que o veneno do senhor João Aguiar chama de padeira de Aljubarrota e a quem ele (João de sua graça e por sinal engraçado) costuma "cravar" bombocas em vez de pão, o que chega a ser uma incoerência, não peculiar — diga-se em abono da verdade — no dito senhor a quem hão de cair os dentinhos todos por ser guloso como só ele sabe ser.
Ora bem, estava a equipa formada, juntamente com o João Joaquim, senhor magrinho e organizado, a quem o Foyos, muito subtilmente, foi dando uma injeção de negativos e positivos, à mistura com um bombardeamento de perguntas contabilísticas que deixam o J.J. cheio de cabelos brancos, embora disfarce. Depois, houve que descobrir colaboradores. Dos fixes. Dos que também escrevem. E bem. Por último, entra-nos pela porta um tal Ferreira, sorridente e solícito, que até percebe de carpintaria e de instalações elétricas, põe as lâmpadas todas a funcionar, arranja gravadores e máquinas de escrever, tudo isto, obviamente, para lá da estafa que é a expedição do jornal, porque, felizmente, os leitores são muitos e exigentes.
Passou um ano. Um ano de vida do Foto-Jornal. Um ano de vida de uma equipa admirável que o Foyos já levava na "manga" quando me fez estar a mastigar em falso mais de meia hora para dar largas ao seu sonho. Afinal, ao nosso sonho. Por adversidade cruel e inesperada não me foi possível assistir, em carne e osso, ao "parto" do Foto-Jornal, em Maio de 1978. O Pedro, porém, prontamente mo enviou e com sofreguidão o li e reli na cama de um hospital londrino. Pensei então: Há de ter a vida que nos for possível, a todo o custo, dar-lhe. Já viveu um ano. Vai continuar, em defesa dessa maravilhosa expressão cultural e dessa inigualável força de comunicação entre os homens e os povos que é a Fotografia. Vai continuar, não tanto por mérito nosso, mas, sobretudo, pelo apoio dos milhares de amigos que nos acompanham.
Esta equipa está hoje de parabéns porque esses amigos assim o quiseram. Vamos tirar uma fotografia para a posteridade. Ficará linda, apesar do horrível bigode do Dimas e da barba já esbranquiçada do Foyos. Talvez um dia esse "boneco" figure no requintado álbum de alguns senhores todo-poderosos, a morder-lhes a consciência e a denunciar-lhes a inércia e o raquitismo dos seus critérios, pensamentos e ações.
Com efeito, somos, todos nós — equipa e demais amigos — um Foto-Jornal vivo, que lutará até ao limite da sua capacidade contra a asfixia da arte fotográfica.
Por esse objetivo continuo na disposição de aturar o Foyos em mil jantares vegetarianos acompanhados de películas e quejandos, e de preferência sem o ferrocianeto que ele não dispensa no laboratório...

ADENDA 34 ANOS DEPOIS
Decorridos alguns meses, Maria Augusta Silva e Pedro Foyos casaram (e assim continuam), o que invalida em parte a declaração contida na segunda linha deste depoimento.









           Manuel Monteiro e a Literatura
        nos Cuidados Intensivos da Gramatologia


                                                                   Manuel Monteiro visto por Armando Cardoso
                                                       e a capa de um novo livro em esmerada edição da QuidNovi


Manuel Monteiro viu abrir-se-lhe um caminho auspicioso ao vencer o prémio Novos Talentos FNAC Literatura 2012. Uma distinção merecidíssima. O autor, de trinta e poucos anos, definiu-se numa recente entrevista como «jornalista-escritor-revisor-formador». Todavia, a sua maior ambição é tornar-se «escritor a tempo inteiro», desígnio verosímil quando estamos perante uma segunda criação literária que concorre decisivamente para a plena evidência de uma vocação prenunciada há quatro anos. Foi em 2008 que Manuel Monteiro publicou a ficção demanda ou a cor nunca vista, prefaciada por um querido camarada de ofício, José Alberto Braga. A nova obra, O Suave e o Negro, também de ficção, merece ser lida e recomendada. Foi o que entretanto fez Fernando Dacosta, outro antigo companheiro da faina jornalística, qualificando-a como «obra muito própria, bastante original e com uma invulgar energia criativa e comunicativa».
Exercício encantatório, o do leitor, na descoberta de uma original malha ficcional, subvertendo e desconstruindo paradigmas correntes e superando a trivializada carpintaria do enredo. Faz falta à literatura portuguesa obras que desafiem matrizes dadas como imutáveis. Na verdade, é ténue o enredo, na aceção popular de novela, nesta história que flui em torno de duas personagens centrais (uma das quais é o narrador), desempenhando uma relação sórdida entre a malignidade e a subserviência, com todos os limites ultrapassados no percurso pausado de duas linhas paralelas – luz e sombra, o Bem e o Mal – que sempre acabam por cruzar-se. É penoso construir uma personagem repulsiva. Exige tempo escavado a pá pequena, tempo para sulcar à volta dela, com destreza de jardineiro, um vazio pestífero, esperar que a rega funérea gota a gota vá impregnando as folhas do livro, depois estercar as pulsões da maldade, da impiedade, até ao auge de o leitor lhe ansiar a morte. Esse foi o trabalho de mestria de Manuel Monteiro durante três quartos da obra, revelando igual proficiência ao contrariar a vontade do leitor e da justiça básica: a personagem diabólica chega ao epílogo com apreciável vigor e aparente empenhamento em prosseguir na "senda do mal", algures na eternidade.

Assumindo-se como revisor literário, atividade que tem exercido nos últimos anos, também nessa vertente deve ser apreciado o labor peculiar de Manuel Monteiro. Uma vez entrado nesse limbo da revisão, presume-se que andará com a gramática ao colo, mesmo no papel de escritor, como deixa transparecer sem discrição ao longo deste livro. Originalidade divertida, decerto irrepetível: a personagem-narrador permanece do princípio ao fim sob vigilância gramatical do autor, que, assumindo-se como revisor, vai advertindo (em brevíssimos itálicos entre parêntesis) para escorregadelas estilísticas, frases de efeito, repetições vocabulares, clichés e até, inesperadamente, assinala uma prolepse (!), algo de que eu não ouvia falar desde as lições do saudoso Professor Lindley Cintra. As oportunas admoestações do autor-revisor regem-se sempre pela sensatez e fidelidade escolástica, mesmo quando, nas páginas derradeiras da obra, a relação entre ambos se desventura de forma insuprível.
Desta mostra se infere que Manuel Monteiro jamais deixará de ser revisor, quanto mais não seja de si próprio e em exclusivo quando passar a «escritor a tempo inteiro». Faz parte do seu código genético, como fica bem dizer. Surpreende e anima encontrar um escritor jovem tão cioso do rigor gramatical em toda a extensão da alquimia linguística, das minudências aos pecados capitais, passando pelos pecadilhos que, parafraseando Aquilino, «nem vale a pena acusar na confissão», como são as infindas expressões redundantes que a todo o momento se acomodam ao hábito da fala ou da escrita. Outro pecadilho, porém já merecendo penitência, é a comezinha pontuação cujo emprego descuidado pode desestruturar um bom texto.
Manuel Monteiro interpreta de modo original o tema da revisão de textos:
«Às vezes, penso que a profissão que mais se aparenta com a do revisor é a do árbitro de futebol. Estranha comparação, dir-se-á em primeira análise. A verdade é que o único aspeto visível do trabalho de ambos é o erro. Dá-se pela existência de tais ofícios apenas quando eles falham».

Regresso ao mote desta crónica, a obra O Suave e o Negro, particularizando a já aludida desavença final entre o autor e o narrador-personagem. Ao contrário do que ocorreria com um romance policial, não trará ao leitor o mínimo inconveniente a revelação de que neste livro as coisas entre ambos (autor e personagem) acabam mal. Muito mal. Eis:
Figurava-se o livro terminado, pronto a recolher à estante, quando o narrador resolve, por autorrecreação (ou seja, à revelia do autor), vazar uma arenga superescatológica, em absoluto imprópria para menores e maiores de idade, atolando mais de três páginas do excelente papel-marfim com que a QuidNovi imprime as suas edições. Compreende-se que o autor tenha sido então de uma enorme rispidez, não acolhendo a desculpa de que tudo aquilo era o que ia pela cabeça do narrador. Com a sensatez a que nos habituara desde o princípio do livro deliberou (e bem, se me permitem notar) que a arenga não se revestia de qualquer valor literário. Óbvio (acrescento ainda) que tal ponderação nada tinha que ver com gramática e muito menos com estilística literária. Mas nada feito. O narrador-personagem insiste: «(...) quero apresentar as minhas reflexões...». Perante isto, o autor toma uma decisão inflexível e brada (o verbo não consta, mas pressente-se um murro na mesa): «Não, o livro acaba aqui. E agora acaba mesmo».
Dois centímetros abaixo surge, não menos vigorosa, a palavra FIM. Ah, este teria sido o mais viril ponto final dos livros de ficção: por imposição máscula do autor sobre uma personagem insubordinada.

Afinal não acaba.
No caos de se ver despejada do livro, a personagem consegue devanear, solitária e delirante, por mais seis páginas confessionais, aventurando-se possivelmente a encetar ali mesmo um novo livro. Rende-se por fim. Não há mais lastro. O chiquérrimo papel-marfim tão apetecível deverá ter chegado ao limite do estipulado para este volume.
Na hora de averiguar responsabilidades, cabe interpelar o autor e a editora: por que aparecem estas páginas excrescentes no final do livro? Estou a ver o autor a alijar-se com um assobiozinho prò ar: «De minha responsabilidade é quanto está escrito até à palavra FIM. Quanto ao mais, desculpem lá...». Argumentará a QuidNovi, com um trejeito de desagravo: «Então, nós, diga-me cá, iríamos alguma vez interferir numa criação literária?! Com franqueza!». Sim, há também a empresa responsável pela finalização oficinal do "produto", a gráfica Rainho & Neves, que por sinal já imprimiu um livro meu; tenho esses profissionais no melhor conceito, não julgo plausível que atendam as personagens que lhes batam à porta a exigir de peito feito um acrescentozinho a uma obra que está lá para imprimir.
Conclui-se, enfim, que andará por aí, perdida, essa personagem à procura de um autor, rebento tardonho de Pirandello. Acalenta agora ambição maior que meia dúzia de páginas. Já tem todo um livro na cabeça, só lhe falta um autor. Um bom autor, colaborante, benevolente, se não for exigir de mais. Não será a única. O mundo alternativo da literatura está apinhado de personagens atingidas pelo desemprego, outras cujo pendor político as arrastou para a vida clandestina, mas em geral desfrutam de notoriedade na praça pelo bom carácter e cadastro limpo de safadezas. Os tempos mudaram imenso depois do vovô Pirandello, que se viu a braços com apenas seis personagens à procura de um autor. Agora é diferente, a concorrência é tremenda. São muitas-muitas as personagens nessa aflitiva situação de cinto apertadíssimo, endividamento imparável, nula capacidade reivindicativa e não dispondo sequer do óbolo governamental de um rendimento social de inserção. Acresce o enguiço da língua que desmotiva uma escapada emigratória e a confusão ortográfica nos PALOP também não ajuda nada. Custe o que custar teremos de admitir que não existe espaço e oportunidade para todas as personagens. Não duvido, porém, que uma mão cheia delas — as mais aptas em qualquer palco para impressionar intensamente os leitores — serão num futuro próximo convocadas pelo escritor Manuel Monteiro.

© PEDRO FOYOS


TAMBÉM NESTE SÍTIO:
«OS DEZ MANDAMENTOS DO ESCRITOR»
POR MANUEL MONTEIRO
(ESPAÇO "CONVIDADOS")









Em louvor dos socorristas
das palavras em vias de extinção

DEDICADO A BAPTISTA-BASTOS
QUE NESTE MOMENTO TRAVA UM COMBATE DE VIDA




As palavras, as nossas laureadas palavras, músculo e nervo do corpo vivo da língua, estão a morrer. Escritores e jornalistas têm alertado nos últimos tempos para o empobrecimento da língua portuguesa. A par das questões gramaticais, o escritor Manuel Monteiro desenvolveu este tema numa interessante entrevista concedida a Maria João Freitas (revista Alice):
«Por que devemos manter palavras eruditas na imprensa, no ensaio, na ficção? Por uma razão muito simples. Deixar de utilizar as palavras é assassiná-las. E quando morre uma palavra, morre com ela uma chave de decifração do mundo».
Pouco tempo depois, no Jornal de Letras, o escritor Mário de Carvalho abordava, acutilante, o mesmo assunto: «Os pensamentos, os conceitos fazem-se com palavras. Quanto menor for o domínio vocabular, menos acesso temos à realidade e ao pensamento. E há quem esteja interessado nisso. Nos primeiros tempos de Salazar, os professores, na sua maioria republicanos, foram substituídos por regentes escolares que ensinavam a ler, escrever e contar e, na verdade, pensava-se que era isso tão só que os portugueses deviam saber. Que se passa agora? O consumidor precisa de ler Camões e Os Lusíadas, a mitologia? Não. Basta que conheça o vocabulário elementar que lhe permita compreender um anúncio. A pobreza, a miséria vocabular em que estão enclausurados os portugueses é da mesma natureza do ler, escrever e contar que Salazar entendia bastar ao povo».
Por seu turno, Ana Cristina Leonardo inquietava-se há dias no "Atual" do Expresso: «(...)A língua portuguesa anda a empobrecer muito (neste caso, a culpa não é do AO). Leem-se os novos autores e a nossa "cabeça estremece com todo o esquecimento" das palavras».

Há palavras sem conto encerradas na caixa-forte dos valores procedentes das cinco partidas do mundo por onde viajou a língua portuguesa. Levámos umas, trouxemos outras — numa fértil permutação. Palavras antigas. Garrett fazia uma distinção: «Fugi de palavras antiquadas, mas não desprezei as antigas.» Basta ler uma edição original de qualquer romance oitocentista para nos darmos conta do vasto número de vocábulos extraviados ou adulterados que deveríamos recuperar ou assear. Não se trata de uma busca tolinha de palavras eruditas, impenetráveis. Precisamente o contrário: algumas dessas palavras revestem-se de tão imediata e exata definição que representam uma economia vocabular. Necessitaríamos, por vezes, de três ou quatro para expressar a mesma ideia.
Por fortuna ressalvam-se "novos autores" como Manuel Monteiro. Apraz enaltecer os cuidados de um jovem escritor não só pela gramática que tão desonrada anda mas também pelo léxico. Admiro os voluntariosos socorristas das palavras em vias de extinção. Vejo-os como biólogos cultores da recuperação de material genético nas pagelas álgidas de postilas que foram esbodegando-se no milheiral das invernias. Entre os meus dilectos (vocábulo não usado por acaso) avulta Baptista-Bastos, douto sénior a quem me arrima uma camaradagem e admiração de meio século. Sendo leitor amiudado das suas crónicas, sem esforço de memória enumero algumas expressões recorrentes:
preopinante. Não é preciso ir ao dicionário para que este adjetivo nos deixe transparecer um sujeito enfatuado que opina com ignorância, precipitadamente, antecipando-se a outros mais habilitados para o fazer. E tudo isto numa única palavra!
discretear. De discreto. Conversar com discrição, placidamente. Uma expressão próxima mas longe do mesmo significado seria divagar.
cochilar (dormitar). Verbo lindo mais usado no Brasil, já raramente ouvido e escrito em Portugal.
batucar... (...prosa, um artigo, uma notícia, etc.) De batuque. Claro que o verbo está dicionarizado e não se trata de palavra perdida. Registo-a pela originalidade de uma expressiva analogia fonética com o banal teclar numa máquina.
envilecer (tornar vil, miserável). O verbo, tão desusado, é consideravelmente mais áspero que o comum desprezar.

De Manuel Monteiro retenho solífugo, (sole + fugere, fugir) — extravagante definição de uma criatura noctívaga (humana, no seu livro) que execra a luz solar (foge do sol), vivendo em permanência nas trevas. O autor do romance O Suave e o Negro saberá que ao desentranhar esta palavra vai assarapantar muitos leitores? Estou em crer que sim: sabe. Entrevejo-lhe um secreto e voluptuoso propósito de nos fazer perscrutar o dicionário. Foi o meu caso. Está perdoado. O vocábulo é arrevesado, reconheço no entanto que o vizinho noctívago (que vagueia de noite) não possui o mesmo significado.

A propósito de noite, calha bem uma recordação de há trinta anos. Saíra um novo livro de Maria Velho da Costa, comecei a lê-lo... e... tropecei logo à sexta linha da primeira página. A autora está a descrever uma paisagem noturna, escura, que esconde uma bela e quieta cidade. Poderia transmitir a visão daquela cidade como se a mesma fosse uma joia protegida pelo arvoredo e pela própria noite densa. Em vez disso escreve uma só palavra: escrínio. Escrínio?! Que bicho medonho é este?
Perguntei a quem estava próximo:
— Escrínio. Sabes o que é um escrínio?
A ignorância veio afagada de ironia:
— Incrível não saberes o que é um escrínio!
Fui ver. Escrínio, meus senhores, em português de lei quer dizer guarda-joias.
Não mais esqueci a palavra e depois disso tomei conhecimento que se publicaram pelo menos três livros em língua portuguesa integrando a palavra escrínio nos respetivos títulos.

Comigo, que já me vou demorando na vida quase tanto como os zambujos, acontece-me uma felicidade infantil de cada vez que aprendo uma palavra nova.


Em tempo: zambujo, ou seja, uma oliveira brava.


© PEDRO FOYOS

Fev. 2013






NOS QUINZE ANOS DA MORTE DO ESCRITOR

Antunes da Silva
A busca impossível de um sinónimo para "Liberdade"

TEXTO INSPIRADO NUMA CRÓNICA DE GALOPIM DE CARVALHO




Antunes da Silva e frontispício do romance "Suão"
com dedicatória a Pedro Foyos (1961)


Entrevistei Antunes da Silva quando, muito jovem no ofício, dava os meus primeiros passos no diário República. Estávamos no início dos anos sessenta e a conversa decorreu numa salinha contígua à Redação. Antunes da Silva apareceu afogueado, pedindo desculpa pela meia hora de atraso, pois viera de muito longe. O homem que tinha à minha frente, retintamente alentejano e com o Alentejo em todos os seus escritos, era um humilde "caixa" numa grande empresa fabril. Autor de perto de uma dezena de livros, alguns traduzidos no estrangeiro, mas tão discreto que muitos camaradas de trabalho desconheciam-lhe essa outra vida de poeta e ficcionista. A iniciativa de o entrevistar justificava-se porque o seu primeiro romance, Suão, um livro de uma espantosa dimensão humana, esgotara-se em pouco tempo e fora lançada entretanto segunda edição. Tarefa espinhosa para o entrevistador, exigindo astúcia e arte em sopesar, na redação final, cada frase, cada palavra. Os censores, lida a primeira vintena de linhas, supunham uma perda de tempo prosseguir e numa só bruta penada cortavam de alto a baixo. Predisposição tanto maior quanto era sabido que Antunes da Silva já sofrera penosas esfregas nos cárceres políticos e um seu livro de poesia, Esta Terra que é Nossa, fora apreendido poucos anos antes.

De pouco valeram as previdências. A entrevista escapou ao gume a eito, todavia a Censura não deixou de desfigurar-lhe as entranhas. Medonho. Apesar disso, o diretor Carvalhão Duarte e o chefe de Redação Artur Inez manifestaram-se a favor da publicação do texto sobrevivo, o que se fez após anuência de um atordoado Antunes da Silva, soprando à minha frente palavras inaudíveis. Foi necessário reformular o título original, porque o corte parcial no mesmo (um trecho que incluía a palavra "liberdade", de impossível sinonímia) adulterava o sentido da declaração. De entre os documentos da Censura que conservo, reencontro um verbete rabiscado sobre esta entrevista, revelador da especial embirração dos censores pela palavra "liberdade". Apetecia desembestar assim: «É que não há sinónimo! Então não veem?! Não há!». Desse modo, quando Antunes da Silva declarava «...um escritor digno não pode nunca desinteressar-se da liberdade do seu povo», o censor manhoso substituiu o vocábulo "liberdade" por "problemas". E o que o público leu, em resultado desta martelada, foi: «...um escritor digno não pode nunca desinteressar-se dos problemas do seu povo». De notar que o próprio preceituado legal atinente ao "modus operandi" censório (o célebre Decreto-Lei nº 26589, de 1936) não permitia intromissões ou alterações redatoriais por parte do censor. Letra morta, como bem testemunharam durante décadas os jornalistas democratas. (Há um caso assombroso que um dia revelarei com a respetiva prova tipográfica: o censor reescreveu todo um período de seis linhas, narrando o acontecimento "à sua maneira"...).

Tempos depois, o historiador Augusto da Costa Dias, que desempenhava a gestão literária de uma editora de referência — a Portugália, indissociável da senda política de acolher «autores portugueses socialmente comprometidos» —, disse-me pesaroso que novo livro da casa havia sido apreendido: Terra do Nosso Pão, de Antunes da Silva. Mais um.

Afligia saber que um autor com dois ou três livros proibidos transitava para o limbo de "autor proibido". As editoras não o publicavam. E se alguma tivesse a audácia de publicar-lhe uma obra, qualquer que ela fosse, sofreria nas livrarias uma vida efémera: um, dois, três dias. Com alguma ventura poderíamos adquiri-la junto de livreiros intimoratos, exímios na prestidigitação do escondimento e oportuna desocultação de livros malditos encafuados como mercadoria pestilenta nos esconsos da loja. Parecia magia. Um espontâneo feitiço. Era-o de certo modo. Prefiro, contudo, chamar-lhe coragem. Antunes da Silva e muitos-muitos mais mereciam essa coragem.

21 DEZEMBRO 2012
(NOS 15 ANOS DA MORTE DE ANTUNES DA SILVA)



© PEDRO FOYOS






Joaquim Benite
A Censura não o deixou ser poeta




No dia da morte de Joaquim Benite evocamos o seu grande sonho dos vinte anos: ser poeta. Chegou a estar planeada a edição de um pequeno livro com poemas seus, cuja entrega de originais eu iria intermediar junto de uma empresa tipográfica de Lisboa, a histórica Casa Portuguesa, na Rua das Gáveas. Entretanto, o projeto literário claudicou quando os amigos mais próximos, em geral jornalistas experientes na andança quotidiana com a Censura, começaram a evidenciar uma certeza quase absoluta de que o livro seria apreendido tão logo chegasse às livrarias. Eu próprio me deixei induzir por essa infalibilidade ao reler uma dezena de poemas que aludiam com maior ou menor subtileza à guerra colonial. Resolveu-se um dia testar a perspicácia censória enviando um dos poemas do livro ("Primeiro poema para a manhã") com alguns versos arrojando uma certa têmpera "subversiva". Sem demora se mostrou fundamentado o temor dos jornalistas veteranos: foi proibido, dessa vez riscado a lápis vermelho (não raro, mas pouco comum), talvez para o moldar ao verso «(...) e cerram-se janelas pombas de luto vermelho»... Excluir do livro os poemas mais "problemáticos" era algo que justificadamente horrorizava o autor, pelo que o anseio editorial expirou nesse mesmo dia.

Mais tarde, já depois da Revolução, num encontro casual sugeri-lhe a recuperação do projeto. Joaquim Benite afastou a ideia. Disse-me que a poesia representara um ciclo que estava encerrado para sempre, tal como abandonou o jornalismo. O teatro passou a preenchê-lo por inteiro. Uma paixão para o resto da vida. Até hoje.

Ter-se-á perdido um grande poeta, em contrapartida ganhámos uma figura memorável na história do teatro português. E isso também é poesia.

                                                              

Em homenagem a Joaquim Benite reproduz-se o referido poema, na prova original da proibição da Censura, e também um outro igualmente cortado meses antes. Ambos inéditos há cinquenta anos.


© PEDRO FOYOS

5 DEZEMBRO 2012



POEMA PROIBIDO 1


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POEMA PROIBIDO 2


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Carlos Franco e as gradações infinitas
de um país retratado a preto e branco




Carlos Franco pertence ao grupo intemporal de artistas fotográficos que sabem interpor entre eles e o mundo um foco de observação tão criativamente original que sempre surpreende. Também uma luz mágica, essa outra arte. E um olhar de ciência por inventar, um olhar exercitado por perceções ingénitas, ou seja, um olhar que não se aprende nos livros. Predicados essenciais que definem um grande fotógrafo, não só na área artística mas também jornalística. Com essa sageza e a instantaneidade pura que nenhuma outra arte oferece, Carlos Franco reuniu neste livro quase duas centenas de fotografias a preto e branco sob o título feliz de nós, os outros — porque, na realidade, a imagem dos outros é-nos devolvida como sendo a de nós próprios, todos nós, espécie de marca de água que deixa transparecer página a página uma sociedade urbana ou campesina com seus ritos, solidões, contrastes, risos e tristezas, gritos e silêncios. E silêncios gritados.

Esta edição concede-nos uma hospitalidade familiar, não por acaso distintamente portuguesa. Um retrato do País em todas as gradações possíveis, do preto-preto ao branco-branco, do íntimo ao exposto, da cidade luminosa ao rural de sombras. Com a autenticidade de um repórter escrupuloso que se deslumbra com a realidade – de imediato e mentalmente convertida em arte – mas não a altera, preocupa-se em transmiti-la intocada. A tão menosprezada cultura das imagens deveria pautar-se por esta norma ética, separando o elemento documental do ficcional, territórios fidedignos, justificadamente amados, possuindo fronteiras comuns todavia em absoluto imiscíveis. Na extensão apreciável do livro não encontramos imagens que indiciem distorções "criativas", veladas encenações, prosápias caricaturais, "poses para o retrato". Desfilam centenas de personagens iguais a outras tantas com as quais nos cruzaremos a cada passo, contudo, só agora, intermediadas pela câmara de Carlos Franco, ganham visibilidade e uma importância surpreendente. E sorrimos numa página, angustiamo-nos na seguinte. Talvez nos angustiemos apenas passadas três páginas, porque irrompe com maior frequência a dissonância eivada de ironia, a começar pela espantosa imagem da capa. Uma fotografia que nos faz sorrir será sempre uma boa fotografia.

Vale também nota de excelência o grafismo e, em geral, a qualidade técnica. Qualquer profissional de artes gráficas com currículo na área editorial sabe que a reprodução de fotografias a preto e branco é um desafio incomparavelmente superior ao do mais usual procedimento quadricromático. Recordo Sebastião Rodrigues, bom amigo que nos deixou há década e meia. Artista gráfico dos maiores que Portugal teve, mudou radicalmente, pelos anos sessenta e setenta, o paradigma do design entre nós. A ele se devem esplendorosas criações, como, entre outras, a do histórico "Almanaque" (onde nos conhecemos, no tempo de José Cardoso Pires) e da imagem gráfica da Fundação Gulbenkian. Passava parte dos dias encafuado nas litografias de Lisboa. Cruzámo-nos numa delas, orientava o artista a impressão complexíssima de um álbum do Eduardo Gageiro (exaltando, como sempre, o preto e branco). Sebastião Rodrigues pugnava pelo consenso universal à volta de uma nobilíssima teoria gráfica: sendo certo que Deus criou tudo quanto existe no mundo, incluindo mil e uma cores, não é menos verdade que pertence a uma criatura herética, chamada "fotógrafo", a criação suprema, porque infinita, das gradações que cabem entre o preto e o branco.

Eduardo Gageiro tornou-se o mais fervoroso evangelista daquela doutrina, tanto que não dispensava o magistério de Sebastião Rodrigues no processo não só criativo mas também técnico dos seus álbuns de fotografias. A preto e branco, claro. As imagens passavam pela máquina uma vez e outra e outra, em obediência às sacrossantas gradações. Os impressores saíam exaustos ao cabo da jornada. O livro evoluía lento, vigiado, corrigido, recorrigido, a tinta temperada de agruras, a oficina inundada de provas, reprovas e contraprovas, excedendo dez vezes o tempo e trabalho padronizados para o género "normal". Dessa vez, numa litografia do Bairro Alto, disse-me o paciente Sebastião que as casas gráficas de Lisboa sofriam de vez em quando um abalo sísmico do grau dez quando corria a notícia de que o Gageiro tinha pronto o plano de um novo livro de fotografias. A preto e branco, claro. «Seremos nós, desta vez, as vítimas?!» — afligia-se o pessoal das gráficas.

A impreterível exigência de qualidade de impressão que merece o notável trabalho artístico de Carlos Franco leva-me a desejar que tais episódios se repitam nas ocasiões dos seus próximos álbuns de fotografias. A preto e branco, claro. Deus resignar-se-á uma vez mais. Sebastião Rodrigues, na estrela onde mora agora, sorrirá sabiamente.


© PEDRO FOYOS







           25 abril 1974. Faltavam dez minutos
           para as nove da manhã...

TEXTO PUBLICADO NO DIA DA MORTE DO JORNALISTA VÍTOR DIREITO
EM 30 DE MAIO DE 2009




Primeira página do diário "República"
( última edição do dia 25 )
com dedicatória do diretor Raul Rêgo a Pedro Foyos

A verdade é que as Forças Armadas ainda não haviam tomado
o poder. À distância do tempo, observo complacente aquele
título apressado e sorrio ao imaginar que uma moderna aula
de jornalismo poderia ser preenchida com um tema assim
formulado: «Casos muito excecionais em que o
arrebatamento patriótico de um jornalista poderá legitimar
uma escorregadela deontológica».


Há memórias tão avassaladoras que à distância do tempo parecem firmadas numa pura irrealidade. Mas são reais, bem reais. Na manhã de 25 de abril de 1974, foi o Vítor Direito, tendo a seu lado o diretor Raul Rêgo, quem nos enfrentou em plena Redação do diário República e nos comunicou naquele jeito determinado, de quem lhe pertencia sempre a última palavra: «Meus amigos, o Dr. Rêgo e eu decidimos que o jornal não vai hoje à Censura! Mais: já pedi ao chefe Jacinto que mandasse compor a frase "Este jornal não foi visado por qualquer Comissão de Censura". Sairá em rodapé, a toda a largura da primeira página!»

Ocorreu de imediato aquele instante luminoso, inesquecível, de todos nós a batermos palmas, as lágrimas a picarem-nos os olhos. E foi de facto o República, um vespertino, que naquele 25 de Abril se converteu no matutino histórico de ser o primeiro jornal português a gritar que a Revolução estava na rua. O ato inicial de imensa coragem de pôr o jornal a circular, sem o submeter à Censura, aconteceu quando faltavam dez minutos para as nove da manhã. Ninguém – ninguém em absoluto! – poderia prever naquele momento qual seria o desfecho do movimento militar. Privilégio meu de, como jornalista, ter como diretor e chefe de Redação (depois diretor-adjunto) dois homens extraordinariamente corajosos: Raul Rêgo e Vítor Direito. O jornal fez várias edições nesse dia, porém a manchete permaneceu intocada desde a primeira: «As Forças Armadas tomaram o poder.» Antecipação problemática de um facto que só viria a obter plena confirmação algumas horas depois. À distância do tempo, observo complacente aquele título apressado e sorrio ao imaginar que uma moderna aula de jornalismo poderia ser preenchida com um tema assim formulado: «Casos muito excecionais em que o arrebatamento patriótico de um jornalista poderá legitimar uma escorregadela deontológica».

O próprio Raul Rêgo relata com palavras suas como evoluiu, quarenta minutos depois, a situação de desobediência à Censura. O depoimento foi publicado na edição do Diário de Notícias de 9 de maio de 1990:

Aí por volta das 9 e 30, estava a revolução na rua, telefona-me o diretor do "Exame Prévio", perguntando pelas provas. E eu: «Sabe, senhor doutor, hoje tomo eu a responsabilidade inteira de quanto sair no jornal!» — «Veja lá. Nunca se sabe o resultado de certos movimentos e, quando não correm como esperamos, podem ter graves consequências!» — «Muito obrigado. Mas a responsabilidade é inteiramente minha».

Quantas memórias afluem e se atropelam nesta hora de vazio [falecimento de Vítor Direito]. No chamado Verão Quente de 1975 as nossas vidas estiveram em perigo. Por duas vezes: primeiro em Setúbal, depois no Montijo. Corremos uma boa parte do País, de cidade em cidade, a fazer um jornal democrático, denominado Jornal do Caso República (com tiragens de cem mil exemplares), espiando das janelas das tipografias os cercos que se reforçavam e armavam civil e despudoradamente com metralhadoras G-3. «Ena, Pedro, tanta espingarda só para dois homens, isto é uma honra!» — brincava ele, e desse modo me transmitia a coragem que se desvanecia num medo jamais sentido. Escrevi há tempos no Diário de Notícias, no âmbito de uma efeméride: «Não existiriam no mundo homens mais pacíficos do que nós, todavia eram tão estranhos aqueles tempos, tão estranhos que por alguns dias andámos armados.» E mais uma vez o Vítor Direito, jocoso, em surdina: «Olha, esta é uma arriscada especialidade jornalística que não se aprende em nenhum curso: o jornalismo armado...» Quantas memórias! Certa vez, em Coimbra, fazíamos ali um jornal, estávamos exaustos, eram quatro da manhã e caíamos de sono. Então Miguel Torga e o Padre Valentim Marques conduziram-nos a uma pensão para descansarmos um pouco. E deixámos a rececionista atónita ao pedirmos que nos acordasse duas horas depois...

Quantas memórias!


© PEDRO FOYOS






Alguém se lembra ainda
dos "caldinhos" na gíria jornalística?



MEMÓRIAS DE FERNANDO PIRES
"OS MEUS 50 ANOS NO DIÁRIO DE NOTÍCIAS"


NA TARDE DE 30 DE MARÇO DE 2012, A SALA ARTUR PORTELA DA CASA DA
IMPRENSA ENCHEU-SE PARA ASSISTIR AO LANÇAMENTO DESTE LIVRO DE
MEMÓRIAS DE FERNANDO PIRES. A APRESENTAÇÃO ESTEVE A CARGO DE MÁRIO
MESQUITA, ANTIGO DIRETOR DO DN, E DO EDITOR JOSÉ MARIA RIBEIRINHO.

MUITOS ABRAÇOS, APLAUSOS, TAMBÉM ALGUMAS LÁGRIMAS.


O relato memorialístico de Fernando Pires tem início a meio do século XX, quando começa a frequentar a Redação deste matutino e pouco depois, em 1950, é promovido a repórter. Coincidiu com um período de transição na história do jornalismo português. As décadas anteriores ficariam marcadas por profissionais lendários de um ofício bem temperado de boémia e de aventuras feéricas. Foi o tempo em que o Repórter X (Reinaldo Ferreira) fervilhava em crimes e mistérios, Rocha Martins afrontava os governantes em artigos que preenchiam toda a primeira página do diário República (apregoado no Rossio de Lisboa com o vibrante "fala o Rocha!"), e, logo pela manhã, Acúrsio Pereira punha o País inteiro a chorar com lancinantes reportagens sob títulos do género: «Ladrões de Crianças – O nosso jornal descobre uma temível quadrilha de bandidos – Nas garras dos malvados estão ainda duas crianças!» (sic). Foi o tempo em que a concorrência entre jornais e entre repórteres assumia não raras vezes aspetos de inaudita ferocidade: para obter a notícia, completa, em primeira mão, exclusiva, valia tudo, à exata semelhança de lanceiros inimigos no fragor da batalha. E nesse minuto decisivo cessavam entre os competidores todas as normas de boa camaradagem – as quais, aliás, prontamente eram retomadas tão logo a edição transitasse da rotativa para as mãos dos ardinas...

Nos anos cinquenta e sessenta, quando Fernando Pires consolida a sua vocação jornalística, o ambiente nas Redações deixou de ser anárquico, menos buliçoso, mantém-se inevitavelmente febril mas em geral ponderado, refletido no tratamento das matérias, inclusive as sensacionalistas. Continua longínquo o advento das escolas de jornalismo, contudo nota-se maior apetência pelo didatismo essencial, também pela ética e deontologia da profissão porque, precisamente, já é mais profissão do que ofício. A boémia declina. A irreverência e a vivacidade crítica extinguem-se no sufoco crescente da Censura (os textos de Rocha Martins seriam cortados na totalidade e não apenas parcialmente como acontecia antes). Uma nova geração, na qual me incluo, muito inspirada na imprensa francesa, introduz técnicas gráficas e jornalísticas que podemos avaliar hoje como precursoras da reportagem moderna. A vetusta tipografia da composição em chumbo renova-se, parece de súbito rejuvenescer, mercê de talentosos jornalistas cujo exercício profissional ultrapassava imenso a convencional escrita (significativo o facto de existir à época a categoria de "redator-paginador"). De entre os jornalistas que concebiam a tipografia como uma extensão natural do espaço redatorial, repartindo o tempo entre um e outro desses espaços, apraz-me recordar dois com quem tanto aprendi: Victor Direito e Baptista-Bastos.

Os "Mestres" (com maiúscula)

Brilhante contador de episódios tecidos em múltiplos registos, do risível ao dramático, Fernando Pires valoriza no seu livro a pequena história por meio da qual nos transporta a um mundo tão antigo ou tão próximo consoante a idade do leitor. Os mais novos estranharão, por exemplo, a repetição do vocábulo "Mestre" (com maiúscula) - expressão caída em desuso pela circunstância de se nascer, cada vez mais, já ensinado. De qualquer dos modos, haveria assim tamanha quantidade de "Mestres"? Porventura nem mais nem menos, em proporção, dos que existirão hoje. Naquele tempo, porém, "escola de jornalismo" era um conceito desconhecido em Portugal, e alguém teria de ensinar os neófitos na profissão. Esses eram os "Mestres", estatuídos para a vida inteira. Cada um de nós tinha os "Mestres" em exclusividade, tão nossos e tão especiais que revivem e convivem mesmo depois de morrerem. Sublinhamos a parte em que Fernando Pires disserta como "Fazer escola de jornalismo na aula diária dos jornais", lembrando, entre outros, nomes como os de Mestre Acúrsio Pereira, chefe de Redação de O Século, que contactou algumas vezes pelo telefone e de quem sempre ouvia falar com o maior respeito, amizade e admiração. Na morte de Acúrsio Pereira, em 21 de fevereiro de 1977, Fernando Pires dedicou-lhe, no DN, um artigo em que realça a vocação daquele jornalista para «ensinar e amparar os que chegavam», sabendo-se que: «A dedicação de um Mestre, mesmo quando feita, também, de uma necessária intransigência, de uma certa intolerância, até, por vezes, de uma ponta de azedume, deixa sinais inapagáveis. Um tanto porque essa dedicação tem de ser ganha, outro tanto porque tem de se saber merecê-la.»

Fernando Pires faz sentir, entretanto, o quanto hoje rareiam «os casos de vocações para fazer jornalistas e mais rareiam os casos de quem venha para a profissão por gosto e com vontade de aprender». E diz: «O facto de os dias de cada um serem mais absorventes e maiores as preocupações que nos dominam, não explica que haja cada vez menos quem se entregue ao jornalismo com paixão – e honre, assim, os nomes ilustres daqueles que, como Mestre Acúrsio, fizeram do jornalismo sacerdócio e de formar jornalistas um permanente e renovado culto e de amor pela acima de todas nobre profissão de jornalista.»

Enfim, os "caldinhos"

Surge então uma das mais saborosas crónicas do livro, trazendo emoção aos jornalistas que iniciaram as suas carreiras nessa época. Alguém se lembra ainda dos "caldinhos"? Os "caldinhos", como ficaram perpetuados na gíria jornalística, eram uma prática de sublime camaradagem e solidariedade profissional. Não surpreende que Fernando Pires tenha dedicado aos "caldinhos" espaço nobre na sua obra. Gratamente, homenageamo-lo reproduzindo neste sítio de partilha o seu testemunho:


«Dás-me um caldinho?...»

A evocação de mestre Acúrcio Pereira teve o efeito de me fazer acudir à memória inúmeros contactos telefónicos entre as redacções de O Século e de o Diário de Notícias, nos tempos em que nas salas dos jornais se utilizavam a máquina de escrever e o espeto para arquivar telexes e não se sonhava com telemóveis…

Havia uma sadia concorrência entre estes dois matutinos de Lisboa. Em cada uma das redacções era habitual assinalar-se o furo jornalístico, a que chamamos "cacha", conseguido por um jornal e que o outro não lograra sequer "cheirar". O que falhara, tinha a obrigação de tudo fazer para, na edição seguinte, publicar desenvolvimentos sobre a notícia que na véspera havia privado os seus leitores e assim se redimir do opróbrio da omissão.

Nas redacções vivia-se num permanente frenesim e a toda a parte se acorria em busca de informações de modo a não se falhar nenhuma notícia. Para qualquer redacção desse tempo, não falhar um assunto noticioso, todos o sabíamos, era positivamente uma questão de honra.

Porque assim era, quando na Redacção do DN, na Redacção de O Século ou em qualquer outra, se dava conta da ocorrência de uma notícia sobre a qual não se dispunha de qualquer informação, ou se tornava praticamente impossível obtê-la até ao fecho da edição, a única saída era procurar essas informações junto de camaradas de outro jornal.

Com humildade e sem cerimónias telefonava-se para a Redacção do jornal que intuíamos poder ter a notícia sobre a qual não dispúnhamos de elementos e perguntávamos: «tens a notícia do acidente em Rio Maior, dás-me um caldinho?» Do lado de lá ouvia-se a resposta: «vou passar-te a fulano, para te dar um cheirinho…»

Esta relação entre as Redacções dos jornais era muito genuína. Apesar da concorrência, ninguém desejava passar pela vergonha de falhar uma notícia. A prestação de dados e informações ocorria numa relação de garantida confiança: quem recebia "o caldinho" sabia de antemão que os dados que lhe estavam a ser passados eram fiáveis, fidedignos, e que ao seu interlocutor jamais lhe passaria pela cabeça fornecer-lhe elementos falsos. Quem recebia "o cheirinho" também sabia que o seu "salvador" não estava obrigado a dizer-lhe tudo, isto é, a facultar-lhe a notícia completa, mas somente a prestar-lhe as informações mínimas e indispensáveis para que não falhasse o acontecimento. E, quando se tratava de eventos que envolviam discursos, o "caldinho" era servido através da prova tipográfica da oratória.

Algumas vezes tive de pedir um "caldinho" a mestre Acúrsio, em O Século; noutras ocasiões recorreu ele ao Diário de Notícias, onde o atendi. Não guardo a contabilidade dos "caldinhos", nem isso importa, pois em causa não está qualquer balanço entre "deve" e "haver". Lembro-me, isso sim, do gozo quando dávamos uma "cacha" no DN e O Século falhara o assunto; também recordo a frustração e os sarilhos quando acontecia ser o DN a falhar…

A memória que registo dos "caldinhos" torna presente o sentido de convivência e de relação entre oficiais do mesmo ofício que conheciam as dificuldades e obstáculos da profissão e, assim, estabeleciam regras informais de entreajuda.

As barreiras e escolhos que se interpunham no dever, confrontavam todos os jornalistas e, naturalmente, levava-os a serem mais compreensivos e solidários com os desaires alheios. Talvez por isso se tratassem por camaradas. Hoje, a esmagadora maioria trata-se por colegas e já não há "caldinhos"…



A propósito de "barreiras", peço licença a Fernando Pires para aditar uma nota que hoje poderá suscitar pasmo. Não existiam barreiras resultantes da ideologia política dos intervenientes nos "caldinhos". Eu dei muitos "caldinhos", muitos outros recebi. Vezes sem conta não existia entre o prestador e o recebedor da ajuda a mínima afinidade política. A informação era confiada de bom grado por um camarada a outro camarada. ("Camarada": outro vocábulo que se tornou problemático mas que entre jornalistas e tipógrafos nunca teve conotação política).

No meu jornal desse tempo (o República, único diário assumidamente oposicionista) praticava-se uma exceção: não se davam "caldinhos" ao Diário da Manhã. Este órgão oficioso do regime injuriava-nos a toda a hora. As injúrias eram o menos. Miserável, vileza maior era a conduta cobarde que as injúrias desnudavam. Esse jornal sabia que a Censura jamais permitiria que ripostássemos.


© PEDRO FOYOS


TAMBÉM NESTE SÍTIO:
Crónica
"O terno amante com cara de mau"
de Maria Augusta Silva










Uma aliciante viagem histórica
pela política nos jornais portugueses

PARA MEMÓRIA PRESENTE E FUTURA






CARLA BAPTISTA: Apogeu, Morte e Ressurreição da Política nos Jornais Portugueses – Do Século XIX ao Marcelismo. Escritório Editora, 472 pp. Apresentação de Joaquim Fidalgo.     ___________________________________________________________________________


Portugal é um país privilegiado em terra abundante e fértil para os historiadores que pretendam lavrar o tema das relações entre a política e o jornalismo. Carla Baptista teve de parar no limiar das 500 páginas mas não duvido que poderia duplicar ou triplicar o número se vertesse para este livro todo o manancial de informação e de "achados" resultante das suas pesquisas iniciadas há uma década, em parceria com Fernando Correia, outro notável investigador das linhas e entrelinhas do ofício jornalístico nos tempos da Ditadura ("tempos", no plural, porque sempre incluo o consulado marcelista). Um acervo cuja moldura histórica surge consideravelmente ampliada neste trabalho porque a autora estabeleceu como ponto de partida a imprensa novecentista, período da monarquia constitucional, permitindo assim captar-se o clima político que já nos primórdios moldava os jornais aos ditames dos vários poderes.

O tema não está esgotado, porém pode afirmar-se que, depois da obra clássica (mas generalista) de José Manuel Tengarrinha, esta de Carla Baptista constitui uma investigação sem paralelo na historiografia da imprensa portuguesa.

O rigor, a objetividade, a escrupulosa citação de fontes e de testemunhos refletem-se no número de notas de pé de página: mais de 700, algumas bem extensas, ou seja, raras são as páginas que não apensam referências documentais. Todavia, o pendor académico (o livro teve na sua génese uma investigação de doutoramento) é muito atenuado pela narrativa central, admiravelmente desenvolta, impressiva, estruturada quase sempre em torno de episódios, uns dramáticos, outros hilariantes ou atrozmente infamantes. Essas pequenas histórias superpovoam o livro, página a página. As ignominiosas, que batem em profusão as demais, convém sublinhá-las para memória presente e futura.


© PEDRO FOYOS




Manuel da Fonseca, 100 anos
Um poema que a Censura proibiu

REVELAÇÃO NO DIA DO CENTENÁRIO

[15 OUTUBRO 2011]

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[© ARQUIVO HISTÓRICO DE IMPRENSA | PEDRO FOYOS]

Nota prévia. A composição tipográfica deste poema processou-se de forma apressada, tendo o mesmo seguido para a Censura sem passar pelos serviços de revisão. Tal afogadilho não permitiu detetar uma inversão da antepenúltima e penúltima linhas. A sequência final exata pode ser conferida no original manuscrito.


Em meados dos anos sessenta, um grupo de jornalistas amigos do escritor Manuel da Fonseca decidiu prestar-lhe uma homenagem, singela mas tocante, a pretexto das bodas de prata da vida literária do autor de romances portentosos como Cerromaior e Seara de Vento, de contos inesquecíveis reunidos nos volumes Aldeia Nova e O Fogo e as Cinzas, e de uma obra poética que, pouco tempo antes, o historiador Augusto da Costa Dias, então diretor literário da editora Portugália, antologiara para a histórica coleção Poetas de Hoje.
Porém, o livro de estreia que historicamente autenticava as bodas de prata era o humilíssimo Rosa de Ventos, três dezenas de poemas. Foi editado em condições adversas, num tempo – diria o homenageado – «tão difícil para a voz dos homens.» Manuel da Fonseca não se cansava de distinguir os «queridos camaradas» que haviam tornado possível a impressão e distribuição do livro, citando-os numa escrupulosa ordem alfabética: Alves Redol, António Gameiro, Fernando Piteira Santos, Jorge Domingues, Manuel Campos Lima e Mário Dionísio. Todos malquistos pelo regime: à insubmissão acrescia o perigo de serem cultos.
Já depois da homenagem, que decorreu em circunstâncias quase clandestinas, o jornalista Miguel Serrano sugeriu que também o nosso jornal tributasse publicamente a admiração de todos nós por Manuel da Fonseca. Nessa época eu tinha à minha responsabilidade a coordenação dos suplementos e programou-se de imediato uma página dedicada ao escritor. O próprio Miguel Serrano, seu conterrâneo, incumbir-se-ia de um “perfil biográfico”, Eduardo Valente da Fonseca faria a apresentação do conjunto da obra, poética e de ficção. Contactei telefonicamente o escritor para lhe dar conta da iniciativa e pedir que elegesse um poema de sua especial predileção, o qual ocuparia lugar de relevo na página. Passado algum tempo, recebi das suas mãos o belo poema com o título “Aldeia”.
Sabia-se que Manuel da Fonseca estava no Index Prohibitorum da Censura (lista negra de nomes que nem sequer podiam aparecer na imprensa) em consequência do seu romance Seara de Vento. Mas o poema selecionado era de uma tão grande e bela candura que acreditámos não vir a ser cortado. Enganámo-nos. Chegou a prova da Censura e logo nos sentimos regelar numa desordem de espantos e furores. O ferrão censório não poupara uma só linha, uma só palavra, uma só letra.
Manuel da Fonseca. Homem de imenso bom humor, temperamento gracejador, sorriso bondoso, olhar e fala e gestos envoltos na peculiar bonomia alentejana. Guardo dele esta imagem. Mas no dia em que voltou ao nosso jornal e lhe mostrámos o seu poema zurzido com o ferrete “CORTADO”, o carimbo impetuoso, a sangrar o papel, relanceou a prova tipográfica e fechou os olhos, uma angústia remordida por detrás dos lábios também trancados, todo ele trancado numa fortaleza de silêncio.
Em silêncio lhe deu Miguel Serrano o primeiro de muitos abraços.
Dir-se-ia que cumpríamos um rito lutuoso, e na verdade era-o: tinha morrido um poema.


© PEDRO FOYOS





           EM DEFESA DO PLURALISMO DEMOCRÁTICO

Reflexões sobre os pequenos partidos
que só servem para atrapalhar o sistema

RESPOSTA A MIGUEL SOUSA TAVARES


Miguel Sousa Tavares (MST), um dos líderes do jornalismo opinativo da moda, faz na última edição do Expresso um balanço das eleições de há uma semana, dedicando espaço alargado aos chamados "pequenos partidos". Destes, também denominados "partidos sem representação parlamentar" e que foram em número de doze nesta campanha, MST afia o dente em relação a dois, os que conseguiram transpor a portagem para futura subvenção estatal (mais de 1% dos votos expressos) e estiveram muito próximos de lograr um deputado no Parlamento. Um desses grupos partidários, de que faço aqui a defesa por razão única de franca afeição, é o Partido pelos Animais e pela Natureza (PAN). Refere então o líder do colunismo político: « (…) os 57.000 [votos] dos Animais, dos quais metade deve ter sido por erro no preenchimento do boletim

Ou seja, por distração. Humilhante.

MST concebe os pequenos partidos – dito de outro modo: os que não são ainda suficientemente grandes segundo a sua presciente bitola – como um género singular de danos colaterais, difíceis de evitar, que a democracia inflige ao sistema. São um empecilho. Uns empatas. Virá o dia em que se inventará um modo discreto de os exterminar logo à nascença, porém, para já, aquela carrapata da democraticidade, da conversa mole da cidadania e de outras excentricidades modernas impõem resignação. Se um ou outro partidozinho salta, endiabrado, a cancela e invade o feudo dos "grandes", atrapalhando-os no abnegado esforço da salvação da pátria, o melhor será levar a ousadia à conta de distrações de uns tontos eleitores. Este é o pensamento de MST que, no artigo em referência, vai dando as primeiras palmadinhas de incentivo para se «mudar a lei dos partidos». Assim, concluo eu, acabar-se-á de vez com as distrações.

Não se percebe bem se a momentânea deficiência física ou mental (ou ambas) de não colocar a cruzinha na quadrícula certa se restringe aos dois dos "pequenos" mais votados nestas eleições ou se alarga aos dez restantes. Porque, sendo assim, deparamo-nos com o facto inquietante de ter havido metade dos votantes nos "pequenos", isto é, mais de 100 mil pessoas, que na solidão depressiva da cabina de voto foram vítimas de fugazes epilepsias que as levaram a colocar a cruzinha num sítio indesejável. Em reforço da necessidade de este surto patológico ser de imediato estudado por sociólogos, politólogos e sobretudo por médicos especialistas das chamadas "doenças dos movimentos involuntários" acresce uma ocorrência não menos impressionante: nas eleições de há uma semana houve perto de 150 mil cidadãos que se deslocaram às assembleias eleitorais para, obviamente, votarem num dos "grandes partidos" e cuja distração, chegados ao local, foi ao ponto de introduzirem na urna o boletim em branco.

É honesto reconhecer que MST se guindou à liderança do jornalismo opinativo por mérito próprio. Já uma vez escrevi que lhe admiro a qualidade da escrita e o desassombro com que tem molestado muitos bem-pensantes da nação. Porém, nos últimos tempos, MST é tomado pelo delírio de tudo e todos desafiar, num estilo briguento, sempre azougado, quantas vezes desprovido de racionalidade, de sensatez, como aconteceu esta semana. Este MST humilha com crueldade pessoas de bem. Este não é o MST com quem trabalhei há perto de quatro décadas num jornal que muito se bateu pela instauração da democracia em Portugal. Um pequeno-grande diário de luta também pelo pluralismo democrático, procurando acolher todas as vozes. Esse foi o tempo em que o País assistiu à organização, num breve espaço de tempo, de mais de vinte partidos, facto jubiloso para quantos nunca deixaram de acreditar na validade do confronto em liberdade de ideias e de causas, observando, bem entendido, as exceções constitucionais. O estreante MST viveu essa alegria, como todos nós, jornalistas livres e independentes, a maioria já com cadastro e penas sortidas. Todas as vozes, repito, tinham o seu espaço editorial, malgrado – tenho de o admitir – algumas violentarem a nossa consciência por força do extremismo e intolerância.

Um dia deixou de ser assim. O jornal diário de que fui cofundador sob o lema do pluralismo deixou de o ser. As páginas já não se franqueavam a todas as vozes, a começar pelas mais pequenas. Depois, apenas a uma ou a outra das grandes. Depois, quase só a uma. Depois, só a uma. Uma das grandes. Então, eu e outros camaradas, de coração em sangue mas altivos, saímos. Nesse tempo MST já não pertencia à Redação. Porém estou muito convicto de que se teria juntado, com a grandeza do seu espírito íntegro, ao nosso grupo de jornalistas desempregados, mas livres, isentos, independentes, democratas, pluralistas.

Miguel: tu, hoje, como procederias?


© PEDRO FOYOS

11/06/2011






História inacreditável do livro cuja venda
 só era autorizada com requisição médica

UM EPISÓDIO DESCONHECIDO DA VIDA DE EGAS MONIZ  


O protagonista desta história extraordinária é um insigne cientista português galardoado com o Nobel de Medicina (em 1949, partilhando o Prémio com Walter Rudolf Hess).
Nome, de todos conhecido: Egas Moniz.

Recuemos a Outubro de 1953, vésperas de Eleições Legislativas. Desde 1934, data das primeiras Legislativas, que os setores oposicionistas manifestavam a impossibilidade de participação em atos eleitorais sem as condições mínimas de liberdade de expressão. Salazar anunciava que os Serviços de Censura atuavam nesses períodos apenas no sentido de «impedir a divulgação de notícias falsas, propagadoras de subversão da opinião pública.» Na realidade, a Ditadura mais não fazia que aliviar brandamente a mordaça, numa grosseira encenação de liberdade, pois todos os textos continuavam a passar pelo crivo censório e muitos vinham proibidos ou golpeados.

Mais uma vez, nesse ano de 1953, o regime proibira a Oposição de fiscalizar as eleições.
Deflagrou então um acontecimento jornalístico que muito viria a apoquentar Salazar.

Foi o caso que o diretor do diário oposicionista República, Carvalhão Duarte (viria a ser o meu primeiro diretor na década seguinte), tomou a iniciativa de pedir a Egas Moniz uma entrevista sobre o momento político. Eram conhecidas as ideias progressistas do cientista, crítico do regime de "Partido Único", porém não se esperava que as suas declarações atingissem um grau de desassombro verdadeiramente estonteante naqueles tempos.

República

A entrevista seguiu para a Censura sem grandes esperanças de que viesse a ser autorizada. Ainda por cima "puxara-se" para título uma das declarações mais explosivas do entrevistado: «A comédia (eleitoral) vai repetir-se!» Todo o texto, aliás, estava enxameado de "subversões" impublicáveis, na ótica do regime. Respigamos um fragmento:

«A liberdade de pensamento é um dos direitos do Homem. (...) A geração de hoje representa uma população separada por largo rio caudaloso. Na margem direita estão os que mandam e gozam as liberdades fundamentais e o bem-estar que dão as brisas do Poder. Podem escrever como melhor lhes correr a inspiração, sem serem incomodados pelos esbirros censurativos. Na margem esquerda acotovela-se a multidão forçadamente silenciosa a quem, de tempos a tempos, se concede a caridade de poderem falar mais desassombradamente, embora dentro de certos limites

No estilo cerimonioso e rebuscado da época, o jornalista pergunta:

«V.Exª tem razões de queixa da tesoura eliminatória da Censura?»

Egas Moniz responde:

«É assim mesmo. Revivem as velhas usanças da Mesa Censória. Mas há dois séculos era uma única entidade que revia livros e publicações. Seguia mau critério, mas era pouco sujeita a flutuações. Hoje, com a expansão da Imprensa, há censores em todos os distritos e províncias ultramarinas. Trabalham à compita, com severidade desigual, mas no propósito de cotarem dia a dia e de cada vez mais alto os seus méritos

O cientista faz depois alusão às páginas da sua obra Confidências de um Investigador Científico que sofreram cortes… (nas suas palavras: ali "ficou gravada a garra do vexame»).
Logo a seguir, o relato do mais inimaginável dos absurdos.
A obra A Vida Sexual, que Egas Moniz começou por dividir em dois volumes ("Fisiologia" e "Patologia") e depois reunidos num só, foi mandada apreender nas livrarias. Arresto policial em todo o País.
O editor sentiu-se seriamente prejudicado, protestou e solicitou do ministro do Interior uma solução menos gravosa. Ao cabo de porfiados esforços, o editor obteve dos poderes públicos uma concessão: a obra poderia continuar a ser vendida, mas... sujeita a requisição médica apresentada ao livreiro!
Como foi possível que esta entrevista tenha vindo a público?
A explicação é breve. A autorização demorou três dias. Esse lapso de tempo corresponde ao trajeto das provas de texto do jornal para a Censura, daqui para a presidência do Conselho de Ministros e sequente devolução, com despacho aprovativo, para a Censura e de novo para o jornal.
Um Salazar iracundo, remordido de furor, terá concluído que os danos de uma proibição seriam muito maiores que os advenientes de uma autorização. Estava-se a poucos dias das eleições. Egas Moniz ascendera a um pedestal pátrio. Depois da atribuição do Prémio Nobel, quatro anos antes, era glorificado no País inteiro. Até a imprensa situacionista e alguns ministros do regime o nomeavam "eminente sábio". A notícia de um Prémio Nobel silenciado durante as eleições causaria brado no estrangeiro. Seria difícil, também em Portugal, ocultar por completo o caso. Não obstante a inexistência de uma fiscalização eleitoral e da expedita ação dos legionários incumbidos das consabidas "chapeladas", podia acontecer algo de imponderável...
Restava oficiar à polícia política no sentido de reduzir quanto possível os "estragos". Para uma polícia política parecerá sempre estranha a expressão "quanto possível". Tudo é possível, desde que haja uma ordem superior. O caso da entrevista de Egas Moniz ao jornal República encerraria, ao princípio da tarde de 28 de Outubro de 1953, com um ato de inexcedível vileza.

Quando a decrépita máquina de impressão começa a trabalhar, entram de cambulhada pelo portão das oficinas, na Rua Nova da Trindade, pides a granel. Justificam a sua presença com o facto de lhes ter sido ordenado o controlo da tiragem, a qual, declaram, não poderia exceder (num exemplar sequer!) a da véspera. Mas 45 minutos depois, numa fase em que nem um terço da tiragem se encontrava feita, um deles, feição de graduado, berra:

—Chega! Pára a máquina!
Intervém o diretor Carvalhão Duarte. Calmo. Dirige-se aos intrusos:
— Ou sai daqui a tiragem toda ou não sai nada.
Tipógrafos e redatores, com o chefe Artur Inêz à cabeça, fazem um dique de proteção à máquina. Em silêncio. Sem pressas, expectantes, viseiras carregadas.

Saiu a tiragem toda. Mas a máquina bem poderia continuar a imprimir até ao dia seguinte que não faltariam compradores.

© PEDRO FOYOS


ADENDA EM MARÇO DE 2011
A PROPÓSITO DA BIOGRAFIA REALIZADA POR JOÃO LOBO ANTUNES

Este texto veio originalmente à luz em Dezembro de 2009, ou seja, um ano antes da publicação da obra Egas Moniz – Uma Biografia, de João Lobo Antunes, de leitura aliciante e indispensável para compreender a complexa personalidade do cientista. O autor menciona a entrevista de Egas ao diário República, todavia confinando-se às frases parangonadas na primeira página do jornal, atrás reproduzida, sobretudo ao famoso título: "A comédia vai repetir-se!".
Interessante notar que, muitos anos antes, exatamente em dezembro de 1939, Egas faz alusão pública ao episódio do embargo nas livrarias da sua obra Vida Sexual – facto cuja revelação se deve agora a João Lobo Antunes. Aconteceu durante uma conferência na Ordem dos Advogados intitulada «Psicoses sociais» e depois publicada na coletânea Ao Lado da Medicina. Em determinado passo, reportando-se à sua Vida Sexual, Egas não perde o ensejo de realçar: «agora com trânsito vedado nas livrarias
Ficamos igualmente a saber a exata consistência dos cortes censórios na obra Confidências de um Investigador Científico, na qual «ficou gravada a garra do vexame», segundo as próprias palavras ao jornal República. Escreve João Lobo Antunes: «… Uma reedição fac-similada recente da Câmara Municipal de Estarreja contém um fragmento que a Censura cortou na página 488. Referia-se à "demissão ou aposentação forçada" dos professores da Faculdade de Medicina de Lisboa – Celestino da Costa, Pulido Valente, Fernando da Fonseca, Cândido de Oliveira, Adelino Costa, Cascão de Anciães e do assistente Dias Amado. Egas diz que tinham sido destituídos "dos melhores valores" da escola.»
A esta luz ganham redobrado significado as palavras «garra do vexame».

PF




Os sobreviventes
de um heroico jornalismo português

ESCRITO NA ANTEVÉSPERA DO LANÇAMENTO
DA ANTOLOGIA "MEMÓRIAS VIVAS DO JORNALISMO"
DA AUTORIA DE FERNANDO CORREIA E CARLA BAPTISTA


Dois queridos camaradas de ofício, o Fernando Correia e a Carla Baptista, tiveram há tempos a bela ideia de reunir num volume as memórias de jornalistas provindos da recuada época em que não existiam computadores. Nem gravadores portáteis. Nem sequer máquinas de escrever (já haviam, porém o advento nas redações ocorreu apenas na transição da década de 50 para a de 60).

Mas já se comia com garfo e faca e, até, em algumas redações mais progressistas começava a abrir-se a cancela às mulheres (encontram-se nesse livro vários testemunhos – incluindo o meu – acerca dessa experiência emocionante). Era o tempo em que Lisboa não possuía ainda semáforos e os polícias sinaleiros abriam o trânsito para dar passagem aos "carros dos jornais" (em troca recebiam o jornal do dia e, pelo Natal, uma garrafa de espumante!... E com tais despudorados e devassos procedimentos se cometia então o "tráfico de influências", para não usar expressão menos polida). Era o tempo em que a rotina da atividade jornalística tinha uma remotíssima aparência com o que mais tarde seria designado "horário de trabalho". Era o tempo em que os jornalistas casados praticavam uma espécie de vida dupla, porque o casamento mais efetivo era o assumido com o jornal onde trabalhavam. Era o tempo, enfim, em que alguns de nós (não todos, isso terá de ser ressalvado) escreviam um texto, depois jaziam sofredores e ansiosos na incerteza de a prosa regressar da Censura golpeada parcialmente ou cortada de alto a baixo.

Espinhoso foi o caminho que levou à concretização da antologia de entrevistas Memórias Vivas do Jornalismo. A habitual via-sacra de qualquer autor desprovido do mediatismo dos horários nobres (um outro jornalista, também editor – Francisco Vale  – dá notícia num seu livro lançado há semanas: «(...) hoje há editoras especializadas em publicar figuras televisivas com audiências garantidas em prime time, juntando-lhe um ou outro escritor sério descuidado da companhia.»

Não surpreende pois que Memórias Vivas do Jornalismo só apareça ao cabo de anos. Tantos que meia dezena de jornalistas representados na coletânea viajaram entretanto, em serviço de reportagem, para estrelas longínquas e decidiram nelas permanecer. Os fenómenos sobrevivos estarão expostos depois de amanhã, quinta-feira, dia 11, a partir das 18h30, na Livraria Barata, em Lisboa, a fim de fazerem prova de vida perante os incrédulos que tal suspeitosa condição desejem testar. Haverá fanfarra, foguetório e falatório a cargo dos doutos connaisseurs José Rebelo e Miguel Gaspar.


Nota atual: decorrido pouco tempo sobre esta publicação, mais um dos jornalistas antologiados (Afonso Serra) decidiu fazer a viagem mencionada no texto. Inconveniente desígnio deste género de obras memorialísticas: está ainda fresca a tinta de impressão e já as mesmas vão tornando-se póstumas nos escaparates das novidades.


© PEDRO FOYOS






O professor de Filosofia que chegava às aulas
com uma braçada de jornais do dia

ESCRITO NO DIA DA MORTE DE ROGÉRIO FERNANDES


Tive uma vida académica privilegiada quanto a grandes professores. Cito dois, apenas no segmento dos historiadores e filósofos notáveis: Joel Serrão e Rogério Fernandes. Mais tarde, já jornalista, entrevistei-os a quase todos, com a prosápia de quem deseja demonstrar aos mestres que o antigo e inexperto praticante da vida airada fizera-se gente e por nada no mundo os deixaria ficar mal.

A entrevista a Rogério Fernandes, publicada em 1961, foi muito golpeada pela Censura. O movimento existencialista alvoroçava então uma parte da juventude universitária e tentei que o meu professor abordasse o tema numa linguagem acessível. As provas de Censura, que preservo e acabo de revisitar, são bem esclarecedoras da ingratitude de tal missão. Os censores não permitiam qualquer pensamento desenvolvido a partir de nomes como Sartre, Camus ou Simone de Beauvoir (esta, aliás, não tardaria a entrar no Index Prohibitorum, onde permaneceu largos anos). Mas o espírito desassombrado e progressista do professor doutorado em História e Filosofia da Educação ilumina-se nesta frase que, por inadvertência ou insciência, a Censura indultou: «Importaria relacionar o ensino da Filosofia com outros setores da Cultura – o romance, o cinema, o teatro, as artes plásticas. (…) No campo da Ética, por exemplo, seria também interessante que os nossos manuais incluíssem documentação apropriada sobre problemas da vida.»

Este era o professor que chegava à sala de aula – aula de Filosofia! – com uma braçada de jornais do dia e depois convocava os alunos para a reflexão e discussão do noticiário fresco…

Rogério Fernandes foi proibido de ensinar. Nada de mais cruel poderá conceber-se em relação a uma pessoa que, tendo nascido para ensinar, tendo o ensino como paixão e razão de vida, se vê expulso do ensino. Essa era uma das nossas cumplicidades. Eu conhecia bem o drama. Quando nasci já o meu avô paterno se encontrava igualmente proscrito («de todas as escolas do País»), ele que havia sido uma figura prestigiosa na democratização do ensino durante a Primeira República, diretor de um estabelecimento histórico, o Colégio Parisiense em Lisboa, e que Salazar condenaria a viver até ao último dos seus dias a dar explicações particulares numa exígua sala de um terceiro andar da Av. Sacadura Cabral, em Lisboa. De permeio ia publicando manuais escolares, abarcando todas as disciplinas, da Gramática à Aritmética e Geometria, pois existiam duas chancelas editoriais sempre solidárias para com os desterrados pelo regime (a Biblioteca Cosmos, fundada por Bento Jesus Caraça, e a Gomes & Rodrigues, no Largo de D. Estefânia, aonde o meu avô me levava pela mão, a outra apertando pundonorosamente o manuscrito.)

Depois do 25 de Abril, o nome de Rogério Fernandes readquiriu notoriedade, também como reformador. Foi um dos impulsionadores das reformas do ensino primário, ficando a dever-se-lhe em grande parte o prolongamento da escolaridade obrigatória. Durante dois anos exerceu o cargo de diretor-geral do Ensino Básico, logrando a concretização de projetos que acalentava há décadas.

Acompanhei à distância a sua dissidência partidária. Creio que chegou a sentar-se no Parlamento como deputado do PCP, mas nunca o consegui ver sob o fato apertado de "homem de partido". Não me surpreendeu por isso o termo de uma militância (sempre ao lado de outro historiador, Augusto da Costa Dias) que remontava a uma das épocas mais ominosas da Ditadura. Esses são episódios da pequena crónica. A grande crónica para a qual quero reverter a memória terna de Rogério Fernandes é a do tempo do heroísmo sem heróis, das solidariedades singelas e tão imensas. Por exemplo, a solidariedade sem história que o envolveu quando foi diretor da Seara Nova, uma das raras publicações da resistência. Eu conto:

A situação financeira da revista era aflitiva. Do ponto de vista empresarial, os "quadros" confinavam-se ao próprio diretor e a parcos colaboradores voluntariosos que, remunerados precariamente, amanhavam como podiam o expediente administrativo. Tamanha era a penúria que nem dinheiro havia em caixa para o cíclico recrutamento do pessoal incumbido de uma operação crucial – as etiquetas postais. Demoraria ainda o advento das fotocópias, e cada número da publicação – adquirida sobretudo por meio de assinatura – implicava a escrita à mão, a partir de ficheiro, de alguns milhares de etiquetas para a expedição pelos correios.

Certo dia, os jornalistas do diário República tiveram conhecimento da dramática situação. A Seara Nova estava impressa, pronta a ser expedida para os assinantes, e o diretor Rogério Fernandes passara toda a noite a escrever etiquetas. E que só ia na conta de poucas centenas. De imediato se organizou um plano socorrista, por turnos, com o fim de, sem prejuízo do serviço do jornal, se acudir à crise seareira. Foi assim que eu e outros jornalistas fizemos nessa tarde e noite sucessivas viagens à sede da revista para copiar milhares de nomes e respetivos endereços. Procedimento repetido, pelo menos, em dois números sequentes da revista. Numa dessas vezes, se bem me lembro, só da minha lavra ficaram manuscritas trezentas fichas.
Com elevado esmero caligráfico para não haver extravios.


© PEDRO FOYOS





Memória de uma rebelião
na Feira do Livro de Lisboa

NO DIA 14 DE MAIO DE 1985, AS PEQUENAS EDITORAS,
CANSADAS DE DISCRIMINAÇÕES, AFRONTARAM AS GRANDES EMPRESAS DO SECTOR



Não há notícia de ter ocorrido em qualquer parte do mundo uma rebelião de pequenas editoras. Foi o caso que um conhecido organismo associativo, de seu nome completo Associação Portuguesa dos Editores e Livreiros, vulgo APEL, deliberou, certo dia, em consenso da respetiva direção (presidida por Fernando Guedes), proibir a exposição e venda de revistas culturais na 55ª Feira do Livro de Lisboa (1985). Tentando mais tarde fundamentar as razões de tão incongruente determinação censória, a direção da APEL "explicaria" que o certame era de livros e não de revistas. Mais não adiantou. Abateu-se sobre a APEL, em clamor, a pergunta: a Feira do Livro não é, então, uma feira de cultura? Mas a APEL não quis emendar a mão e insistiu: proibição absoluta de entrada na Feira de tudo quanto não tivesse forma de livro. Ficavam excluídos, desse modo, não só as revistas culturais mas também os posters de poesia que ao tempo constituíam a maior parte da produção das Edições ITAU.

O RISCO DE SE PROIBIR UMA PAIXÃO


A breve trecho se tornou claro aos olhos de toda a gente que a medida discricionária não era mais que um iníquo biombo atrás do qual se escondiam os interesses das grandes editoras, representadas em peso na liderança associativa. Editoras de livros, só de livros, evidentemente, porque fazer revistas culturais, nesta terra, de facto só por "carolice". Desalmada premissa, aquela de supor que os visitantes, gastando o dinheiro em revistas e posters, não lhes sobraria para comprar livros.

A poucos dias da inauguração estrepitou a histórica rebelião das pequenas editoras. Batidas durante todo o ano por ventos adversos, tinham-se habituado à fugaz bonança que para elas representava a Feira do Livro: era nesse lugar e nesse tempo que escoavam em quantidade minimamente expressiva as suas edições e por essa forma arranjavam fôlego para sobreviver até à Feira do ano seguinte. Cruenta realidade, mas era (é) mesmo assim.

Além disso, sabemos no que resulta uma paixão proibida. Só o não sabia, ao que parece, a direção da APEL.

Em menos de 24 horas juntaram-se à mobilização para a "guerra" dezenas de editoras que tão-pouco produziam revistas de cultura. Simplesmente estavam cansadas de anos consecutivos de arbitrários procedimentos que sempre as colocavam num plano de desvantagem em relação às grandes empresas do setor.

UM JORNAL DE LUTA

Começou a circular um "jornal de luta" com sucessivas edições nas quais se dava conta à população da enormidade daquele planeado crime de lesa-cultura. Recolheram-se e publicaram-se numerosos depoimentos de figuras gradas da literatura. Elaborou-se um "Manifesto" e promoveu-se uma conferência de imprensa que fez repercutir em todos os meios a decisão assumida por cerca de quarenta editoras de manterem os pavilhões encerrados enquanto a medida censória não fosse revogada.

PORTENTOSO PLANO TÁCTICO


O episódio cedo transcendeu o âmbito de uma proibição circunscrita ao regulamento de um certame para se transformar num "caso do dia". Nunca a Imprensa e a Rádio (também a RTP, mais tarde) dispensaram espaço tão alargado a uma Feira do Livro como sucedeu com esta agitada 55ª edição. No final, o movimento de contestação quase submergiu os próprios promotores e diluiu-se num debate impetuoso sobre a necessidade de renovação da Feira do Livro de Lisboa.

Abreviando. No dia da inauguração houve uma mudança de estratégia. As pequenas editoras uniram-se num ato coletivo de desobediência. A direção da APEL viu-se confrontada com um facto hilariante: as revistas de cultura, que de costume eram vendidas por meia dúzia de editoras, estavam agora expostas em mais de trinta pavilhões. O mesmo se passava com os posters de poesia. Um portentoso plano tático. Ninguém acatou a proibição (exceção: Imprensa Nacional).

A VISITA INAUGURAL DO MINISTRO DA CULTURA

Quando o ministro da Cultura, Coimbra Martins, chegou para a inauguração, com um atraso de mais de meia hora, os representantes das pequenas editoras cortaram-lhe o passo, logo à entrada. Coube ao poeta Júlio Roberto entregar-lhe o "Manifesto" e fazer a oferta de um poster com um poema de Florbela Espanca, não deixando de assinalar que a simples exposição daquele "produto espúrio" estava proibida na Feira...

Soube-se mais tarde o motivo do atraso: foi recebida no ministério da Cultura a informação telefónica de que conviria fazer um compasso de espera porque... «as coisas no Parque Eduardo VII estão um bocado complicadas.»

A APEL teve de render-se. Resta dizer: as pequenas editoras que desencadearam esta luta contra um ato de censura gravemente lesivo da função cultural de uma Feira do Livro ter-se-iam visto condenadas ao silêncio, sem apelo nem agravo, se a sua voz não tivesse ecoado como padrão da mais empolgante unidade e solidariedade. Por outro lado, o fragor a que se assistiu só foi possível graças a uma comunicação social sensível, independente, isenta. Não era difícil pressentir a justiça e o bom senso da causa defendida pelas pequenas editoras. Mas outra força não tinham naquele confronto desigual. De um lado estavam (estão) empresas editoras poderosas, algumas das quais se incluem no grupo dos grandes anunciantes na Imprensa; do outro estavam (estão) uns tipos "carolas" que sofrem em silêncio à cruel pergunta:

... Revistas de cultura? Então isso dá algum dinheiro que se veja?..


© PEDRO FOYOS




"Bullying" e praxes cruéis em Portugal:
uma reportagem "impossível"

20 de Novembro de 2009. Comemoram-se hoje em todo o mundo civilizado os cinquenta anos da sucinta Declaração Universal dos Direitos da Criança e os vinte anos da Convenção sobre os Direitos da Criança – o tratado internacional com maior número de adesões. Mais importante que as extremosas manifestações que sempre envolvem estas efemérides será alertar para o tanto que falta fazer, também em Portugal, no sentido de intervir e prevenir a violência na escola. É o que procurarei fazer neste texto, não na perspetiva de profissional da educação, que não sou, tão-só na de jornalista que há anos acompanha o tema específico da "violência infantojuvenil entre pares".


1 . SUICÍDIO "POR CAUSA INDETERMINADA"

Comecei a interessar-me especialmente pelo fenómeno negro do "bullying" (tirania juvenil, de forma continuada, em ambiente escolar) há três anos, quando circulou a notícia do suicídio de um jovem estudante português, numa localidade do Norte. As primeiras notícias referiam um «ato de desespero por causa indeterminada», porém um ou outro órgão de informação avançaria mais tarde que não seria alheio à tragédia o clima de violência «no estabelecimento de ensino frequentado pelo estudante.» O que na ocasião deu maior visibilidade ao caso, diminutamente noticiado, viria a ser a insurgência pública de algumas personalidades das ciências da educação contra a forma como em Portugal se ignorava ou subestimava o suicídio juvenil, não raro encoberto sob a falácia da "causa indeterminada". Destacaram-se nesse movimento dois prestigiados pedagogos, Beatriz Pereira, professora e investigadora do Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho, e Alexandre Ventura, do departamento de Ciências da Educação da Universidade de Aveiro, que alertaram para o facto de o suicídio de jovens no País estar relacionado muitas vezes com o "bullying", embora nunca assumido como tal. Beatriz Pereira, autora de obras notáveis dedicadas ao tema, já passara pelo trauma de três suicídios nas escolas onde lecionara (dois rapazes e uma rapariga). Sempre "por causa indeterminada".

Aos depoimentos somou-se na internet uma avalancha de testemunhos dramáticos. As vítimas, de costume resignadas a sofrer em silêncio, ganhavam coragem e começavam a desocultar-se. Muita gente – eu próprio – apercebia-se da amplitude inimaginável do problema. Lendo aqueles relatos de sevícias indizíveis, não surpreendia que alguns jovens mais introspetivos e fragilizados tentassem a fuga por meio do suicídio.

Foi neste contexto de preocupação social que o Diário de Notícias resolveu dedicar ao tema uma grande reportagem, indigitando para tal missão uma jornalista que havia sido minha estagiária e se revelara uma repórter de excecional valia. «Missão impossível», suspirava ela, dias depois, perante o silêncio de pedra em que sempre esbarrava nas tentativas de contacto pessoal com adolescentes referenciados como vítimas pelos alunos mais velhos, amigos e solidários mas impotentes para reagir aos maus tratos praticados no interior da escola ou, com frequência, na periferia. Passada uma semana, essa nossa colega deixou-nos perplexos ao dizer que pretendia desistir da reportagem. Maior espanto ao sabermos que o motivo já não resultava da impossibilidade de falar com as vítimas mas precisamente o contrário: conseguira estabelecer secretas conversas com algumas delas, em condições mirabolantes que pareciam copiadas de um filme de espionagem. Tomámos então conhecimento de que a jornalista estivera na véspera com o "Francisco" (nome fictício) que a todo o momento a advertia: «Se eles sabem que estou a contar estas coisas vão matar-me. E também vão matar a senhora.» Repetiu isto sem fim numa conversa de poucos minutos. As "coisas" contadas pelo "Francisco" eram arrepiantes. Entre outras, a de ser colado com fita adesiva resistente ( «aquela mais forte, castanha») a um poste da baliza do campo de futebol contíguo à escola. "Francisco", uma criança franzina, delicada, era forçado, sob ameaças de morte e exibição de navalhas, a dirigir-se para aquele terreiro. Ali ficava, pernas, braços e tronco atados. «Mas por que te fazem isso?». Francisco: «Dizem que sou maricas. É por isso.» «E batem-te?». «Às vezes. Outras, é só porcarias.»

A nossa colega mergulhara no poço mais escuro da natureza humana, sobremaneira insuportável ao ter de render-se a uma cruel constatação: não eram adultos os protagonistas das cenas atrozes, antes jovens com idades entre os dez e os quinze anos. Debatia-se agora com um terrível dilema: era urgente denunciar, mas a denúncia poderia acarretar mais sofrimento para as vítimas, porventura a morte. Não era só o caso do "Francisco". Em meia dezena de escolas existiam outros "Franciscos" sob outros nomes fictícios: o caso da "Sara" (a "Vaca"), o "Daniel" (o "Orelhas")... De pouco valeria alterar os nomes se fossem identificadas as escolas. Também estas, em consequência, teriam de ser omitidas. A reportagem corria o risco de converter-se numa suspeitosa montagem de ficções e de omissões. Um medo insidioso apossou-se da jornalista ao inferir, dos avisos do "Francisco", que ela própria corria, de facto, um sério risco. Vieram-lhe à memória olhares de desconfiança que vislumbrara nas escolas, antes e depois de contactar pessoalmente elementos dos respetivos conselhos executivos. «Eles vão matar-me. E também vão matar a senhora.»

Por isso se predispunha, a nossa colega, a desistir. Acompanhei o caso de perto. Um elemento da direção do jornal (Mário Bettencourt Resendes, notabilíssimo jornalista com quem mantive durante largos anos um companheirismo profissional bem vivo na minha memória) soube do que se passava e interveio de uma forma ponderada. Para ele era crucial que a jornalista estivesse certa de que eram verdadeiros os factos a noticiar. Sendo essa a situação, a reportagem seria publicada com alteração dos nomes das vítimas, e das escolas nomear-se-iam apenas as respetivas regiões (arredores de Lisboa, Margem Sul, etc.). Entretanto, na véspera da publicação, o jornal comunicaria por via direta e formalmente a cada um dos conselhos executivos escolares os nomes verdadeiros das vítimas, com vista às emergentes medidas de proteção das mesmas e informação aos pais. Pediu-se à jornalista um esforço adicional: re-encontrar alguns dos jovens entrevistados e fotografá-los com máscaras por forma a impedir em absoluto a identificação dos mesmos.

Assim se fez.

diario noticias bullying

A reportagem seria publicada em Outubro de 2006. Os leitores tiveram igualmente conhecimento de que em algumas escolas do País alunos havia que pagavam a gangues juvenis um determinado montante semanal ou mensal (entre dez a trinta euros) para não sofrerem agressões. O jornal citava uma professora do conselho executivo que assumia conhecer esse esquema mafioso, contudo declarava-se impotente para o suprimir porquanto «os locais de cobrança mudam constantemente». 

O Ministério da Educação esclarecia, por esse tempo, que o "bullying" em Portugal representava apenas cinco por cento dos problemas do sistema de ensino.

2 . "CATÁLOGO" INFINDO DE HORRORES

Nesse mesmo mês ressurgiu a eterna controvérsia à volta das praxes cruéis. Evocou-se a morte do jovem Diogo Macedo, em Famalicão, durante um ritual praxístico que lhe provocou múltiplas escoriações corporais, além da fratura de uma vértebra cervical (causa da morte, segundo a autópsia). Outro jovem sofrera edema na laringe em resultado de uma prova "popular" denominada "Berraria" (o caloiro é forçado a berrar durante horas, perseguindo um inseto ou um pequeno vertebrado propositadamente mutilado para lhe dificultar a locomoção).

Subindo de escalão etário, desviemo-nos por momentos do "bullying" infantojuvenil. As crianças vítimas de "bullying" tornam-se mais tarde, com frequência, agressivas. No limite re-encontramo-las como autoras das "chacinas de vingança" como as ocorridas sobretudo em estabelecimentos de ensino norte-americanos. Pedagogos consideram que alguns dos mais inclementes universitários praxantes (os "veteranos") foram outrora crianças agredidas física e psicologicamente de forma continuada. E os praxados de hoje serão os praxantes de amanhã, tendendo a "refinar" os atos da chamada "tradição académica".

Encontram-se documentadas em vídeo ou por meio de registos fotográficos algumas praxes insuportavelmente bárbaras. Menciono quatro:

"Shot". O praxado mastiga uma malagueta, após o que ingere um "shot" de vinagre e azeite.

Simulação de atos sexuais. A rapariga caloira simula fazer sexo oral com os "veteranos" ou praticando outros atos com um poste. O rito completo passa por simulação de orgasmos.

"Barrelada". Corte de pelos púbicos (há dois anos, um jovem sofreu ferimentos graves no escroto).

"Elefante Pensador". O praxado, de joelhos, deve mergulhar a cabeça num balde cheio de excrementos de porco ou de vaca (esta praxe confinava-se à Escola Agrária de Santarém, crê-se ter cessado). De realçar que um ex-diretor do referido estabelecimento defendeu esta praxe, declarando que o contacto com a bosta é "natural".

Admite-se que mais de 50 por cento dos rituais praxísticos que continuam a praticar-se em Portugal são «ofensivos, intimadores e violadores da dignidade da pessoa humana». O "catálogo" de praxes é infindo. Numa extensa reportagem dedicada ao tema, a jornalista Fernanda Câncio fez uma síntese lapidar: «Há praxes para tudo, ou de tudo nas praxes».

3 . O "CORREDOR DA MORTE"

Retornando à reportagem do Diário de Notícias. O mais jovem testemunho chegado ao jornal era o de um menino de oito anos que usava a expressão "corredor da morte" para designar uma espécie de praxe na sua escola cuja singularidade era prolongar-se por todo o ano letivo. Com fantasioso exagero e a propensão tão habitual nas crianças para captar palavras e ditos do quotidiano audiovisual, o "corredor da morte" era de facto um corredor formado por duas fileiras de alunos do 2º ciclo que batiam (pontapés, "carolos") nos novatos do 1º ano obrigados a fazer aquele percurso. Quem chorasse teria de passar segunda vez. Todos recebiam ameaças de morte se denunciassem aos pais ou professores as agressões. «Por que fazem isso aos vossos colegas mais novos?» – perguntou a jornalista. Resposta: «Fizeram-me o mesmo quando vim para a escola.» Resposta idêntica darão os universitários "veteranos" promotores das praxes.

Ainda antes de publicada a reportagem soubemos que o "Francisco" se encheu de coragem e contou à mãe o que se passava com ele na escola. O pai assumiu pessoalmente a proteção do filho, recorrendo à colaboração de um polícia amigo.

Pelo menos dois jovens citados naquela investigação jornalística ("Daniel" era um deles) foram transferidos para outras escolas.

Poucos meses depois, em Fevereiro de 2007, comecei a delinear um novo livro ao qual daria o título de Botânica das Lágrimas.

© PEDRO FOYOS


ADENDA EM ABRIL DE 2011

Mais uma "chacina de vingança", desta vez numa escola de Realengo (Rio de Janeiro). Doze crianças mortas a tiro. Veio a saber-se no dia seguinte que o autor do massacre foi vítima de bullying durante os quatro anos que frequentou aquela escola. Era um rapaz sempre tímido, gozavam-no e chamavam-no "swing" porque mancava de uma perna.
Nada de novo. Este género de tragédias está frequentemente relacionado com o bullying. Os casos mais mortíferos ocorreram na Finlândia e nos EUA, com realce para Columbine (13 mortes) e Virginia Tech (32 mortes).
O fenómeno negro do bullying tem a sua expressão de pavor indizível sob a forma de uma bomba que se oculta em silêncio nos esconsos mentais da vingança e explode alguns anos depois de ter sido armadilhada.
PF




João Botelho da Silva

(TEXTO PARA UM LIVRO PÓSTUMO)


João Botelho da Silva morreu pouco tempo depois de entregar à editora o original deste livro. Uma obra póstuma aos 27 anos é um facto brutal, insuportável. Esmaga pela opacidade absoluta das razões que não conseguimos decifrar – porque são, realmente, numa vagarosa e dilacerante evidência, indecifráveis. Tratando-se, como é o caso, de um dos mais significativos escritores portugueses dos nossos dias, tal circunstância redobra o obsessivo efeito de revolta.

(...) Deixou um livro publicado (Beduínos a Gasóleo, romance portentoso, Prémio Caminho de Ficção Científica) e um valiosíssimo espólio literário em prosa e poesia.

Concluído e entregue à editora ficou este livro de contos. Concluído? Vacilo e comovo-me porque o vocábulo não é inteiramente exato. Guardo na memória, como um fotograma luminoso num filme longínquo, o dia em que o João me entregou o original. Costumava pedir-me a leitura e análise das suas ficções, antes de publicadas, fazendo o mesmo com seu Pai, o jornalista Botelho da Silva, e sua mulher, Isabel. Comigo brincava, nessas ocasiões: «Em antestreia exclusiva para a excelentíssima crítica!» Era uma alusão chistosa ao facto de eu assinar, nos últimos três anos, no suplemento Cultura do Diário de Notícias, uma secção de crítica literária.
Ambos jornalistas daquele matutino, amiúde lhe antecipava, igualmente, os meus textos destinados à coluna. É preciso dizer, agora, que muitas das minhas ideias, das minhas palavras escritas, lhe deviam a consciência subliminar e estimulante das suas experiências, da sua cultura, dos seus sentidos, do seu mundo fantástico. Uma partilha límpida, como a pulsação essencial à artéria, porém subjacente, invisível. Um companheirismo germinado, singularmente, na paixão comum por um género literário e que foi crescendo na vivência fraterna de sonhos, projetos, descobertas, permutas, alegrias e secretas cumplicidades. Tudo isso num voo pleno, sem escalas geracionais: a minha idade quase dobrava a dele.

Por outras razões tinha aquela secção um especial significado. Ali lhe foi feita a primeira referência como autor literário. (Um pacto, na ocasião: eu renunciaria a empregar a detestada expressão «promissor», reportada ao seu talento; em contrapartida, ele obrigar-se-ia a acolher as minhas presunçosas sugestões... «bem, cinquenta por cento», concedeu.) Ali se celebrou o prémio com que a Caminho o distinguiu. No mesmo local se publicou aquela que seria a primeira crítica a um livro seu. Quase mais entusiasmado do que ele alvitrei no jornal uma grande entrevista, que efetivamente me autorizaram a fazer-lhe e se publicou em três páginas. (Sem coragem para enfrentar a Redação, o João gozou, nesse dia, uma folga atrasada.) Volvida uma semana apresentei-lhe o romance de estreia em sessão pública, coisa que jamais pensaria fazer com quem quer que fosse e jurei que não se repetiria. Tento dizer, simplesmente: eu vivia, com intensidade, a aventura da sua imaginação. Talvez se perdoe, por isso, a tentação da despedida, o inevitável lugar-comum do texto sentimental, a pieguice tão falha de originalidade, e neste momento adivinho-lhe a reprovação mordaz: «Oh, não!, mete o violino no saco!»

Apressado, a escrita vertiginosa ultrapassava-o por vezes na reflexão. Nos últimos tempos angustiavam-no incertezas relacionadas com os seus contos admitidos para publicação. Manifestava certa contrição pela entrega, porventura precipitada, do original à editora. Disso me deu conta, logo naquele dia – fragmento inapagável na minha memória – em que me confiou uma cópia: «O livro já está na editora, não te espantes, mas olha, deu-me para ir levá-lo. Não fiques preocupado, o processo de feitura é tão lento que dará para introduzir todas as alterações que virmos ser necessário.»

Tomei o peso da resma que me passava para as mãos e olhei-o cheio de perplexidade, sem entender a razão daquela impaciência.

(...) Eu fazia um esforço desajeitado para não o envaidecer. Terminada a leitura do livro, projetei enviar-lhe uma mensagem através do circuito informático interno do jornal. Uma frase breve, grave, do género: «Escreveste algumas das melhores páginas da literatura portuguesa de todos os tempos.» Sabe-se que o temor pela reverência excessiva leva a refreios auto censórios. Portanto, ao reler a frase, talvez a alterasse para: «Pois bem, João, creio que terás escrito algumas das melhores páginas da moderna literatura portuguesa.» Mas não cederia mais do que isso. E sorriria ao imaginar a reação costumada de certos bem-pensantes se resolvesse um dia publicar essa opinião: «Tudo certo, mas... o meu amigo queria referir-se à literatura de ficção científica, não é verdade?» Não, não é verdade.  

Claro que não enviei mensagem alguma ao João. Existem táticas manhosas que não devem ser desvendadas. Refira-se, tão-só, que um elogio desmesurado pode deitar tudo a perder quando pretendemos que o autor se entregue a um trabalho zeloso de aperfeiçoamento final da obra. Depois, mas só depois, lhe diremos ter realizado uma obra-prima.

O livro que eu acabara de ler carecia manifestamente de uma revisão estilística. Nas margens do texto fizera dezenas de anotações com o fim de o autor considerar a reformulação de expressões repetidas, construções gramaticais, pontuação e um ou outro trecho que, no ânimo das descrições impetuosas, resultara menos inteligível. E o original já na posse da editora!

(...) «Achas que, depois disto tudo, a editora quererá publicar mais algum livro meu?», perguntou-me, uma tarde. Ele acolhia com ingenuidade certas afirmações disparatadas, e terá sido por isso que lhe respondi, sentencioso, desafiante: «Com toda a certeza que não.»

Começáramos a analisar todas essas questões quando...
... de súbito, o seu corpo gritou, num rebate tardio, o avanço do cancro.

Exato: escrevo cancro, a eufémica "doença prolongada" que urge banir do vocabulário jornalístico.

Depois, foi o terrífico percurso escarpado de angústias, de pânicos murmurados, a esperança estreitando-se nos pobres corações dos seus amigos. O nosso debate foi sucessivamente adiado: «Trata de sair deste hospital», pedia-lhe, «temos a agenda atrasadíssima!» Mas o livro ficou intocado. Fixo agora, vezes sem conta, a "agenda de trabalhos" que permanece aberta, protelada por um desencontro absurdo, incompreensível. Talvez não irremediável. Sempre acontece comigo, nos dias finais, isto: olhando o Sol matinal, por um instante dolorosamente efémero acredito que reatarei conversas antigas.

João Botelho da Silva morreu há quinze anos, que se perfazem hoje.
O livro referido nesta crónica foi publicado mais de um ano depois, com o título "As Horas do Declínio". A edição ficaria marcada por turvas vicissitudes que me impeliram para um corte de relações com o diretor editorial da Caminho.

Vi pela última vez o meu amigo na manhã em que fui dar sangue, no Hospital Egas Moniz. Morreu nessa semana, a 23 de Abril.

Somos animais cronólogos, servos do sempiterno calendário, não conseguimos fugir aos ritos das datas.

Partilho esta evocação com quantos já perderam um grande amigo e, em certos dias, desejariam escrever-lhe uma carta sem morada.

23 de Abril de 2010


© PEDRO FOYOS





Uma galinha
chamada Deolinda


Eis o pitoresco caso de uma galinha que se atravessou na minha vida profissional. Uma reportagem frustrada converter-se-ia na crónica intitulada "A galinha Deolinda e o repórter que chegou tarde". Corria o mês de Maio de 1967...


galinha deolinda


Certa manhã, alguém trouxe à redação um prospeto da União Zoófila no qual se mencionavam casos de excecional dedicação de animais para com os donos – o fox-terrier que salvara um pequenito de dois anos de morrer queimado, a gata Violeta cuja impressionante odisseia a imprensa acabara de noticiar (depois de oferecida, percorreu 150 quilómetros para re-encontrar os primitivos donos) – e, entre outros mais, aquele que alertara o nosso informador, na verdade insólito: uma galinha (chamava-se – sim, a galinha! – Deolinda e vivia em Lisboa) que seguia a dona para toda a parte, qual dócil cachorrinho...
Dona Glória dizia: «Anda, Deolinda, vamos às compras!» – e a galinha alvoroçava-se, toda feliz, lá a acompanhava, cacarejante, na ronda pelos estabelecimentos locais.
Quantos nessa manhã estavam na redação logo se deram conta do interesse jornalístico que, como curiosidade, oferecia a divulgação do fenómeno. Fui o repórter incumbido de descobrir a Deolinda, acompanhado do fotógrafo Salvador Ribeiro. Este meu companheiro trataria de obter o "boneco" (a galinha seguindo a dona na rua), enquanto eu procuraria recolher elementos de reportagem.
Na União Zoófila, por onde iniciei as pesquisas, ninguém se recordava de como chegara ali a informação. Mas dias passados, após vários telefonemas, vi finalmente recompensada a minha persistência:
A sua galinha mora na Rua António Pedro, à Praça do Chile.
Não havia sido possível apurar o número da porta e foi assim que eu e o meu colega nos vimos obrigados à tarefa risível de percorrer uma rua à procura de uma galinha – da Deolinda!
Em diversas lojas da zona fizemos, compreensivelmente embaraçados, a pergunta picaresca:
– Sabe informar-nos, por acaso, onde mora por aqui uma senhora... que tem uma galinha...?
– Uma galinha?!
A maioria das pessoas recordava-se da galinha e da senhora sua dona – «que caso engraçado, não é?...» – mas desconhecia o local exato da morada.
Numa mercearia, enfim, quando estávamos quase a desistir, conseguimos saber que a nossa vedeta vivia perto, dois prédios adiante, num rés-do-chão.
Para lá nos dirigimos. Retiniu a campainha. Ladrou um cão. ( «Além da galinha», disse para o meu camarada, «também há cão. Podes metê-lo no boneco.» E ele: «Não, pá, não pode ser. A mulher passeia com a galinha e deixa o cão em casa!...»).
A porta abriu-se três dedos, pela frincha espreitou o rosto de uma petiza. – Mora aqui a dona Glória?
– Sim.
– A menina é da família?
– Sou a filha.
– A mãezinha está?
Estava e logo assomou:
– Os senhores, que desejam?
Com o melhor dos sorrisos expus a nossa missão: o caso da galinha que a seguia para todo o lado, o assunto interessava-nos, a ideia de tirar uma fotografia...
Então dona Glória arregalou os olhos num turbilhão de gritinhos:
– Ai!, os senhores vinham p'la minha Deolinda! A minha querida Deolinda nos jornais, 'té me custa a acreditar! Ai que pena, que pena meus senhores, era p'ra mim uma felicidade tão grande! Mas não pode ser...
– Não pode ser?! – eu e o fotógrafo olhávamo-nos perplexos.
– Não pode ser, não. 'Té tenho vergonha de contar porquê.
Impaciente, arrisquei:
– A galinha morreu...
– Morreu! Morreu, sim, morreu! Matou-a o meu marido, a semana passada!
Neste passo da triste cena, a dona Glória aperta a filha de encontro a si e desata a chorar convulsivamente.
Perturbados com a reação inesperada, eu e o fotógrafo interrogávamo-nos em silêncio sobre o que havíamos de fazer. Tomou ele a iniciativa, recorrendo às palavras de circunstância que se dirigem à família de um ente querido que acaba de exalar o último suspiro. Fazia-o em termos tão dolorosos que a infeliz senhora não hesitou em deitar as mãos aos ombros daquele homem-porto-de-abrigo que tão compreensivo se mostrava e tão sinceramente partilhava a sua dor. Eu pedia aos três santinhos da minha devoção que o marido não nos surpreendesse naquele instante.
– O malvado nunca olhou com bons olhos prà Deolinda – continuava, entre soluços, dona Glória. – Aquele homem tem uma pedra, tem gelo no lugar do coração. Há dias, apanhando-me fora de casa, o desalmado matou-me a Deolinda!
Depois, com uma expressão de comovedora ingenuidade, os olhos perdidos e aguados, a dona da malograda Deolinda denunciou-se, inassimilável, com palavras que me causaram um estremecimento:
– E só porque eu gostava tanto, tanto, de levar a minha Deolinda, à noite, para o nosso quarto, para ela dormir num poleiro que lhe fiz aos pés da cama.


© PEDRO FOYOS





A justa invenção
da toponímia municipal


• NÃO DESPREZEM AS PESSOAS DA CULTURA.
   DEPOIS DE MORTAS SEMPRE SERVIRÃO PARA DAR NOMES ÀS RUAS.


Vaidade, uma desavergonhada vaidade, um absurdo contentamento têm os autores culturais ao julgar que após a visita da sinistra senhora da dentuça arreganhada vão ficar por aí os seus pobres nomes a enriquecê-los. Não fica nada. Descidos à cova, não fica nada. Alguns, pouquíssimos, serão recordados por décadas. Raramente, muito raramente, por séculos. O ciclo dos milénios está confinado aos antigos gregos e talvez, no futuro, a Leonardo da Vinci.
Os meus grandes autores de há quarenta anos são desconhecidos por completo das novas gerações. Tão grandes eram (são) que sofro ao aperceber-me de quão fugaz foi a imortalidade pétrea que lhes atribuí com não menos pétrea convicção.
São estes os tempos, bem sei, tudo é finito, mas Portugal em particular é um país sem memória, dominado por uma matronaça chamada Futilidade que deverá ter um enorme calo nas costas pela fartura de pancadinhas de incentivo. Enquanto isso, são tratados à canelada os perigosos marginais do submundo das artes, das letras, das ciências: numa palavra, da Cultura.
Louvo por isso as comissões municipais que piedosamente acolhem os escorraçados, os esquecidos, os impertinentes, os mal-amados num pequenino paraíso da memória perene – a placa toponímica. Memória de pedra, retangular, sucinta, franca.
Apetece parafrasear uma evocação que, noutro contexto, fez Manuel Halpern no Jornal de Letras: Não desprezem as pessoas da Cultura. Depois de mortas sempre servirão para dar nomes às ruas.

Nome de rua. Gostaria de acreditar em duas coisas: que, pelo menos um em cada cem moradores tivesse curiosidade em saber quem foi e o que fez a pessoa cujo nome tantas vezes pronuncia e que inevitavelmente terá de escrever com alguma frequência; e que, já agora, idêntica curiosidade o levasse a saber o nome da árvore que há tantos anos vive a poucos metros da sua porta.

Com alegria tenho sabido ultimamente que amigos magníficos com quem privei e trabalhei têm os seus nomes inscritos em placas toponímicas, sobrelevando desse modo o inditoso esquecimento a que estariam para sempre condenados. Selecionei três. Uma trilogia que inauguro com Raul Rêgo e prosseguirei com Romeu Correia e Augusto Cabrita.



1. RAUL RÊGO, O COMBATENTE

rego


Raul Rêgo foi meu diretor em três jornais: dois diários, e o outro tinha data esquiva de saída, com uma produção oficinal sujeita às contingências e riscos da clandestinidade (apesar disso, as respetivas tiragens suplantavam as de todos os jornais portugueses). Autor de vários livros de teor histórico e político (realço a portentosa História da República, em cinco volumes) será lembrado, acima de tudo, creio, como o jornalista que mais intrepidamente combateu a Censura durante a Ditadura, de Salazar a Marcelo Caetano.
Um orgulho infantil e terno leva-me a ir somando as ruas do País que têm o nome do meu corajoso diretor. São já uma dezena, uma das quais, no caso da Amadora, ascendeu a avenida.

Orgulho infantil? Melhor diria: prosápia de menino, porque menino me vejo no centro de uma roda de gente, alvoroçado, cicerone de circunstância, um dedo espetado para a placa que tem o nome do meu diretor, ao mesmo tempo que me empertigo ao comunicar, grave:
– Foi um dos homens mais íntegros e corajosos que conheci! Que coragem! E que honra, a minha, ter estado ao seu lado em lutas inesquecíveis pela liberdade de expressão!
Neste passo, é possível, é mesmo muito possível, que levante um pouco a voz para ser bem ouvido:
– Antes e depois do 25 de Abril.
Logo se sobrepõe a figura franzina de Raul Rêgo, sempre um tudo-nada agitado, retardando, numa ténue gaguez, a articulação das palavras:
– Isso é passado. Agora temos de seguir em frente. Sobre a questão das ruas... das ruas com o meu nome... Dez?! Ena, quase dava para fazer um roteiro!

 
Caricatura de Raul Rêgo da autoria de Henrique Tigo



2. ROMEU CORREIA, O PUGILISTA DAS MÃOS DE OIRO

romeu correia


Improvável que o nome de Romeu Correia seja alheio a qualquer habitante da cidade de Almada. Nome de rua, nome de um esplêndido fórum municipal e também de uma escola secundária na freguesia de Feijó. Unanimidade inalcançável caso se perguntasse aos mesmos habitantes quem foi este homem, o que terá feito para merecer tão expressiva presença onomástica. E nem arrisco uma estimativa em relação aos almadenses que tenham lido pelo menos uma das mais de três dezenas de obras do seu celebrado conterrâneo.
A minha relação de amizade com Romeu Correia nasceu no início dos anos 60, numa circunstância profissional. Ele acabara de ser distinguido com um dos mais prestigiosos galardões da época – o então denominado "Óscar" atribuído pela Casa da Imprensa – e acedeu a ser entrevistado pelo muito jovem repórter que eu era. Marcou-se o encontro para uma conhecida pastelaria da Rua do Ouro, planeando-se que no final iríamos até ao Terreiro do Paço a fim de o repórter-fotográfico do jornal, Salvador Ribeiro, realizar uma sessão tendo o Tejo como cenário. Aconteceu porém que esse colega foi "desviado" para um serviço urgente e vi-me, finda a entrevista, sem "boneco", como se dizia na gíria dos jornais. Perguntei então a Romeu Correia se teria uma boa foto que pudesse dispensar-me para ilustrar a peça. Logo, prazenteiro, rapa da carteira uma imagem, formato quase postal, que me deixou boquiaberto: era ele, em calções de banho, na praia, pose atlética!
Estou em crer que hoje não suscitaria espanto de maior uma entrevista com um escritor apresentando-o em calções de banho (quantas coisas mais insólitas tenho visto!) mas não duvido que há 50 anos um tal atrevimento se converteria em escândalo nacional. O óbice jornalístico foi ultrapassado e a entrevista publicada com o devido decoro, mas o episódio persiste na minha memória como especialmente significativo da personalidade sui generis de Romeu Correia: um homem dividido entre a criação literária e a paixão pelo atletismo. Era quase impossível, como testemunhei durante décadas, manter uma "conversa literária" com ele. Ao cabo de poucos minutos éramos surpreendidos com um aparte do género: «... Isso faz-me lembrar o último combate que tive com fulano, o tipo era muito duro, venci-o, mas com dificuldade, devo reconhecer...». E não mais parava. O pugilista batia o escritor por K.O. ao primeiro assalto e tornava-se o senhor soberano do ringue, ou seja, da conversa. 
No princípio do nosso relacionamento, contava ele mais de 40 anos, já havia deixado a alta competição. Chegou a ser campeão nacional de boxe amador, nome de cartaz nos recintos da modalidade e abrilhantava amiúde as primeiras páginas da imprensa desportiva. O atletismo representava o seu mundo, tanto que casar-se-ia com uma colega atleta, a Almerinda, também campeã. Nos intervalos escrevia contos, romances e peças de teatro que as editoras recusavam.

Um dia saudei-o ao telefone com um «olá, pugilista!». Notei ter-lhe agradado a expressão, continuei a tratá-lo desse modo. Quando publicou a biografia de Francisco Stromp, lendário paladino do ideal desportivo, fiz uma recensão na qual lhe chamava "o pugilista das mãos de oiro" numa alegoria à mais famosa das suas peças, a farsa trágica O Vagabundo das Mãos de Oiro, um dos maiores êxitos de sempre do teatro português, cujo manuscrito, confidenciou-me, foi rejeitado sucessivamente por quantas editoras existiam no País. Recorreu então às suas economias e empreendeu uma edição de autor, com tiragem reduzidíssima, agora valiosa raridade bibliográfica.

A partir de uma determinada fase, os amigos começaram a notar-lhe uma gradual transfiguração: o rosto fechado numa opressiva amargura, queixumes morosos, permanentes. Depauperado da antiga força física, Romeu ia desvivendo na nostalgia da pujança e das glórias de outrora. O padrão atlético, irremovível da sua maneira de ser, desfigurara-se de forma para ele insuportável. E lamuriava-se. Quando nos avistávamos, temia que a qualquer instante repetisse o gesto do primeiro encontro, sacando da carteira a foto testemunho do atleta em calções de banho, para que eu visse e confirmasse os tempos idos.

Num dia infeliz, beirando o fim, fui ao Chiado participar na sessão de lançamento de um livro na galeria de arte adstrita à antiga livraria do Diário de Notícias.  Já o evento ia a meio, apareceu Romeu Correia. Logo reparei que a mágoa da decadência persistia nos seus passos, no seu olhar. Terminada a sessão, eu e Baptista-Bastos (outro dos seus amigos de longa data) entabulámos com ele, num recanto da galeria, uma conversa brincalhona. Mas Romeu, desinteressado de tudo, dele próprio, apenas desfiava, com enorme crueza, lúgubres episódios («misérias humanas», nas suas palavras) que pertenciam ao território muito íntimo do seu corpo.
Sofri naquele fim de tarde ao ver o meu "pugilista das mãos de oiro" – campeão de primeira página – de braços caídos, sombrio, perdido, vencido – autor e ator da peça derradeira da vida, um drama.
Assim aconteceu a despedida.



3. AUGUSTO CABRITA, O REPÓRTER DO SILÊNCIO

cabrita


Concluídos os trabalhos de reabilitação, a Alameda Augusto Cabrita, no Barreiro, adquire agora o belo nome de Passeio Ribeirinho Augusto Cabrita. Leio num jornal que a população barreirense está feliz com este espaço da zona ribeirinha do Tejo – um espaço aprazível, repousante, onde apetece de facto passear. Onde me apeteceria passear com o meu velho amigo Augusto Cabrita, o artista e o repórter, ambos com um sentido instintivo do mundo enquadrado no formato 30 x 40, de preferência horizontal, porque é o mínimo que devemos conceder ao voo de uma gaivota. Julgo não errar afirmando que ninguém fotografou e filmou tanto o Tejo – e as gaivotas! – como Augusto Cabrita. Em quantidade e sobretudo em qualidade.

Na transição do século passado para o atual extinguiu-se da memória coletiva a geração dos grandes românticos da fotografia portuguesa. Os últimos foram precisamente Augusto Cabrita e José Antunes. Outros  nomes (cito tão-só os que já partiram) como Fernando Vicente, António Paixão, Manuel de Sousa e Amadeu Ferrari, entre outros, nada dizem às gerações mais novas. Contudo, anteciparam-se a padrões artísticos futuros – modernos, hoje – e as suas obras continuam a ser uma festa quando revivem numa ou noutra retrospetiva que alguém se lembre de empreender.
Não pode falar-se dessa geração sem evidenciar ao mesmo tempo o espírito de remarcada simplicidade que a caracterizava. Homens solidários, generosos, leais, quase pediam desculpa por nos deslumbrarem com o seu talento. No apego profissional, o seu dia-a-dia pautava-se por uma extrema modéstia. Ensinavam os mais novos com a felicidade de quem lega ao futuro frações da própria vida e faziam-no com a alegria humilde dos grandes. Os jovens chamavam-lhes "mestres", uma expressão caída em desuso porque, entretanto, os jovens tornaram-se suficientemente jovens para saberem tudo.

Augusto Cabrita foi um dos últimos desaparecidos dessa escola veterana e porventura o que mais se notabilizou pela sua sensibilidade e uma obra imensa com raízes na fotografia e ramificações inovadoras no cinema e na televisão.
Quando Ramalho Eanes, como Presidente da República, o distinguiu com uma comenda, Cabrita, no final, correu para nós, os seus colegas que faziam a reportagem, e em surdina bem-humorada comentou: «Encomendado já estou… Só me resta aguardar o momento da expedição...»

Aconselhava os novos a exercitarem o olhar e os reflexos. Angustiava-o ver jovens repórteres enredados em aparatosos equipamentos, com grandes teleobjetivas, filtros, tripé... «Carregam tanta coisa», dizia, «que não sobra espaço para a emoção.»

À reportagem e à criação artística entregava-se com um estilo silencioso. «O mais importante é, primeiro, olhar. Depois, pensa-se e escolhe-se.» Sustentava que as imagens, fossem fotográficas ou fílmicas, deveriam impor-se sem recurso a qualquer outro sentido que não fosse o da visão. O som, por meio de palavras ou de música, era para ele uma excrescência: «O silêncio é a mais poderosa das artes, a arte do olhar». Uma personagem de um dos meus romances medita a páginas tantas: «O silêncio, sim, é poderoso, a ele não se pode tirar a palavra.» A frase foi-me inspirada por Augusto Cabrita.

Pioneiro da reportagem televisiva em Portugal (guerra em Angola, na Índia e o documentário nec plus ultra sobre o terramoto de Agadir), Augusto Cabrita desconcertava por vezes os técnicos da RTP ao exigir que as imagens desfilassem longo tempo sem qualquer som. Mas quem assistiu a essas transmissões inesquecíveis teve oportunidade de corroborar a boa razão do autor: era o silêncio que, na realidade, conferia às imagens uma densidade hipnótica.

Todavia, por uma vez Augusto Cabrita cedeu. Um desafio de João de Freitas Branco e Filipe Branco: Melomanias. Sob este título realizou-se uma série de filmes a preto e branco em que assistimos a maravilhosos "bailados" de imagens ao som da música. Arrebatadora exceção à regra.

O silêncio marcou igualmente a relação de Augusto Cabrita comigo, enquanto jornalista. Dirigi durante anos uma revista na qual predominavam as temáticas do fotojornalismo, da fotografia como expressão de arte e do cinema. Incontáveis vezes frustrou projetos de entrevistas, pretextando que nada de importante tinha para dizer. Mais tarde, como responsável pela revista dominical do Diário de Notícias, continuei a insistir, sem êxito. «Que grandessíssima estopada seria para os teus leitores!» – parodiava ele.

Último quadro, último fotograma destas evasivas memórias suscitadas por uma justa toponímia municipal que vem preservando do esquecimento algumas pessoas formidáveis com quem privei e trabalhei. Eis:
Augusto Cabrita, além de cultivar a arte do olhar, era um talentoso pianista. Tinha em casa um piano de cauda no qual interpretava admiravelmente peças musicais de natureza diversa. Porém, este homem que amava o silêncio e que era ao mesmo tempo músico, ficou surdo. Uma muito longa e dramática doença roubou-lhe a audição.
Um dia tive de deslocar-me em serviço à RTP e um operador de câmara, amigo comum, informou-me:
– O Cabrita está horas e horas, todos os dias, ao piano.
Não percebi de imediato. Tinham-me dito que a surdez dele era irreversível.
Então o colega explicou:
– E toca afinado. Ele não ouve a música mas diz que a vê como se fosse um filme.


© PEDRO FOYOS






O dia em que o Zoo de Lisboa
me considerou "persona non grata"


A ordem chegou com um mote para o título: «O dia em que...». Depois, explicava-me o chefe de redação, mencionas um caso, quanto possível desconhecido, na vida do Jardim Zoológico.
Dessa forma criativa e original pretendia o meu chefe Artur Inêz assinalar uma efeméride do Zoo de Lisboa. O jovem repórter que eu era, pressuroso no cumprimento da missão, nessa mesma tarde bateu à porta da direção do Zoo a pedir colaboração para o bom desempenho da tarefa jornalística. Não ia de mãos a abanar. O título (enfim, meio-título) estava feito: «O dia em que...»
O acolhimento não podia ser melhor. Na manhã seguinte realizar-se-ia uma reunião informal com a participação de elementos directivos e antigos funcionários que tentariam recordar-se de histórias interessantes da vida do Zoo. Aguçaram-me o apetite: o meu embaraço seria eleger um episódio entre tantos.
Comprovei-o durante uma longa parada de casos fantásticos, risíveis, um ou outro não tanto, como o da cruenta cena de um homem boçal e decerto bêbedo que, depois de merendar (havia um local aprazível para esse efeito) atirou um garrafão de vidro para a boca escancarada do hipopótamo. Mas os acontecimentos eram em geral divertidos, alguns tão extraordinários que se me insinuava a impressão de ao conto ter sido acrescentado um ponto... e outro... e outro. Em evidência, no cartel dos protagonistas, o lendário elefante Benjamim, um casal de ursos que batia palmas aos espetadores, os inevitáveis macacos. Certa vez gerou alvoroço em toda a área de São Sebastião da Pedreira a fuga coletiva das araras.
A propósito de fugas...
Foi um antigo tratador quem lembrou, entusiasmado:
– Houve aquele caso do leopardo... Já não foi no nosso tempo, mas deu que falar...
Fez-se silêncio. Relanceei, intrigado, os presentes. Silêncio.
– O leopardo...? – interroguei, encorajando o tratador a prosseguir.
E ele, caindo em si, descobrindo que tinha falado de mais, evasivo, contrito como um menino apanhado em falta:
– Não sei bem. Foi há muito, muito tempo, se calhar nenhum de nós era ainda nascido...
Voltei-me para os funcionários superiores:
– Que história é essa do leopardo?
Por fim, um deles comentou:
– Nem se sabe ao certo se aconteceu. Diz-se que, poucos anos depois da inauguração do Zoo, um leopardo fugiu e andou à solta em Lisboa. O boato causou enorme prejuízo ao Jardim. Durante muito tempo as pessoas não vieram cá com receio de encontrarem por aí feras a espairecer fora das jaulas. Essa é uma história sem interesse. Os boatos, com o tempo, vão tornando-se factos.
Fiz nova tentativa, fracassada. Compreendi não me ser possível abrir a redoma de silêncio em que se tinham fechado. Logo a seguir, porém, reavivou-se a avalancha de episódios divertidos.
A simples evocação de um hipotético caso ocorrido décadas antes continuava a causar o temor da deserção dos visitantes. A mais indesejável das notícias para a direção de um Jardim Zoológico será a de que uma fera se evadiu. Tendo mesmo acontecido (há um ou cem anos, parece indiferente) o mais provável, pensará o visitante, é voltar a acontecer, e vaticinará – com altíssima certeza – que a infausta ocorrência coincidirá com o dia planeado para a visita...
Num ápice todos os relatos se me afiguraram historietas para pequerruchos. Eu tinha filado um leopardo, salvo seja, e não o deixaria fugir enquanto a história permanecesse inexplorada. O meio-título «O dia em que...» desfraldava-se por inteiro, vigoroso, magnífico: «O dia em que um leopardo andou à solta em Lisboa».
Mas... Teria de provar tratar-se de um caso real.

É sabido nas redações que ao investigar-se um caso enovelado sempre aparece alguém que, em discreta cumplicidade, entre mostra o "mapa do tesouro" e permite dar uma espreitadela. O clássico "garganta funda". No "caso do leopardo que andou à solta em Lisboa" o acesso ao "tesouro" teria de passar pelo conhecimento da data do episódio, fosse ele factual ou fantasiado. Primeiro passo em terreno firme dei-o quando o meu informador me adiantou que o "caso do leopardo" se passara efetivamente no início do século, provavelmente em 1905. Corri para a Biblioteca Nacional, que ao tempo funcionava na área do Chiado, e ao cabo de três horas resisti com dificuldade a profanar aquele templo da leitura com um grito de vitória. O "caso do leopardo" não era nenhum boato, como se pretendia. Acontecera de facto. Confirmado e reconfirmado em três diários lisboetas.
Eis: um leopardo de grande porte conseguiu destelhar a jaula onde fora colocado, saiu para as ruas do parque e depois, assustado com o alarido entretanto produzido por empregados e visitantes, galgou as muralhas do recinto e viu-se senhor da grande cidade. Livre. O infinito franqueado aos seus olhos espantados, sem varões de ferro a intercetarem-lhe o ar fresco da mãe-natura. Durante mais de uma hora percorreu, em digressão de turista estugado, o território vasto e estranho, até que uma força da Guarda Municipal, com dezena e meia de soldados «comandados pelo sargento Pereira», tentou cortar-lhe o passo. Foram disparados tiros que feriram o animal, obrigaram-no a fugir, minutos depois caía à entrada do túnel das Águas Boas. Um soldado da 3ª companhia, ao ver o leopardo imóvel, acercou-se mais, julgando-o morto; todavia, a fera ergueu-se de súbito e saltou sobre ele, apesar de o militar lhe disparar ainda um tiro que a atingiu. O repórter do matutino faz ressoar os lances sequentes: «Deu-se, então, uma cena terrível. O leopardo agarrou o soldado, feriu-o no rosto e derrubou-o. Diante de semelhante desgraça os soldados atiraram de novo, numa confusão medonha, e feriram o camarada.»
Saldou-se o confronto por um morto (o leopardo) e um ferido grave (o soldado).
Recolhi com minúcia toda a documentação relativa ao suposto "boato" do leopardo fugitivo e transmiti-a à direção do Zoo, participando, polidamente, com honestidade, que outra não poderia ser a história a publicar.
Reação gélida, como previa. O meu interlocutor ficou irritadíssimo, ou, melhor, para não sair do campo zoológico: pior que uma barata. E senti que a partir daquele momento era "persona non grata" no Jardim Zoológico.

A reportagem com o sonante título "O dia em que um leopardo andou à solta em Lisboa" teve assinalável êxito, tanto que fui presenteado com uma gravura do género "o fotógrafo estava lá". A impressiva ilustração seria mais tarde incluída no meu livro "O Jornal do Dia", para o qual recuperei igualmente o pitoresco remate de uma das notícias da época:
«O soldado ferido foi conduzido num carro elétrico para o hospital de São José, onde ficou internado em estado considerado grave. O leopardo havia sido oferecido pelo sr. João de Azevedo Coutinho a Sua Majestade El-Rei, que por sua vez o ofereceu ao Jardim Zoológico.»

Durante muitos anos não voltei ao Zoo de Lisboa. Regressei um dia, tempo mais recente, também em serviço. Um dia longo, doze horas consecutivas, para acompanhar um número de escapismo do mágico Luís de Matos realizado sobre o Solar dos Leões, que reportei extensamente em duas edições do "Diário de Notícias". A aventura ilusionística teve percalços, o mágico sofreu um acidente quando se encontrava suspenso pelos pés, por cima dos leões, numa corda a arder (uma peça de metal incandescente atingiu-o nas costas), os ensaios e filmagens iniciados a meio da tarde só terminaram madrugada alta, quase manhã.
Confidencio-vos: ao circular nessa ocasião por entre numerosos funcionários do Jardim, temi ser reconhecido: «Então? O senhor outra vez por aqui?!». Mas não. Muitos anos tinham passado sobre o "caso do leopardo". O assunto desvanecera-se por completo. Quando muito persistiria na memória do mais velho dos elefantes.


© PEDRO FOYOS






O almirante Tenreiro
e o problema do robalo

Um divertido episódio que em tempos remotos era contado no meio editorial português. Protagonista: o almirante Henrique Tenreiro, que os jornalistas oposicionistas da época cognominaram "Imperador do Bacalhau". As novas gerações não saberão quem foi o almirante Tenreiro, o que por um lado é ótimo, mas, por outro, muito ficam a perder porque a personagem em apreço permaneceu quatro décadas no coreto do anedotário nacional. Anedotas, convém assinalar, sempre contadas em surdina, precavendo-se a proximidade das orelhas espetadas dos bufos do regime. Os meus compatriotas velhuscos bem se lembrarão de uma delas, histórica, que circulou à velocidade da luz no dia do assalto ao paquete "Santa Maria". Alguém correu para Salazar a dar a notícia:
- Roubaram o "Santa Maria"!
- O relicário da nossa capela?
- Não. O navio! O navio, senhor presidente!
O ditador reage com uma ponta de exasperação:
- Este Tenreiro está a ir longe de mais!

Não cabe aqui fazer a biografia do almirante Tenreiro, tão-pouco desterrar o repositório infindo de anedotas, mas é importante referir que o "Patrão das Pescas", como também era conhecido, ocupou por largo tempo o pódio oligárquico deste país, logo a seguir a Salazar e ao cardeal Cerejeira. Encarei-o algumas vezes em serviços de reportagem, dele retenho a imagem de um homem ávido de protagonismo, exuberante e garboso, autoritário, ostentando poder. Onde quer que estivesse e qual fosse o acontecimento cabia-lhe por inteiro a ribalta. Mais que "patrão das pescas" reinava sobre terra e mar. Mas foi na condição de "obreiro social" do regime que um dia manifestou o desejo de comprar a totalidade dos pavilhões da Feira do Livro. O objetivo seria utilizá-los como postos fixos de venda de peixe, distribuídos pelos bairros lisboetas, no âmbito de uma iniciativa de serviço público que o Governo patrocinaria. Os pavilhões de ferro (largas dezenas) cumpriam os requisitos para um novo e inopinado ramo literário – o da pescadinha e do carapau – função que até ao momento tinha escapado a toda a gente.
Os editores, reconhecendo, já então, o figurino obsoleto das "barracas", interessaram-se pela proposta. Saltava à vista que um acordo com o "Imperador do Bacalhau" permitiria obter a verba necessária para mandar construir outros pavilhões em novos moldes, mais modernos e funcionais, viabilizando em certa medida o sempre ambicionado rejuvenescimento da Feira do Livro.
Foi nomeada uma comissão negociadora cuja tarefa consistia em demonstrar ao almirante a excelência do produto para o fim da venda do pescado. Dir-se-ia que as "barracas" haviam sido planeadas de raiz para tal desempenho, mas alguém as desencaminhara para o negócio do livro.
Assim, em terrenos arrabaldinos do Lumiar montou-se um pavilhão-modelo, impecável. E foi convidado o "Imperador" para a mostra.
Chegou, na manhã do dia seguinte, acompanhado do inevitável e mastodôntico "secretário particular", com o posto de guarda-marinha, mais um civil que carregava uma pesada mala de viagem.
Um minuto depois, resolvidos os cumprimentos da ordem, a perplexidade total ao ver-se o recheio da mala. Eram livros. Muitos exemplares de um só livro. Tratava-se, afinal, de um gesto de cortesia. A obra, O Problema da Pesca, do almirante Tenreiro, oferecida ali a cada um dos presentes, incluindo os serralheiros já aprontados para a desmontagem após o ato. E com autógrafo! A seguir, toda a gente comprovou a perfeita adequação da "barraca" para o negócio do peixe.
Encantado, o almirante. Os bairros iriam beneficiar de mais um inovador serviço público, mais uma magnificente obra social do regime.  
De súbito, o "Imperador" deu um estalido com a língua. Algo o contrariava. E bradou:
– As prateleiras!
Sobressaltou-se a assembleia:
– As prateleiras?! Que têm as prateleiras, senhor almirante?
– Que têm, não. O problema é que não têm.
– Não têm?!
– Ó senhores, não têm profundidade! Não se vê que lhes falta profundidade?
Explicou: as prateleirinhas do fundo não tinham espaço para o robalo.
– O robalo – esclareceu gravemente – é fundamental. Só na última campanha representou trinta por cento do pescado graúdo. Passou à frente da garoupa.
Um livreiro argumentou com esperteza:
– Veja, senhor almirante, as prateleiras darão para o peixe miúdo, carapau, sardinha...
O "Imperador" sentenciou:
– Os senhores têm de perceber uma coisa. Não podem arrumar o carapau e a sardinha a pino como se fossem livros. Estas prateleiras não dão para peixe, seria preciso refazer a estrutura. Um trabalho para cima de um dinheirão. O negócio faz-se, faz-se sim senhor, mas, tenham paciência, por metade do preço. Estamos a tratar de uma obra social!

O negócio não se consumou. O almirante, inflexível, manteve a oferta a metade. E lá perdeu Lisboa a planeada rede de venda de peixe. E perdeu a Feira do Livro a oportunidade da sua renovação, sucessivamente adiada por décadas. Por causa do robalo.


© PEDRO FOYOS