peter

CRÓNICAS DE PEDRO FOYOS

(pisando descontinuamente o risco)


RECEITUÁRIO DOMÉSTICO

filete


Como tornar mais eficaz a transição
para as próximas pilhagens aos supermercados


As coisas até não correram nada mal no primeiro ensaio geral promovido pela cadeia do Pingo Doce. Alguma barafunda, é certo. São afinal desconexões de grupos (o empresarial e o social) quase inevitáveis quando se empreende pela primeira vez uma operação caritativa com enorme participação popular. Quase inevitáveis mas que, no juízo deste Leal Conselheiro, é preciso evitar. O mais importante de imediato será repetir algumas vezes o ensaio até se alcançar uma perfeita eficácia na transição para as próximas pilhagens, em grande escala, aos supermercados. Foi desgostante assistir, por exemplo, ao comportamento atarantado de muitos consumidores que percorreram, sôfregos e descompostos, os labirintos daquelas mil e uma oferendas sem que tivessem traçado antecipadamente um plano de investida metódica. A organização é essencial, mesmo no que concerne a pormenores como as fintas, ultrapassagens, astúcias, rapinanços, opções de percurso e sobretudo ao modus faciendi do esvaziamento das prateleiras. Tolera-se que o consumidor vá agadanhando por aqui e por ali, atento às oportunidades, porém nunca desatendendo elementares princípios cívicos. Certas imagens transmitidas pelas televisões são deploráveis, não poderão repetir-se quando chegar o dia da Grande Pilhagem. Daí a necessidade de se efetuarem mais dois ou três ensaios. Ver-se-á então que, ordeiramente, é possível não ficar esquecida nos recônditos dos expositores sequer uma modesta embalagem de palitos. Os próximos ensaios ajudarão a obviar os conflitos entre consumidores. Simples: basta respeitar cordatamente quem chegou primeiro a um determinado setor de produtos. Dá-se uma pancadinha nas costas do concorrente, murmura-se-lhe com um sorriso: «Sorte a sua, hein?!» – e segue-se para o ponto seguinte do plano. Ficou também demonstrado no primeiro ensaio que os transportes rodoviários privados são um desesperante empecilho. Este Leal Conselheiro receia que na ocasião da Grande Pilhagem tal género de congestionamento possa estragar um dia que se deseja feliz e fausto para a comunidade de consumidores. Urge mudar de hábitos, de preferência já no próximo ensaio geral. Cada pessoa ou aglomerado familiar deverá quanto antes fazer o pequeno investimento de obter um ou mais carrinhos de compras de marca branca ou vulgares carros de mão de tipo agrário. Depois, em passeio, transportarão esses carros de ida e volta até casa ou até ao local mais ou menos distanciado onde estacionaram a viatura particular.

Já se deixa ver que o dia da Grande Pilhagem (e demais sequentes) será calendarizado pelos consumidores, sem anúncio prévio, como é da praxe. Uma pequena diferença em relação ao que se passou no dia 1 de maio: o valor do desconto. Obviamente não será de 50 por cento, mas sim de 100 por cento. As autoridades deverão mostrar-se colaborantes e simpáticas. O pessoal das caixas abandonará as mesmas, até porque deverá ser privilegiado no direito de fazer o seu próprio açambarcamento. Quanto às administrações, note-se que nada terão a temer. A legislação atinente à situação é por completo omissa quanto a ações de pura filantropia. Pelo contrário, serão credoras dos maiores encómios pelo seu altruísmo – predicado que, bem trabalhado publicitariamente, terá enorme efeito: «Venha cá, nunca se sabe quando sairá sem pagar!»


© PEDRO FOYOS






  Como celebrar George Orwell
no País das "escutas" e dos pequenos "brothers"

ESCRITO NO TEMPO EM QUE O PRESIDENTE DA REPÚBLICA DE PORTUGAL                
SUSPEITAVA PUBLICAMENTE DE ESTAR A SER ESCUTADO,               
AO MESMO TEMPO QUE O PRIMEIRO-MINISTRO DESSE FABULOSO PAÍS                
ERA APANHADO EM MÚLTIPLAS ESCUTAS                
E QUE ÓRGÃOS DA COMUNICAÇÃO SOCIAL TRANSCREVIAM COM ASSIDUIDADE                
PÍCARAS ESCUTAS FEITAS A MUITO OUTRA GENTE ESCUTADA                


Nenhum país do mundo, excetuando Portugal, estará a celebrar de forma tão efusiva, autêntica, inspirada, os sessenta anos da publicação da célebre distopia literária "1984", de George Orwell. A data é apenas uma menção fantasmática. Na verdade, esse facto transmitiu ao livro uma histórica auréola profética, todavia o que Orwell fez, simplesmente, foi trocar os últimos algarismos do ano em que concluiu o romance – 1948, o qual, no entanto, só seria publicado mais tarde. 
O obscuro vocábulo antónimo de utopia é distopia. Ou seja, a utopia às avessas. Os paraísos sonhados convertidos em pesadelos reais. Em rigor, as ficções especulativas centradas no futuro da Humanidade são quase sempre distópicas, nada utópicas. Utilizando um exemplo local: em 25 de Abril de 1974 a quase totalidade da população portuguesa viveu a utopia de um país maravilhoso. Meses depois a utopia começou a esmorecer, foi agonizando como um animal ferido de morte e passadas décadas cedeu enfim o lugar a uma indominável distopia. O futuro, pelo menos a médio prazo, tinge-se de uma negridão impenetrável.
Do ponto de vista ficcional e histórico a situação não configura novidade. Nunca uma utopia morre de velhice: transmuta-se quase sempre em distopia. A maior parte da literatura universal não existiria se se vivesse numa eterna utopia. Ocorre lembrar a escritora Ursula K. LeGuin, que confidenciava detestar as utopias porque eram sempre enfadonhas ou ambíguas.
Pelo contrário, as distopias, com todo o pessimismo de rutura com visões abúlicas de um mundo de felicidade geral, revelam-se mais estimulantes numa perspetiva de criação ficcional e também muito mais verosímeis como corroboram sem descanso a Política e a Justiça da ditosa pátria.
Quem conheça a famosa obra de Orwell saberá que o universo interiorizado pelo escritor firmava-se na supressão da privacidade, na vigilância omnipresente. Não existiam ainda telemóveis e computadores. Os processos atuais adquirem formas subtis, perversamente veladas, não consciencializadas sequer pela massa sujeita à "normalização". O vocabulário da vigilância enriquece-se agora com expressões como "escutas ambientais" – ou seja, de nada servirá fecharmos portas e janelas porque haverá um Grande Ouvido ou um Grande Olho, ou ambos maquinados, que, infalíveis, lépidos, nos descobrirão.
A tirania e um certo totalitarismo invisível – o Big Brother sem nome e sem rosto – vão esvaziando o homem da autonomia individual do seu pensamento, da apetência para a criatividade, da capacidade de decidir. Com todo o respeito para com os senhores Presidente da República e Primeiro-Ministro (nas condições respetivas de muito hipotético escutado e de muito insurgente escutado) dir-se-á que as nebulosas, inadmissíveis e sempre sensacionais escutas a que possam estar sujeitos representam uma vilania menor. São duas honoráveis pessoas mas tão-só duas pessoas. O problema aterrador que começa a insinuar-se neste Leal Conselheiro e possivelmente na população é o de um certo pressentimento orwelliano de metade da pátria estar a ser escutada, vigiada pela outra metade, constituída por pequenos "brothers", igualmente sem nome e sem rosto, que nos vão encarcerando num "gulag" repressivo do pensamento.
Uma sociedade de escutadores de telefones, de conspiradores e espreitadores, é algo de inquietante. Mas Portugal celebra os sessenta anos do Big Brother com a recriação folclórica de um Big Brother multiplicado por mil. E um programa extra, exuberante, de golpes e contragolpes, faustosas sacanagens, pantagruélicas doses de intrigalhada de altíssimo nível, e ódios fulanizados, e casos, muitos casos ferventes de gritos, de cóleras, e escândalos, e novelas e novelos sem ponta e sem fim, e suspeições, outras suspeições supostamente suspeitosas, e verdades, outras juradas verdades que são mentiras, e mentiras, outras juradas mentiras que são verdades, e segredos revelados, e revelações segredadas...
Ah, Mr. George Orwell, permita que, na toada blasfematória, este Leal Conselheiro adite, por sua conta e risco, esta:
Portugal excede-se na celebração e, sorry, ultrapassa-o!


© PEDRO FOYOS

Informação ao visitante ocasional:
Dedica-se a George Orwell espaço alargado na secção "Grandes Ficções do Outro Mundo".




A ESCUTA DO DIA                                              

— Direção de Informação, muito boa noite.
— Boa noite.
— Em que posso ser-lhe útil, minha senhora?
— O senhor é pessoa... como dizer?... de responsabilidade nessa estação?
— Bem... sou um dos adjuntos do Diretor.
— Então é assim. Eu quero apresentar uma reclamação.
— Sim? Ah, nesse caso... faça o favor. A senhora quer reclamar sobre quê?
— Sobre as escutas.
— As escutas!? Não percebo...
— Ó senhor, que escutas hão de ser?
— Estará a referir-se ao nosso espaço de serviço público – "A Escuta do Dia"?
— Que eu saiba é o único que emitem sobre escutas.
— Temos outro, com outro género de escutas, mas está ainda por estrear. Se a senhora     estiver atenta à nossa programação irá...
— É precisamente sobre a programação que eu quero reclamar!
— Há algum problema com a programação?
— Há sim, há problema! O senhor sabe perfeitamente que há problema e não é primeira     vez.
— Se tivesse a gentileza de ser mais... explícita...
— Então o senhor não está a seguir a emissão?... o que estão neste momento a emitir,     não está a seguir?
— Claro, tenho um monitor aqui mesmo à minha frente.
— Diga-me então o que tem que ver a gravação que estão a transmitir com o que foi     anunciado.
— Ah, pronto, já entendi!
— O que está anunciado, para esta hora, na vossa estação, é uma conversa integral e     muito privada entre o primeiro-ministro e o cardeal-patriarca. É essa conversa que está     na programação!
— Na verdade, minha senhora, tem toda a razão. Tivemos de fazer uma alteraçãozinha     por motivo alheio à nossa vontade. É uma tristeza verificar que alguns órgãos de     informação se dispõem a quebrar os mais básicos deveres éticos. Aconteceu – pelos     vistos a senhora não sabe –  que um jornal desta manhã se antecipou e publicou essa     conversa todinha e cá com um destaque!
— Por muito destaque que um jornal dê a uma conversa privada nunca é a mesma coisa     que ouvi-la... assim... de viva voz. Pode lá comparar-se!
— Nesse aspeto, estou de acordo com a senhora. Mas reconhecerá que as conversas de     substituição que por vezes pomos no ar também não são desinteressantes...
— Ai, não diga isso! Já não há pachorra para repetições como aquela que estão sempre a     passar, aquela da conversa noturna entre uma líder da Oposição e um deputado do     mesmo partido, aquele infeliz que padece de asfixia, tá a ver?
— Sim, no entanto… essa conversinha… humm… tem um picantezinho especial... não     acha?... Há ali partes… hi hi hi... 
— Por favor! Conversas de chacha. Novelas de pátio das osgas. É como esta, a que estão     a transmitir agora, entre o sucateiro e o banqueiro. Também já é a terceira vez que a     ouvimos. Que seca! Aquela gente passa a vida a falar de "quilómetros", "barrotes",     "tijolos"...
— Posso esclarecer. Um "quilómetro" representa mil euros.
— Ah, não sabia.
— E um "barrote" equivale a um maço de cem notas. São termos utilizados pelas pessoas     habituadas a movimentar dinheiro. O "tijolo", por exemplo, é de arromba: pacote de     dez maços de cem notas.
— Então deviam pôr legendas! A gente assim não compreende nada!
— É uma ideia a ter em conta, sim-senhora. Creia que não poupamos esforços para     satisfazer o público. Agora mesmo está em curso um plano ambicioso no sentido de     que uma conversa possa ser de imediato transmitida em direto. Será o "Especial     Escuta Direta". Essas, é inevitável, serão sempre integrais.
— Então as outras não são integrais?
— Bem… Convém por vezes fazer um tratamento editorial. Certas coisas não se quadram     no nosso Estatuto Editorial. A senhora deverá saber que esta estação é muito zelosa     quanto aos princípios da educação e da moral.
— Está a falar das grosserias, daquela linguagem…
— Isso ainda é o menos. Põe-se por cima um "piiii" e pronto. Outras coisas tornam     mesmo indispensável um tratamento editorial. Em relação ao "Especial Escuta Direta",     aí não há nada a fazer. As conversas terão de ser emitidas em estado bruto, salvo     seja. Se começarem a aquecer, pespega-se a bolinha no canto.
— Ui!... está a abrir-me o apetite… Quando começa?
— Aguardamos apenas o parecer da Entidade Reguladora para a Comunicação que em     princípio não colocará entraves desde que os escutados não sejam os próprios     membros da ERC. Eles agora até deram em imitar o presidente da República e o     primeiro-ministro, mudam de telemóvel todos os dias, os malandros…
— Essa gente das regulações sempre foi muito esquisita.
— É verdade. Mas nós sabemos como lhes dar a volta. Vamos negociar, temos gravações     muito comprometedoras... hi hi hi..., não se comparam com as que eles intercetaram     ao nosso Diretor.  
— Espero que no meio de tudo isso não fique esquecida a reclamação que me levou a     telefonar.
— Comunicarei ao Diretor numa próxima oportunidade.
— Acho que devia comunicar já.
— Já-já é um tanto difícil, estamos todos muito ocupados com a estreia do novo     programa de que falei à senhora, no início – o "Diz que se disse na mesa ao lado". No     entanto, acredite, não tardarei a contactar o Diretor.
— Que ele não interprete mal. Afinal o que eu e todo o público pretendemos é apenas que     a vossa estação tenha por nós algum respeito, que nos oiça. Tome boa nota disto!
— Esteja descansada. Tá a gravar.


 

© PEDRO FOYOS






Como endiabrar a visita de Sua Santidade
com historietas um nadinha inconvenientes


ESCRITO EM MAIO DE 2010, VÉSPERAS DA CHEGADA A PORTUGAL DO PAPA BENTO XVI
        


1. O PROBLEMA DOS PAPAS MAIS PAPISTAS QUE JESUS


Citação:
Eis que um anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: José, filho
de Davi, não temas receber Maria por esposa, pois o que nela foi concebido
vem do Espírito Santo...




Houve um tempo em que o teólogo Joseph Ratzinger (atual Papa Bento XVI) era uma figura de exceção na Igreja Católica, concitando enorme respeito, até admiração, nos meios da intelectualidade ateísta e do catolicismo progressista. Foi o tempo pós-Concílio Vaticano II, evento histórico, surpreendente lufada de renovação que chegou a alarmar os Serviços de Censura em Portugal, cuja direção – bem se lembra o autor deste Receituário – chamava a si a supervisão de todo o noticiário e artigos referentes ao Concílio, sendo de hábito os textos devolvidos com o carimbo de "Proibido" ou ferozmente mutilados. O jovem teólogo Ratzinger, participante influente nessa obra renovadora empreendida por João XXIII, parecia querer sobrelevar, em audácia e discernimento, as reformas conciliares, tanto que terá sido dos poucos a fustigar a hierarquia clerical mais retrógrada com temas secularmente intocáveis como a sexualidade ou o pecado original. De notar que o próprio Concílio, não obstante as múltiplas sensibilidades e correntes progressistas que logrou congregar, derrotou uma tese desassombrada alusiva à virgindade perpétua de Maria de Nazaré, mãe (sem pecado) de Jesus.

Volvido meio século, permanecem intocáveis os temas de especificidade bem conhecida e discutida pela opinião pública, como o celibato obrigatório dos padres e a ordenação das mulheres. Em relação ao primeiro, poder-se-á avançar a perversa suposição de que Ratzinger está a sofrer um castigo divino, porque teve o poder, enquanto perene segunda figura da hierarquia da Igreja Católica, de contribuir para revogar uma lei antinatura imposta aos membros do clero: a de serem assexuais. O cardeal e depois Sumo Pontífice nada fez, nem como segunda figura nem como sucessor na Cadeira de Pedro. Pelo contrário, produziu um texto em que reforça o conceito de um clero assexual. No âmbito dos escândalos de pedofilia, acrescem os seus penumbrosos silêncios e omissões. Às supremas questões das condutas morais somam-se as materiais. Ratzinger é indisfarçavelmente um dos responsáveis pelos enormes prejuízos que está a sofrer a sua Igreja: a norte-americana, por exemplo, exibe a cifra colossal de três biliões de dólares advenientes das indemnizações às vítimas. E a contabilidade dos crimes não está ainda encerrada.

O problema do Papa Bento XVI, comum, aliás, a todos os antecessores, é o de ser mais papista que Jesus Cristo. Admissivelmente celibatário, Jesus não exigiu o celibato aos apóstolos, alguns dos quais eram casados. Não o era São Paulo, que todavia escreveu: « (...) para evitar o perigo da imoralidade, cada homem tenha a sua mulher e cada mulher o seu marido».

O Papa de olhar enigmático e sorriso coriáceo que nos próximos dias trará a palavra divina ao Povo Cristão deste cantinho do mundo deixou de ser há décadas o teólogo evoluído, tolerante, racional do Vaticano II. Não é mais o promotor lúcido da célebre "Declaração sobre a liberdade e a função dos teólogos na Igreja" que a Censura marcelista cortou de alto a baixo em Dezembro de 1968. Ninguém lhe descobrirá um gesto, uma palavra, um esforço para acertar o passo com a marcha do progresso civilizacional. Nem se lhe ouvirá um suspiro de reconsideração sobre as suas inumeráveis prédicas, do mais rígido conservadorismo, condicionadoras da liberdade individual, de entre as quais se figura crudelíssima e insuportável a respeitante ao uso do preservativo.

De volta ao início: o dogma da Imaculada Conceição (Conceção) – Virgem Maria divinizada, concebendo sem o pecado de uma relação sexual normal. Um tema que, outrora, era por Ratzinger considerado de uma extravagância merecedora de reformulação. É neste ponto que o vosso e revosso Leal Conselheiro vislumbra uma oportunidade de endiabrar a visita de Sua Santidade. Indispensável, para tanto, que o leitor tenha sido privilegiado com o convite e distintivo que lhe darão acesso, na manhã de quarta-feira, no Centro Cultural de Belém, a uma sessão dedicada ao "mundo da cultura". O programa da visita explicita: «Encontro do Papa com representantes do mundo da cultura».

Dificilmente se repetirá uma ocasião de estar tão próximo do Papa e de ele poder ser interpelado. O ato de "endiabramento" que propomos ao leitor investido na qualidade de "representante do mundo da cultura" será distinto, polido. Andou bem João Marcelino, diretor do Diário de Notícias, ao reprovar anteontem a eventualidade de um jornalista sedento de notoriedade perguntar ao Papa qual foi a última vez que teve relações sexuais. Fique claro que golpes baixos e chafurdices estão excluídos em absoluto do livro de estilo deste Receituário.

Endiabrar, sim, mas com elevação. O ato de "endiabramento" que o leitor protagonizará exige aquela intrepidez celebrizada em 1969 pelo universitário Alberto Martins, atual ministro da Justiça, quando, de forma desabrida, interrompeu uma cerimónia que decorria em Coimbra e se dirigiu ao Chefe de Estado, o serôdio almirante Américo Tomás.

Da mesma forma o leitor enfrentará Sua Santidade e dirá (sendo em alemão, tanto melhor) que deseja citar um longevo teólogo. Assim, de imediato:

A filiação divina de Jesus não se baseia no facto de Jesus não ter pai humano. A doutrina da divindade de Jesus não seria posta em causa se Jesus fosse o fruto de um casamento normal.

Tão herética intervenção causará decerto algum burburinho. O Papa ou alguém por ele inquirirá de quem são aquelas palavras.

O leitor, então, placidamente, responderá:        

– Saiba Vossa Santidade que as palavras são do saudoso teólogo Joseph Ratzinger. Escreveu-as quando tinha 42 anos. Depois disso não cessou de involuir.


2. O MILAGRE DA POMADA BALSÂMICA

 

O AUTOR DESTE RECEITUÁRIO, CUMPRINDO A MISSÃO DE QUE ESTÁ INVESTIDO (ELUCIDAR O CIDADÃO BARALHADO SOBRE A COMPLEXIDADE DO MUNDO ATUAL), EVOCA NO TEXTO SEGUINTE EPISÓDIOS DA SUA VIDA PESSOAL.
FICA ASSIM JUSTIFICADO O USO EXCECIONAL DA PRIMEIRA PESSOA



miudo engripado



Citação:
«Mas como foi isto, meu Deus?
Como foi isto? Que milagre foi este?
(...) Maria Santíssima!

Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais



Foram perturbados os meus verdíssimos anos de menino-órfão de mãe. Aos sete anos e meio, quas'oito, expediram-me para um colégio modelar na região centro do País. Um estabelecimento de ensino sui generis, vincado cariz militar, vestíamos farda, o bivaque era obrigatório quando íamos em passeio ou tínhamos de marchar. Dispúnhamos de uma farda muito bonita para os dias festivos: azul-escuro, botões dourados, o luzente emblema do colégio bordado também a ouro. Era com essa farda que nós, garbosos e de alma derretida, marchávamos pelas ruas da cidade. Alegria efémera. A tristeza chegava à noite quando, na camarata silenciosa, tentávamos apagar sob a roupa da cama o lume vivo das lágrimas e das memórias.

As placas tectónicas da minha vida já estavam imensamente desajustadas quando, por razões que não consigo recordar, transitei do rito militar para a iniciação religiosa. O novo colégio, em Lisboa, era administrado por padres católicos. Continuei em regime de internato. Tive então de decorar uma boa dezena de orações, rezadas em voz alta no decurso do dia: antes da primeira aula da manhã, antes e depois do almoço, antes da primeira aula da tarde, antes e depois do jantar, na camarata, perfilados ao lado da cama, e noutras ocasiões avulsas. Decoravam-se as rezas por ouvido, prestando atenção às palavras moduladas pelos colegas mais velhos. Cometi um erro de interpretação que perdurou por longuíssimo tempo. Pronunciava, com absoluta inocência, eu pescador me confesso. Quando dei conta do engano, achei divertido continuar a assumir-me como pescador. Passei a entoar a palavra-lapso com desafiante sonoridade, mas, para minha grande frustração, ninguém se apercebeu da heresia fonética.

Uma tarde queixei-me de arrepios de frio e de ardor na garganta. O padre Ezequiel pôs a mão na minha testa, ordenou-me que fosse para a camarata e metesse na cama, que ele já iria ter comigo para me tratar. Minutos depois, o padre Ezequiel, sentado à beira da cama, tirava-me a temperatura e perguntava, entre zeloso e meloso, onde é que me doía. Logo espetei um dedo denunciador para a garganta, depois para o peito. «Dói-te também o peitinho, é?». Assenti com a cabeça, vigorosamente. O padre Ezequiel retirou-se, um minuto depois regressou com um frasquinho de Vick Vaporub. Descobri então que a eficácia da pomada era maior quando aplicada à distância deslizante de alguns palmos da garganta e do peito, regiões que mereceram tão-só umas pinceladas despachadíssimas. Com mais vagar e a doçura de um tocador de cítara, o padre pôs-se a dedilhar a pomada abaixo da cintura. Imediatamente abaixo, latitude Sul, se é que me faço entender.

De medicina pouco ou nada sei, todavia posso garantir que aquele unguento canforado foi uma dádiva dos céus. À hora do jantar, quando o padre Ezequiel voltou à camarata para nova terapia, já não me encontrou lá. Eu estava no refeitório, vivaz, são como um pero. Maria Santíssima! Os sintomas prégripais não duraram um credo, pode dizer-se que as dores na garganta e no peitinho foram entrada por saída. Vendia saúde mas ao mesmo tempo dominava-me o receio de vir a saber-se que naquela santa casa acabara de ocorrer uma cura milagrosa. Por muito menos, creio, terá sido declarada a canonização de tanta gente votada ao sublime ministério da virtude.

© PEDRO FOYOS





Como aplicar as leis fisiológicas de Pavlov
aos antigos censores da Ditadura

 

As celebrações evocativas de Ivan Pavlov, suscitadas pela efeméride dos 75 anos da morte do eminente fisiologista russo, trouxeram ao Receituário Doméstico a memória de um episódio pitoresco testemunhado no tempo da Ditadura salazarista. Este vosso e revosso Leal Conselheiro trabalhava então no único diário português que estoicamente se assumia oposicionista ao regime vigente. Jornal flagelado pela Censura como nenhum outro. Em contrapartida, essa condição insurgente gerava cumplicidades admiráveis em todos os setores da vida nacional. Por exemplo, a que permitia conhecermos com a antecedência de um ou dois dias as obras que a Censura havia decidido mandar retirar do mercado livreiro. De facto, o primeiro organismo não oficial conhecedor das proibições era a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), à época com a designação de Grémio, onde alguns destemidos funcionários se apressavam a passar-nos a informação. Jornalistas de outras publicações não deixavam de ser privilegiados nesse rotineiro secretismo informativo, mas o diário República, sob a direção do heroico Carvalhão Duarte,era sempre o primeiro.

A Censura cometia amiúde a bendita precipitação de transmitir formalmente, com registo protocolar, as proibições, quando os livros destinados ao Índex ainda se encontravam nas livrarias. Apenas no dia seguinte ou dois dias depois apareciam nos estabelecimentos os agentes da polícia política (PIDE) incumbidos do desapiedado "arresto". Aproveitávamos esse lapso para de imediato corrermos aos livreiros amigos, que por regra desconheciam ainda a próxima visita dos confiscadores. E abastecíamo-nos da mercadoria em vias de extinção. O Leal Conselheiro evoca emocionado o livreiro lisboeta António Barata, na Avenida de Roma, a mais discreta pessoa que conheceu até hoje e que tantas vezes lhe guardou, nos esconsos da lojinha, os livros proibidos (em número de dezenas). Preserva-os em "lugar de honra" na sua biblioteca. Cada um tem a sua história e na soma representam um trecho dramático da nossa História.

Um dia, toda a redação ficou atónita com a notícia secreta de nova proibição. O autor da obra interdita dessa vez aos olhos dos portugueses era um dos mais famosos cientistas do século, Prémio Nobel da Medicina em 1904: Ivan Pavlov. Maior a estupefação ao saber-se que o teor "subversivo" do livro respeitava apenas às investigações do cientista no domínio da Fisiologia. Deste ato censório inferia-se forçosamente que a proibição não resultava da natureza da obra, antes da "má-natureza" do autor, o qual, não sendo político, carregava contudo o labéu de uma nacionalidade maldita: a então União Soviética.

lapis azul

Era a primeira vez que assistíamos a tal procedimento aplicado a um livro. A prática habitual, bem nossa conhecida, confinava-se ao noticiário e a artigos. Os nomes próprios com sonância russa, fossem ou não conhecidos, atraíam instantaneamente o lápis azul. Mais hilariantes eram os casos dos nomes cortados por causa dessa sonância, apesar de os autores não procederem de países comunistas. Mas... ao ouvido eram suspeitos.

Ao rememorar o episódio, o Leal Conselheiro deu consigo a meditar sobre as leis fisiológicas de Pavlov aplicadas aos censores portugueses durante a Ditadura. Pavlov descobriu – marco histórico da Ciência – que os reflexos condicionados (também designados aprendidos) formados no córtex cerebral são produzidos por um estímulo inicialmente sistemático, o qual resulta aprendido.

grafico cao

O gráfico aqui reproduzido ajudará a apreender a tese, bastando substituir mentalmente a cabeça do cão pela cabeça do censor.

Indispensável, para o êxito da experiência, um lápis azul sobre a mesa.

Vejamos: o cão produz saliva quando lhe é apresentado um alimento, circunstância que serve para ajudar a ingestão do alimento.

Coloquemos agora o Doutor Pavlov no lugar da campainha O reflexo inato do censor é cortar, circunstância que serve para manter o País livre da subversão da opinião pública. Mas o censor neófito nunca cortou nomes russos, não os distingue. Então, o Doutor Pavlov vai murmurando ao ouvido do censor nomes russos e dá-lhe um biscoito de cada vez que ele reage com o lápis azul.

Ao fim de algum tempo, o reflexo fica aprendido. De cada vez que o censor ler um nome russo, ou vagamente parecido com isso, logo o corta com raiva e abundante salivação, mesmo sem o presentinho do biscoito.


© PEDRO FOYOS

   Nota: o lápis azul inserido nesta crónica é um "exemplar real" recolhido nos Serviços de Censura
   e encontra-se no Museu Nacional de Imprensa a cuja direção se agradece a cedência da imagem.






Como dar mais vida ao "dinheiro vivo"
e dele tirar proveito quando morrer de vez

ESCRITO NA OCASIÃO EM QUE SE ANUNCIAVA PARA BREVE O JULGAMENTO DO PROCESSO CONHECIDO COMO "CASO DA MALA", ENVOLVENDO UM DEPUTADO QUE ALEGADAMENTE RECEBERA DE CONSTRUTORES CIVIS UMA MALA COM VULTOSA SOMA DE "DINHEIRO VIVO". PELO MESMO TEMPO OCORRIAM AS FALÊNCIAS DE DOIS BANCOS E PROSSEGUIA A CHAMADA OPERAÇÃO "FACE OCULTA", COM UM VICE-PRESIDENTE DE OUTRO BANCO CONSTITUÍDO ARGUIDO POR ALEGADO RECEBIMENTO DE "DINHEIRO VIVO" DAS MÃOS DE UM EMPRESÁRIO DA INDÚSTRIA SUCATEIRA.


Um conselho de sociólogos da Universidade de Berkeley, nos EUA, perscrutou os comportamentos humanos durante a próxima década e concluiu que nos países mais avançados irão ocorrer alterações de práticas seculares, por vezes milenares como é o caso da utilização do chamado dinheiro vivo. A médio prazo, segundo os doutos prescientes, extinguir-se-ão vocábulos como "porta-moedas" e "carteira", substituídos por um anel que nas pequenas despesas quotidianas fará as vezes do corrente cartão eletrónico. Ou seja, depois de bebermos um cafezinho ao balcão teremos apenas de aproximar o nosso anel do "leitor ótico" que o funcionário do estabelecimento nos apresentará.

Preparemo-nos pois para a extinção da "bagalhoça", do "carcanhol", do "pilim" – alguns dos mil e um termos que entre nós designam o dinheiro sólido, palpável. O óbito do dinheiro vivo conheceria a certificação irrevogável pelos meados da próxima década. Restam, portanto, poucos anos. Num momento em que ninguém sabe ao certo para que lado vai cair o mundo, conforta a infalibilidade deste género de profecias.

Mas um pormenor escapou aos sábios de Berkeley. Ei-lo: um país europeu, extremo na geografia e nos costumes, não irá aceitar a morte do dinheiro vivo. Nem pensar. Porque existe nesse país uma parcela populacional, tradicionalmente inquantificável mas de certeza poderosa, tão afeiçoada ao dinheiro vivo que amiúde os noticiários abrem com referências a malas cheias do dito. Vivíssimo.

Ainda ontem a população desse país acordou com a notícia de uma transação operada por meio de um saco presumivelmente recheado de dinheiro vivo. Saco de papel, importa realçar. O acontecimento é banal, porém este Leal Conselheiro aplaude a mãos cheias a preferência por sacos de papel em alternativa aos de plástico, vulgo de supermercado. Quem de hábito recorre a este Receituário Doméstico para obter conselhos sobre questões da vida prática já conhecerá a resposta – espontânea, categórica –, a qual vai, como não podia deixar de ser, no sentido de se realizarem as transações de dinheiro vivo sempre em sacos de papel ou em malas desprovidas de componentes metálicos, imputrescíveis. Aqui se advogam, desde o primeiro dia, os comportamentos cívicos inspirados numa verdadeira e sã consciência ecológica.

Por outro lado, suprema ironia, anuncia-se a morte do dinheiro vivo quando nesse país ele está mais vivo que nunca, embora os clientes de certos bancos, como o BPP e o BPN, bradem que está mais morto que vivo.

Muito-muito se fala ao telefone sobre estes assuntos. E à noite, no conchego de milhões de lares, os habitantes ligam os televisores para escutar uma seleção criteriosa e curiosa das conversas telefónicas. Conversas de teor deseducativo, quantas vezes escandaloso. Por exemplo, na mais empolgante das "escutas” é bem audível a frase:

«V.Exa. não levará a mal que lhe deixe aqui este envelope, creia que é tão-só uma forma muito sincera de lhe manifestar a minha grande admiração.»

Reprovável. Inadmissível, realmente. Envelope é um galicismo que deverá evitar-se em absoluto. A palavra correta será sobrescrito. Ou sobrescritozinho em vez do inapropriado envelopezinho.

No país em apreço, o dinheiro vivo constitui um legado civilizacional das belas-artes negocistas, expressão que alguns maledicentes substituem por manigâncias. Tornou-se o parceiro estratégico dos que labutam esforçadamente para vencer na vida, não olhando a meios, porque quem se fica pelos meios não chega à mama.

Urge portanto desenvolver ações tendentes à sobrevivência do dinheiro vivo. Essencial será dificultar e desmotivar quanto possível o uso do chamado dinheiro eletrónico, essa invenção demoníaca, sobretudo em Portugal, país da União Europeia com mais caixas automáticos per capita (temos 1360 caixas Multibanco por milhão de habitantes). Espanta-se este Leal Conselheiro que, passados anos, continue encalhada a diretiva 2007/64 permitindo aos comerciantes passarem a cobrar uma taxa aos consumidores pelas compras feitas com cartão de débito ou de crédito. Frustrou-se há dias uma iniciativa no sentido de aplicar essa taxa que estimularia uma parte da população a abastecer-se de dinheiro vivo, diretamente nos bancos, em quantidade suficiente para as despesas de todo um mês. A classe da esforçada gente que labuta para vencer na vida (na base do dinheiro vivo) sonha com o dia em que as lojas e os supermercados se povoem de clientes com saquitéis de moedas dependurados à cintura, como na antiga Fenícia.

Esta e outras ações de revitalização do dinheiro vivo tornariam obsoleta a Divisão de Investigação de Crimes Económicos da Polícia Judiciária, cujo pessoal poderia ser transferido para o magnífico Museu e Arquivos Históricos da instituição, ali a dois passos de Loures, que bem necessitado anda de reforços humanos.     

Todavia, não iludamos o óbvio. Um dia, os labutadores do dinheiro vivo terão mesmo de ir ao velório do seu querido parceiro estratégico. Os sábios de Berkeley gritarão vitória. E, ante o dinheiro morto, com as amoráveis notas europeias condenadas a lembranças suspirosas, que acontecerá no tal país?

Quem irá sobreviver?

Os leitores habituados a recorrer a este Leal Conselheiro dos Cidadãos Baralhados sabem que nele se valorizam os princípios da isenção, do pluralismo e se repudiam as divisões classistas. Não deverão por isso considerar-se excluídos de bom aconselhamento os ratões da alta finança. Como é regra desde o princípio do mundo, tudo tem o seu reverso. O azar de uns é a sorte de outros (azar dos azarentos: são quase sempre os mesmos). Ora, essa esperta gente da banca ignora, mas ficará a saber a partir deste momento, que poderá encarar como uma excelente oportunidade de negócio a morte do dinheiro vivo. Assim, prescrevemos, para começar, a instalação, em áreas contíguas aos seus bancos, de cemitérios de dinheiro morto.

Depois informar-se-á por carta em sobrescrito (evitar o vocábulo envelope) tarjado a negro:

Prezado Cliente,
A Administração deste Banco cumpre o doloroso dever de informar que morreu o dinheiro que V.Exa. havia confiado a esta instituição. Condoídos e reconhecendo a eterna saudade que o defunto deixa a V.Exa., permitimo-nos sugerir a opção pelos nossos serviços lutuosos, de acordo com o preçário em anexo (valores com IVA incluído). Chamamos a atenção para a atual oferta promocional, possibilitando-lhe, com encargos surpreendentemente baixos, inscrever o seu nome na pedra tumular.


© PEDRO FOYOS





Como respondeu este Leal Conselheiro
aos conselhos de Marcus Tullius "Grão-de-Bico"

marcus


Estimado Marcus

Procurarei transmitir a quem de direito os teus sábios e tão oportunos conselhos.

Ousarei, no entanto, pôr em dúvida que os mesmos sejam acolhidos com a presteza devida, ou sem qualquer presteza, posto que os destinatários nem sequer te conhecem. Porventura um ou outro terá sabido – tão-só, lamento dizê-lo – que, corridos dois milénios, os guias turísticos continuam a homenagear-te ao se nomearem cicerones, por inspiração do paródico e humílimo cognome que adotaste, Cícero, palavra que vertida do Latim significa o desprezível "Grão-de-Bico" (escrevo-o com maiúsculas, naturalmente, por razão de deferência). Alegra-te: pelo menos nisso chegou até nós a fama que granjeaste junto dos visitantes da tua amada Roma ao narrares, com inigualável vigor e sapiência, a história da Cidade de que eras o excelso senador, o Pater Patriae. E sem rebuço derivavas para o assunto político invocando nessas ocasiões os teus mestres gregos, em especial o dileto Aristóteles: «O Estado, conforme às leis da Natureza, deve compor-se de elementos que se aproximem o mais possível da igualdade», sendo que, realçavas, «o nivelamento das riquezas é o único meio de prevenir as discórdias.»

Releio os teus conselhos sobre o Orçamento Nacional, as Finanças Públicas, a tragédia de a Nação poder ir à falência, e é como se te ouvisse de viva voz. Registam os pergaminhos que ninguém te suplantou na eloquência oratória. Até os imperadores, diz-se, transigiam a essa voz, ou seja, à razão convertida em lei por obra dessa voz. Constrange-me que essa mesma voz permaneça perdida e esquecida no senado republicano de Roma. Ah, Marcus! Pudesses tu vencer a distância de milénios e ser ouvido hoje pelos regentes da governança e demais régulos malcheirosos das altas esferas da desvergonha que, não discrepando da tua época, têm igual dificuldade em acertar seus passos com as regras de boa conduta!

Perdoa-me os carpidos, emérito "Grão-de-Bico", mas crê: isto está um bico-de-obra. E... bico calado. Ou quase. Mas alegra-te, uma vez mais, porque te darei enfim a feliz notícia de se encontrar por aqui em desuso o hábito de cortar a cabeça aos insurrectos de intelecto dito malsão, como te fizeram.

Um pequeno progresso, convenhamos.

Quanto ao mais, queridíssimo "Grão-de-Bico", dir-te-ei de coração apertado que neste novo mundo tão globalizado e complexo e digital e diferente, tudo continua igual.

Apresento-te os meus respeitos e solidariamente me subscrevo, 
Leal Conselheiro em exercício no ano 2011 d.C.

(Em tempo, caro Marcus: o "C" na data significa Cristo. Não chegaste a conhecê-lo, nasceu 57 anos depois da tua morte. O fim da sua existência não foi menos desditoso que o teu, mas essa seria uma outra conversa).


© PEDRO FOYOS





Como desvendar o mundo complexo
das experiências científicas


OS "POSTULADOS" PARÓDICOS QUE SE LERÃO A SEGUIR RESULTAM DA ENRIQUECEDORA VIVÊNCIA QUE ESTE LEAL CONSELHEIRO MANTÉM COM OS "CIENTISTAS DE OFICINA " A QUEM DEVE TANTO DE CONHECIMENTO E DE DESCOBERTA NO DOMÍNIO QUASE SEMPRE BEM-HUMORADO DA INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA. AO CONTRÁRIO DOS CLÉRIGOS, NENHUM CIENTISTA NOS DIRÁ:
«... COM ISSO NÃO SE BRINCA!...»


• A experiência científica não suporta que a desnudem sem longos preliminares e tentativas azaradas. Mas é vulnerável à persistência massacrante. Um dia, no limiar da desistência iminente do investigador, a Dona Experiência acabará por interpelar cumplicemente o cão do Doutor Pavlov:

– Vá lá!, põe-me essas glândulas a salivar, de contrário nunca mais saímos disto!

• Para que uma experiência científica seja «bem-sucedida» é necessário que o resultado configure em absoluto o contrário do esperado e que, no final, os investigadores ponderem: «Experimentemos agora fazer ao contrário».

• Da atividade científica resultam invariavelmente benefícios e malefícios. Estes, os malefícios, após aturadas pesquisas poderão converter-se em benefícios. Estes, os benefícios, em consequência de uma intensiva utilização pela sociedade humana poderão converter-se em malefícios. Estes, os malefícios, após aturadas pesquisas poderão converter-se em benefícios. Estes, os benefícios, em consequência...

• A Ciência, ao contrário do que parece, não é uma varinha mágica. Mas inventou uma que, ligada à eletricidade, consegue remexer líquidos e transformar sólidos em papas. Sem eletricidade não existiria a varinha mágica. Os líquidos teriam de ser remexidos pelo braço humano – que, esse, sim, é mágico: move-se sem ser preciso ligá-lo à eletricidade. Mas é verdade que, se ligarmos o braço diretamente a uma tomada elétrica, funciona mais vigorosamente. Isso já nada tem que ver com magia. É Ciência.

• Quando se proporcionar, o leitor experimente cortar ao meio um coração humano. Observe a sua secção dividida em quatro partes, com dois aurículos e dois ventrículos, tal e qual o interior de um tomate. Tal e qual. Poderá inverter as fases da experiência, cortando ao meio um tomate. Vai dar ao mesmo mas não é tão emocionante.

• O investigador está felicíssimo com o excelente resultado da experiência científica. Um resultado inesperado que gerará não só surpresa mas também controvérsia, talvez incredulidade e as habituais resistências. Mas, firmemente convencido da arrojada tese que pretende revelar na conferência, enfrentará os colegas com a força das certezas inabaláveis. As suas primeiras palavras serão:

– Admitamos, como mera hipótese, que...

• Ante o número imenso de artifícios e desnaturadas contradições da Natureza, o que parece lógico afirmar de ciência certa é que a Natureza é uma ciência naturalmente incerta.


© PEDRO FOYOS


separador

Como entender a Bíblia
sem tropeçar em José Saramago

(ESCRITO EM TEMPO DE ENORME CONTROVÉRSIA GERADA PELO LIVRO CAIM, DE JOSÉ SARAMAGO)


Citação:«Saramago é um malandreco
e sabe que está a provocar a Igreja»
Padre Carreira das Neves, teólogo


Com o povoléu frenético a remexer a panela saramaguiana pareceria suspeito que este Leal Conselheiro, um malandreco cadastrado em todos os credos, não metesse a colherzinha laico disfuncional na caldeirada. Surpreende a descoberta de tamanha quantidade de teólogos vindos à luz do dia por obra e graça de um malandreco reincidente, mas nobelizado, portanto não um malandreco qualquer.

As linhas de força do debate definem-se em duas expressões inusuais em debates: «literalismo» e «simbolismo». Muita gente não saberia, no entanto agora já sabe que uma letra, uma palavra, uma frase, uma história, podendo ser apreendida como literal não passa de uma espécie de máscara que esconde, ou modifica, um significado. E vice-versa. É um jogo sistemático em suporte literário. Nenhuma novidade, acontece desde o tempo dos sumérios, há cinco mil anos, quando atribuíam aos próprios deuses os mais tenebrosos atos praticados pelos humanos, havendo porém o cuidado de esses deuses menores serem punidos por um deus maior. A mensagem era clara: «Vede que nem um deus é isento do mal, mas, ai dele!, será castigado pelo que fez.» Os castigos não eram menos horríveis. As coisas complicam-se um pouco quando temos em cena um único deus (ou Deus, para não infringir a convenção). No quadro monoteísta de vazio supra hierárquico, de ausência de uma divindade superior, ocorre a alguns o expediente do "simbolismo", algo de inexcedível ambiguidade e abrangência. Uma má solução, no humilde parecer deste Leal Conselheiro. O argumento do mau uso do texto literal é de uma puerilidade que, bem creio, nem persuadirá os próprios exegetas bíblicos. Neste ponto, o malandreco do Saramago marca um pontinho.

Do muito que se tem dito e escrito nos últimos dias, a análise mais desassombrada, inteligente, será a do padre Anselmo Borges, também professor de Filosofia. Começa por reconhecer, sem rebuço, que há na Bíblia «violência, crueldade, imoralidade, tirania, arbitrariedade...» para mais adiante advertir: «... a Bíblia não é um ditado divino.»

Muito simples. Mas parece ter escapado aos mil e um preopinantes do "caso Saramago". Não foi Deus quem escreveu a Bíblia ou ditou o respetivo conteúdo. A Bíblia foi escrita por homens. Não um, ou dois, ou dez, talvez centenas de homens, num vagaroso labor literário que – é importante lembrar, porque não tem sido referido – demorou mais de mil anos.

Abandone-se assim o estéril argumento do "simbolismo" e assuma-se a Bíblia como uma magistral criação literária, coletiva, escrita e re-escrita, configurada e tematizada por homens de carne e osso. Homens tão imaginativos (porventura mais, muito mais) quanto José Saramago ou Stephen King, o mestre do terror, que, de certeza, não desdenharia assinar aquela apavorante história do Job, tema que este Leal Conselheiro, sob entidade urbana, glosa em capítulo extenso de livro recente, num registo entre o paródico e o muito sério (ou seja, malandreco).

Repita-se o substantivo: "homens". Pronunciemo-lo com orgulho redundantemente humano. Este Leal Conselheiro sentir-se-ia honrado podendo estender-lhes a mão num cumprimento afetuoso e de admiração. À sua maneira, todos eles foram uns grandessíssimos malandrecos. Ficcionaram com talento o crime de Caim e apostaríamos singelo contra dobrado em como Deus é alheio por completo ao episódio. Que vá em paz.

Apertar a mão aos redatores da Bíblia seria em absoluto diferente de apertar a mão a Deus. Acontecendo tal encontro ver-nos-íamos forçados a repetir as palavras que o filósofo Bertrand Russell (outro lúcido malandreco) confidenciou levar preparadas para um face a face:

«Meu Deus, por que te apresentaste ao Mundo com tão insuficientes provas de existência?»

Russell morreu em 1970. Não sabemos se a pergunta terá sido feita e, na afirmativa, qual foi a resposta.

Teremos de aguardar.
Na realidade, já aguardávamos muito antes de a Bíblia existir.


© PEDRO FOYOS



Como virar do avesso a História do Cristianismo
e de caminho reabilitar Judas (se Deus quiser)


Citação:«Nos últimos dias do mundo
os homens serão traidores»
Apóstolo Paulo


Encorajado pelo bom acolhimento dispensado à minha "tese" sobre o "caso Saramago", ouso saltar do Antigo Testamento para o Novo. O primeiro está pejado de traições. São às dezenas. O segundo tem como traidor primordial um homem cujo nome se engendrou em substantivo maldito: Judas. Lembro-me de ver, na minha infância, um boneco (o "estafermo") que moldava o traidor e era queimado nas fogueiras do Sábado de Aleluia.

Recupero o tema com o presságio do reincidente ao tomar consciência de que lhe estará cada vez mais longínqua a possibilidade de ganhar um lugar no céu.

Seja o que Deus quiser.

Deixemos, então, o traidor Caim em seu eterno desassossego e chamemos à crónica esse "estafermo" que desgraçou o seu Mestre e se desgraçou a ele próprio pela reles "contrapartida em numerário" (como se dirá vinte séculos depois) de trinta moedas.

Indispensável que nos concentremos na Grande História. Comecemos por um facto incontroverso: a emergência do Cristianismo decorre essencialmente da existência de quatro figuras:

a) Jesus Cristo, naturalmente.

b) Judas Iscariotes, apóstolo instável.

c) Poncio Pilatos, procurador romano na Judeia, ainda mais instável.

d) S. Paulo, apóstolo e mártir, pregador eloquente, profundo psicólogo, fundou as primeiras igrejas e implantou a fé cristã nos centros populosos da bacia do Mediterrâneo, do Oriente à Península Hispânica.

Historicamente, S. Paulo não existiria se Pilatos tivesse renunciado à superstição de lavar as mãos diante do povo, julgando desse modo purificar-se da decisão de entregar Cristo aos seus inimigos, para que o crucificassem.

Também Pilatos não existiria sem um Judas traidor. Obteria, quando muito, duas linhas nas melhores enciclopédias (quem conhece os nomes dos restantes procuradores que antes e depois de Pilatos administraram a Judeia?).

Judas existe porque traiu e, em resultado da denúncia, Cristo viria a morrer, desfecho que pareceria inevitável. Quando se afirma que "Judas vendeu Cristo por trinta dinheiros", em rigor é dito: "vendeu a vida de Cristo".

O passo seguinte será concluir que uma religião com dois milénios, agregativa de dois mil milhões de seres humanos, se implantou em consequência de um repulsivo ato perpetrado por um vil traidor.

É nesta encruzilhada que nos assaltam os desvairados especialistas da história alternativa consubstanciada no insidioso "e se?..."

Havemos de convir que a história alternativa por eles proposta se reveste de uma lógica desarmante. Ei-la, em síntese: Judas foi um genial estratega que nesta peça desempenhou o hediondo papel de traidor. Ele saberia que a nova religião iria impor-se inexoravelmente com a morte pública de Jesus Cristo, reforçada, porventura, com o suicídio do traidor. Evocam-se as palavras do apóstolo Paulo, no Novo Testamento, ao proclamar um quase desejo de morrer por Cristo (ou pela fé cristã, dado Cristo já não estar vivo) e, na realidade, isso viria a acontecer a este apóstolo em circunstâncias não menos atrozes que a crucificação.

Aceitando-se a tese, persiste a dúvida sobre se Judas teria agido sozinho ou se cumpriria ordens de acordo com um plano prévio, coletivo, secreto.

De qualquer dos modos, afigura-se constatável que sem um "Judas" não se teria estabelecido o Cristianismo. Decerto outra teologia emergiria com idêntico padrão de fé, satisfazendo a necessidade do espírito humano em reconhecer a sua dependência em relação a um ente supremo, transcendente, sobrenatural. Seria também uma religião de salvação, com igual importância e difusão universal, mas, obviamente, teria outro nome – o nome do novo hipotético "Enviado".

Agora que a vizinhança do Inverno sopra os primeiros frios e o "caso Saramago" engelha a olhos vistos, temos aqui um promissor húmus para nova e encalorada Cruzada.

Contra ou a favor de Judas, será o que Deus quiser.


© PEDRO FOYOS





DA SÉRIE
"CÓDIGO DE CONDUTA DO PERFEITO ELEITOR"


Como animar o ambiente soturno
de uma assembleia de voto


Nada mais tristonho que o local onde funciona uma assembleia de voto. As pessoas que integram as mesas permanecem sorumbáticas por largas horas. Os eleitores, esses, entram mudos e saem calados, apenas se lhes vislumbra, esporadicamente, um ténue sorriso de circunstância na ocasião em que se aproximam da mesa para receber ou devolver o boletim de voto.

No entanto, há singelíssimos comportamentos ao alcance de qualquer cidadão que muito poderão contribuir para mudar por completo esse ambiente de pesada circunspeção e fazer da assembleia de voto um local não só animado mas também, se possível, alvoroçado. Ou mesmo frenético.

Eis algumas sugestões: 


• Apresente-se como inspetor da ASAE e informe o presidente da mesa de que terá de multá-lo por inexistência do Livro de Reclamações. Cite o novo decreto 1x2 barra 09. Em menos de cinco segundos a discussão contestatária alastrará às restantes mesas. Atingido o grau máximo da vozearia, retire-se com discrição.

• Se notar (ou mesmo não notando) alguma situação que lhe pareça irregular, comunique ao presidente da mesa que pretende reclamar junto do provedor dos eleitores. Reforce com o dito decretozinho, segundo o qual é obrigatória a presença de um provedor dos eleitores em todas as assembleias de voto. Deverá repetir-se o quadro de alvoroço descrito atrás.

• Saindo da cabina, recuse-se a entregar o boletim de voto, alegando que pretende guardá-lo como prova, junto dos amigos, de que votou em branco. Exija a devolução do BI e do cartão de eleitor. O presidente argumentará que só depois de o voto entrar na urna irá restituir-lhe os documentos. Negoceie. Proponha, por exemplo, introduzir um simples papel em branco, «pois irá dar ao mesmo». A discussão atrairá a atenção de todos os presentes e criar-se-á um ótimo momento de animação.

• Num ponto central da assembleia de voto eleve a voz de maneira a ser bem ouvido por todos. Informe:

 «Aqui estou, minha gente! Nada me impediria de cumprir o meu dever cívico, apesar de me encontrar infetado com o vírus H1N1!».

Afaste-se o suficiente para não atrapalhar a fuga espavorida do pessoal. Infiltre-se na última leva de fugitivos, dissimulado sob uns óculos pesados e uma bigodeira postiça.

© PEDRO FOYOS



Como deverá proceder
quem vai votar pela primeira vez


Concentremo-nos na significativa parcela populacional que votará pela primeira vez. Uma "primeira vez" representa sempre um degrau que se vence na vida. O primeiro voto introduzido na urna política é um degrau de excelência. Sendo o leitor um dos novos eleitores (e também, desejavelmente, votantes) siga o código de conduta e boas práticas que relembramos neste espaço de Serviço Público.

• Vote apenas nos locais autorizados.

• Use calçado e roupa minimamente adequados à responsabilidade de quem vai decidir sobre o destino do País.

• Na assembleia de voto, evite fazer barulho e tomar atitudes que perturbem a paz local (nas futuras eleições, todavia, já poderá cumprir gradualmente os procedimentos de animação aqui enunciados na primeira parte desta série).

• É compreensível a emoção de quem participa pela primeira vez num ato eleitoral. Mas o eleitor neófito deverá inibir-se em absoluto de dar vivas ao partido em que votou ou vai votar. Quando muito, se de todo em todo quiser exteriorizar a sua alegria, poderá soltar um vibrante "viva a Liberdade!". Ou: «viva Portugal!», não devendo associar ao brado qualquer formulação gestual identificativa de uma fação ideológica. Os presentes, passado o embate inicial de perplexidade, tenderão a reagir com indulgência, compreensão, podendo acontecer que alguns, correspondendo patrioticamente à jovial manifestação, lhe dirijam olhares e sorrisos solidários.

• Não fale com estranhos. Desvie-se de tentativas de contacto por parte de desconhecidos. Muitos são os caçadores furtivos que enxameiam as assembleias de voto. A caça ao voto está rigorosamente proibida no dia das eleições mas sempre aparecem prevaricadores que tentam a todo o custo caçar os votos dos neófitos. O caçador protótipo passeia-se pelo local da assembleia, de mãos nos bolsos, parecendo absorto, mas vai deitando um olho lúbrico aos mais jovens. A abordagem faz-se de hábito por meio de um parlapié do género: «Então, vamos lá pôr o nosso votezinho, não é verdade?»

• Ocorrem por vezes situações de maior atrevimento, quando o caçador não se limita à persuasão e propõe despudoradamente a compra do seu voto. Não tome nenhuma decisão sem primeiro conhecer o que pensam os estudiosos e peritos sobre tão controversa matéria. Tema não só controverso mas também melindroso, pelo que se justifica uma análise em separado.

© PEDRO FOYOS


Como atuar perante propostas
de compra & venda de votos

(TEXTO PUBLICADO ORIGINALMENTE NO DIA EM QUE ÓRGÃOS DA COMUNICAÇÃO SOCIAL DIFUNDIRAM O CASO DE COMPRA DE VOTOS POR UM PROEMINENTE MEMBRO DE UM PARTIDO POLÍTICO, À RAZÃO DE 30 EUROS POR VOTO)


Neste espaço de Serviço Público, onde pretendemos abordar algumas das questões candentes relacionadas com os atos eleitorais (por mais melindrosas que sejam as matérias), analisaremos hoje o magno tema da compra venda de votos. Um tema que saiu do seu recato e se mostra agora à luz incómoda de uma campanha eleitoral, quando as mentes estão sobremaneira vulneráveis aos ataques maledicentes da comunicação social em geral e de alguma em particular. Ponhamos de parte, por um instante, as costumadas suscetibilidades e esquadrinhemos com o pluralismo e independência que são timbre deste Leal Conselheiro a momentosa contenda à volta da compra & venda de votos.

• Os especialistas em politologia eleitoral dividem-se. A compra & venda de votos será crime? Incontestável que, num plano ético, não se afigura defensável tal prática. Há, porém, quem observe que o voto é secreto e em consequência nada impede que o eleitor vote de acordo com a sua vontade e consciência, frustrando desse modo, eventualmente, o desígnio da entidade pagadora. Aproveitar-se-á o votante, tão-só, do ensejo de meter ao bolso uma quantia que lhe dará jeito. Na condição de sujeito passivo e recetivo não incorre o votante em qualquer tipo de crime. Na realidade, ele não poderá ser responsabilizado por negócios de terceiros que investem por sua exclusiva conta e risco. Um risco, note-se, elevado, porquanto o êxito do negócio é extremamente falível. Mas negociar também não é crime, desde que se cumpram, claro, as normas fiscais adiante enunciadas.

• Da tese expendida extrai-se a óbvia conclusão de que o sujeito ativo (o pagante) se limita a exercer livremente o seu negócio, num ramo, é certo, ainda em fase de desenvolvimento e comportando uma inusual falibilidade, contudo essas opções e circunstancialismos respeitam unicamente ao próprio. Muitos grandes empresários, audaciosos e expeditos, começaram por gerir baiucas de ramo à porta.

• Um parêntesis para assinalar o conhecido ponto de acordo entre os autores versados no tema: a compra & venda deverá confinar-se a um voto por votante, em moderada escala, de contrário a prática roçará o domínio da outrora denominada "chapelada", popular manobra dos idos tempos da Legião Portuguesa. O almirante Henrique Tenreiro (que, sabe-se agora, era quem planeava e dinamizava tais "chapeladas") nunca necessitou de comprar um único voto. Hoje, passadas décadas, um voto pode custar trinta euros. Reconheçamos: é um progresso.

• O eleitor que se envolva numa situação de venda do seu voto não deverá, no entanto, eximir-se das inerentes obrigações fiscais. Toda a receita financeira implica a respetiva quitação formal, consignada, no caso vertente, como rendimento por serviços prestados. Assim, para evitar futuros problemas com o Fisco, o eleitor agirá indispensavelmente de acordo com a lei, fazendo quitação do valor recebido, em termos claros: «Venda firme de 1 Voto ao Partido... (mencionar o nome) pela quantia de... (mencionar o montante, acrescendo o IVA à taxa legal aplicável).

• Importante advertência, a propósito do IVA. Os intervenientes na operação de compra & venda de um voto consideram muitas vezes que, por se tratar de um ato isolado, está isento de imposto. Errado. Esse desconhecimento poderá trazer-lhes arreliantes consequências. Evidente que a compra & venda de votos se exclui das operações elencadas no artigo 9º do Código do IVA.

• Esclareça-se igualmente que o imposto não pode ser objeto de dedução na medida em que o exercício de tal direito requer a observância dos condicionalismos previstos nos art.ºs 19º e seguintes do Código do IVA, o que, já se deixa ver, nem de perto nem de longe acontece. O desconhecimento da lei não aproveita a ninguém, pelo que os infratores serão severamente punidos.

© PEDRO FOYOS


Como fazer do "dia de reflexão "
um dia repleto de inflexões

(ENCERRANDO A SÉRIE "CÓDIGO DE CONDUTA DO PERFEITO ELEITOR”, ESTE LEAL CONSELHEIRO ASSUME A PRIMEIRA PESSOA PARA RELATAR A HISTÓRIA DE UM INSÓLITO EQUÍVOCO QUE MUITO ALTEROU O SEU "DIA DE REFLEXÃO")


Estava a correr-me bem o "dia de reflexão" na véspera das Legislativas, quando...

Antes disso: eu tomara já os devidos cuidados prescritos pelo Código de Conduta do Perfeito Eleitor no que respeita ao "dia de reflexão". Assim, logo ao bater da meia-noite desembaracei-me dos jornais ensopados em sondagens, previsões, presunções, embirrações, crispações, conspirações, suspeições – essa guerra civil de palavras e números disparados à queima-roupa que justificariam quinze dias de reflexão em vez de apenas um. Inibi-me também de aceder à internet porque, é sabido, nesse período corre-se o risco de ficar com o computador chamuscado por força das labaredas que a todo o instante irrompem de sites e blogues.

Dizia, portanto, que estava a correr-me bem o "dia de reflexão", quando...

Antes disso: organizara o dia por forma a permanecer em casa porque, bem adverte o Código de Conduta, não há reflexão que sobreviva ao circo dos cartazes partidários, com aqueles rostos colossais a travarem-nos o passo, a vararem-nos o espírito com esgares de presciência divina, determinados, preocupados, umas vezes paternalmente risonhos, outras maternalmente ensimesmados. Depois parecem enraizar, são reclamos de boa cepa, perdurando e estiolando ao sol e à chuva largo tempo após o ato eleitoral. Assim, todos os dias, ao sair de casa, deparo-me com um aviso pateticamente irremovível: «Chegou a hora da verdade!». Em coerência e honestidade, os autores deveriam, logo no dia seguinte, aditar à frase algo do género: «Era para ter chegado, mas nem chegou a embarcar por causa da greve dos pilotos da TAP.»

Retomando o fio: ficando em casa, sugere o Código de Conduta que um bom livro ajudará a decidir o voto. Optei por O Ceptro de Ottokar, de Hergé. Refastelado, dei conta de que o televisor estava ligado, a médio som, sintonizado na SIC. Apontei o comando para cortar o pio ao repórter que entrevistava um rapagão de cabelo farto, fronha reguila... E foi quando...

Foi quando, no preciso momento em que ia premir o botão, oiço estas palavras assombrosas:

– Contamos, seguramente, com um milhão de votos. Até mais.

Quem manifestava tal inabalável certeza em pleno "dia de reflexão" era o rapagão, figura conhecida, apercebi-me de imediato: o Zé Pedro, dos Xutos & Pontapés que atuariam nessa noite no Estádio do Restelo em megaconcerto celebrativo dos trinta anos de carreira.

Um milhão de votos! Obviamente que naquela ocasião não eram ainda conhecidos os resultados eleitorais, mas existia a quase certeza de nenhum partido alcançar a maioria absoluta. Foi-me irresistível meditar sobre a potencialidade daquele milhão de votos numa perspetiva de coligação com vista à maioria absoluta. A hipótese de o Partido Socialista se coligar com os Xutos & Pontapés tropeçava numa pequena contrariedade... lembram-se?... sim, aquela canção do "Sr. Engenheiro"... Nada de irremediável. O Zé Pedro, além de comendador e reguila é amigo de José Sócrates e até li no Expressoque o mediático rocker lhe telefonou para salvaguardar a inocência da banda: a letra da canção, eu seja ceguinho, afiançou, não visava qualquer objetivo de intervenção política. Sócrates terá respondido: «Pois. Mas, pelo sim pelo não, vocês vão ficar sob vigilância». Por essa razão pareceram fundamentadas, na noite do espetáculo no Restelo, as suspeitas sobre um centro médico ali montado com dez equipas móveis e cinco ambulâncias munidas de inusuais e altíssimas antenas. Que serviam, foi dito, para comunicar com os hospitais em caso de emergência. Pois. Um sobrinho adolescente, fã dos Xutos, esclareceu-me: a banda tem vindo a transmitir, de uma forma mais ou menos criptográfica, a asfixiante realidade. Repare-se neste trecho de uma das canções:

«Uma rede imensa / Supervigilância / Omnipresente…»

Depois, um certo Big Brother previne:

«Sei onde tu estás! Sei onde tu estás!»
(…) «O que tu fazes / o que pensarás…»

Elucidativo. Isto é de causar um arrepio na espinha, como se diz nos romances.

Embalado no melhor propósito da governabilidade do País e do regular funcionamento das instituições democráticas, considerei também promissora uma coligação Xutos-PSD (ou, preferindo-se, PSD-Pontapés). Independentemente dos partidos, aplaudiria a indigitação do Zé Pedro para ministro da Ciência Oculta (outrora designada por Cultura). Não duvido de que daria à pasta uma desejável visibilidade.

Continuei a saborear cenários políticos ainda mais sofisticados. A um nível de comunicações presidenciais, por exemplo, Kalú, o baterista, daria um assessor de elite para pontuar os alucinantes sobressaltos de alma de Cavaco Silva. Oportuna seria, no final das comunicações, a participação de Tim, cantarolando o histórico tema "Conta-me Histórias".

Regressei à terra a tempo de ouvir o final da entrevista. Só então me dei conta do equívoco.

Não se tratava de um milhão de votos.  

O Zé Pedro referia-se a vóltios. Um milhão de vóltios para iluminar a grande noite musical no Restelo.

Que pena! Agora que eu começava a ver o País encaminhado...

© PEDRO FOYOS





Como estar de bem
com Gregos,Troianos e quem mais vier

capitao


Num quadro fantasioso, todavia plausível, admito que no final da 61ª Conferência Anual da Comissão Baleeira Internacional, realizada no Funchal, alguém tenha soprado ao ouvido do ministro do Ambiente, Nunes Correia, uma advertência:
– O capitão Paul Watson está de olho no senhor.

Lembremos, antes de mais, quem é o capitão Paul Watson. A Time Magazine nomeou-o "Herói Ambiental de Século XX". Integra um grupo restrito de dez figuras mundiais representativas dos direitos dos animais. Foi cofundador do Greenpeace e lidera a Sea Shepherd Conservation Society, que fundou na década de 70 e constitui a mais combativa (e controversa) organização que se opõe às barbáries da indústria baleeira. Nessa qualidade compareceu na reunião da Madeira. Mas: logo que desembarcou no aeroporto foi preso. O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras possuía um mandado de detenção relativo a «incidentes ocorridos em 1979 na zona do porto de Leixões.» Recordo-me bem do caso: o afundamento do baleeiro Sierra, o primeiro de uma dezena de embarcações afundadas nas últimas três décadas. Os acontecimentos vividos em Leixões nos dias seguintes ao lance radical do capitão Paul Watson constituem uma história fabulosa, muito desconhecida.

Há uma foto histórica de um procedimento (entretanto desativado) ao estilo do pistoleiro que vai traçando na coronha as baixas produzidas. O capitão Watson exibia no exterior de um dos seus navios as bandeiras dos países com baleeiros afundados e respetivos nomes, ou a conhecida bandeira pirata tratando-se de navios não patrocinados por uma pátria específica.

Um jornalista questionou-o sobre a exposição sórdida. Assentiu. Sórdido, sem dúvida. E retirou do bolso um folheto que entregou ao repórter.
– Há algo de ainda mais sórdido – disse Watson. – Talvez tenha interesse em ver.
No folheto editado por esta ONG, que continua atual, descreve-se cruentamente, com reproduções a cores, um dos mais "modernos" processos de matança. A sequência começa com a particularidade de o arpão conter na ponta um explosivo dotado de um dispositivo de retardamento. Acionado por um mecanismo de enorme potência, o arpão perfura meio metro e a explosão ocorre no interior do animal, que, estripado, debatendo-se num mar de sangue, agoniza por uma longa hora.

Tornaram-se lendárias as ações arrojadas de Watson em defesa da vida marinha. Quatro anos antes do afundamento em Portugal do Sierra (cujo comandante se vangloriava de já ter matado 25 mil baleias), o líder da Sea Shepherd e Robert Hunter (principal fundador do Greenpeace) colocaram as vidas em risco ao permanecerem a bordo do insuflável Zodíaco na linha de tiro, entre as baleias e os arpões de um navio russo. Pela mesma época, caçadores de focas tentaram assassiná-lo dependurando-o num guincho do navio e mergulhando-o várias vezes nas águas geladas até perder os movimentos das pernas, depois a consciência. Valeu-lhe um alerta e sequente intervenção de oficiais costeiros que foram encontrá-lo mergulhado em óleo e sangue de baleia.

Os canais televisivos Animal Planet e o Discovery deram ao capitão Paul Watson e à sua organização ativista extraordinária visibilidade por meio da estupenda série Whale Wars (Piratas Ecológicos na versão portuguesa). São sete episódios de uma hora. Uma equipa de repórteres a bordo do principal navio da Sea Shepherd, o Steve Irwin, conduz-nos a alucinantes confrontos no Antártico entre os ecologistas e os caçadores de baleias. «A nossa arma é a Imprensa» – declara o capitão Watson num dos primeiros episódios, quando dois tripulantes, com espantosa agilidade, conseguem escalar um navio japonês e deliberadamente se deixam capturar. Nesse preciso minuto o capitão Watson difunde a uma escala planetária, para as agências dos cinco continentes, a notícia de que uma embarcação da frota baleeira nipónica mantém reféns dois ativistas que pretendiam «tão-só...» entregar em mão, ao comandante, cópia da moratória internacional à caça da baleia, em vigor desde 1986. O episódio converte-se de imediato em assunto de Estado. Abre-se um incidente entre o Japão e a Austrália. A história dos "ecologistas reféns" ateia um fogo vivo e duradouro às primeiras páginas da Imprensa, um milhão de blogues reabre a discussão sobre a dizimação da vida marinha, o tema prossegue dias consecutivos nos noticiários radio televisivos. Entretanto, aparece-nos o rosto sereno do Capitão Watson, explicando (a nós, os espetadores da série...), com palavras, olhares, meios sorrisos de cumplicidade, de argúcia: «Se tivéssemos comunicado que um barco japonês estava a cometer o ato ilegal da matança de baleias, nem uma linha teria sido publicada.»

O principal navio da Sea Shepherd, o imponente Steve Irwin, conta com o apoio de um helicóptero, que desempenha não só a função de localizar os caçadores de baleias mas também, quando as tentativas dissuasoras resultam inoperantes, a de filmar as chacinas e reportar os recontros com ativistas, luta física inclusive. Ressalta o instante dramático em que se veem japoneses a tentar lançar os intrusos à água. Refreiam tal propósito quando se apercebem de que estão a ser filmados. Em todas as situações de luta entre tripulações, também de chacina das baleias, os potentes altifalantes do capitão Watson não cessam de estrondear: «Estão a cometer um crime. Estão a cometer um ato ilegal proibido por lei. Estão a cometer um crime...»

A Sea Shepherd assinala que o combate radical movido desde a fundação desta ONG contra os baleeiros, incluindo o afundamento dos mesmos, não causou até agora uma única vítima humana. Mas, recentemente, o próprio capitão Watson sofreu um ferimento que poderia ter sido mortal.

Curiosa coincidência: no mesmo dia em que se iniciava a transmissão da série Whale Wars estava o capitão Paul Watson detido no aeroporto do Funchal, interrogado pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Horas depois chegou o ministro do Ambiente, Nunes Correia, trazendo na bagagem de mão o seu ancestral e insanável conflito com o ambiente. Foi ele quem, como representante do país anfitrião, abriu a Conferência. Apelou à flexibilidade. Flexibilidade, flexibilidade – pregão tão repisado que a Conferência, cambaleante, não resistiu e terminou antes do previsto. Mas o arpão da suprema flexibilidade zuniu logo na abertura. Encarando com doçura os ínclitos emissários dos países pró-caça à baleia (Japão, Noruega, Rússia e Islândia, somando, em 2008, mais de dois mil daqueles cetáceos trucidados para... "fins científicos", alegam) o ministro Nunes Correia foi dizendo que... bem... Portugal «pode tolerar a retoma da caça costeira em países com tradição baleeira.»
O capitão Watson, enfim libertado e presente na reunião, terá feito um esgar de surpresa e esfregado as mãos, silenciosa mas determinadamente.
Mais ruidosos, no exterior, os apoiantes da Sea Shepherd advertiam: «Tão criminosos são os caçadores como os governos que toleram os crimes.»

Serei fantasioso, já o disse, mas admito que alguém tenha soprado ao ouvido do ministro do Ambiente o risco de um abalroamento:
– O capitão Paul Watson está de olho no senhor.

O certo é que, passados dois dias, tão logo regressou a Lisboa, o ministro instruiu no sentido de fazer chegar à comunicação social a posição do Ministério do Ambiente, defendendo «o reforço das políticas de conservação das baleias, a manutenção da atual moratória e rejeitando que a caça à baleia venha alguma vez a ser retomada em Portugal ou nas suas águas territoriais.»

A tradução para inglês terá entretanto chegado às mãos do capitão Paul Watson.
Sabe-se quanto é difícil arranjar tradutores para japonês e russo. Norueguês e islandês, então...

© PEDRO FOYOS





Como sobreviver a uma greve de fome
e obter o brinquedo desejado

O Presidente Evo Morales, da Bolívia, terminou a greve de fome. Seis dias de jejum, mastigação confinada a folhas de coca que foi mascando regularmente.


Uma única vez na vida fiz greve de fome. Tinha sete anos. Durante um dia e meio renunciei a qualquer alimento. Apenas líquidos, e mesmo assim... Coca, nem falar. Nessa época até a Coca-Cola havia sido proibida por Salazar.
Um dia e meio de abstinência revolucionária. Uma larica contrapoder (a larica desvaneceu-se, mas o ímpeto do "contra" permanece).
Mais: reforcei a greve de fome com uma greve de fala. Não falava. Em situações extremas cedia em escrever num papelinho, atamancando a ortografia porque em tempo de guerra não há lugar para primores literários. Com ostensivo enfado apresentava depois o papelinho e virava as costas. Mantinha-me, no entanto, inabalável na decisão das greves enquanto a minha mãe não me comprasse um determinado brinquedo. Que não deu. Pela hora do almoço do segundo dia considerei que melhor seria dar a vida por algo mais valioso que um simples brinquedo. Oportunidade que até hoje não surgiu, mas não se adivinha o futuro.

Retomando o fio da atualidade. O Presidente Morales findou a greve de fome. Ouvi a notícia pelo autorrádio e abrandei, e sorri, numa cumplicidade de experiências partilhadas. Mais um que desacreditava (como eu desacreditei) da possibilidade de um brinquedo.
Engano.
Morales terminou a greve por ter obtido um brinquedo: a aprovação de uma lei eleitoral que lhe permitirá candidatar-se a um novo mandato de cinco anos.

Há brinquedos e brinquedos. Alguns movem-se a coca.

© PEDRO FOYOS





O PRIMEIRO RECEITUÁRIO DOMÉSTICO    

capitao


A edição do Diário de Notícias de 16 de Maio de 1992 reveste-se de um especial significado para Pedro Foyos: foi nesse dia publicada pela primeira vez uma crónica da sua autoria subordinada à etiqueta "RECEITUÁRIO DOMÉSTICO". Estavam em voga os vampiros, fenómeno que se repetiria a espaços nas duas décadas seguintes (e decerto prosseguirá). O texto foi reescrito em 2009 com um crivo mais alargado à atualidade política dos tempos modernos. Nessa segunda versão encontram-se insinuadas (por ordem de entrada) as figuras de Jaime Gama (presidente da Assembleia da República), Cavaco Silva (presidente da República), Manuela Ferreira Leite (líder do PSD, maior partido da Oposição), José Sócrates (primeiro-ministro), Pedro Santana Lopes (ex-autarca na Figueira da Foz e em Lisboa), Jerónimo de Sousa (secretário-geral do PCP) e outras personagens de segunda linha, como uma mediática deputada do Bloco de Esquerda. É esse texto refundido que se reproduz a seguir, na linha dos "RECEITUÁRIOS" mais recentes selecionados para esta secção.

Como repelir os vampiros
 que estão a enxamear Portugal


1. INTRODUÇÃO

Uma pandemia, como o azar, nunca vem só. Não bastavam a crise e a virulenta Gripe A, cai-nos em cima, agora, uma praga vampírica como não se via desde o século XVIII. Publicaram-se em Portugal, durante o ano que está prestes a terminar [2009], cerca de vinte livros de vampiros. Um profissional do ramo estima em meio milhão o total de exemplares impressos. Espantoso! Para este número muito contribuíram os quatro "best-sellers" de Stephanie Meyer que se mantêm há meses nos top's de vendas. A tetralogia já soma 42 milhões de livros nos cinco continentes. Mais modesta será naturalmente a faturação de uma antologia realizada por nove escritores portugueses, Contos de Vampiros. Outro autor luso, isolado, vai erguendo uma saga subordinada ao título Memórias de um Vampiro. Avassaladora é também a vaga pandémica na televisão: inúmeros canais por cabo têm dedicado atenção exaustiva ao fenómeno. À hora de fecho deste balanço, a situação em Portugal era a seguinte: a RTP1 transmite aos sábados Diários do Vampiro; a TVI prepara Destino Imortal; a SIC anuncia para breve Lua Vermelha. No cinema destacam-se, entre outros, os filmes adaptados da saga de Meyer, o mais recente dos quais, Lua Nova, exibe-se neste momento em 53 salas.
Inevitável, o filão é também explorado em outras áreas de mercado: dos ténis às T-shirts, dos calendários aos porta-chaves. Não faltarão parolos que neste Natal cederão à suprema incongruência de oferecer uma caixa de chocolates, marca "Vampyre", na qual se vê estampado em berrante quadricromia o Conde de Drácula, cuja predileção pelo recheio da embalagem parece improvável.

De lastimar que nesta avalancha vampírica não se vislumbre uma frase, uma só palavra que responda ao essencial: Como deverão proceder os humanos de sangue ainda não corrompido para repelir (se possível, exterminar) os vampiros que estão a contaminar o País?

É nestas conjunturas de emergência que os cidadãos, perante a inação dos setores oficiais, recorrem esperançosamente ao Receituário Doméstico. Em boa hora o farão. Mais uma vez este Serviço Público não se eximirá do dever de bom aconselhamento, mesmo quando as questões, como a vertente, se afiguram irremediáveis.

2. DO CLÁSSICO ALHO ÀS ARMADILHAS

De entre os variadíssimos expedientes praticados desde tempos imemoriais com o fim de repelir os vampiros, o mais eficaz, económico e higiénico continua a ser o alho.

Exato: o alho comum cultivado em toda a parte para condimento culinário. Devem preferir-se os dentes purpurescentes, de quilha verde despontada, pois esses concentram maior quantidade dos inigualáveis compostos sulfurados que os impregnam daquele cheiro ativo tão característico. O alho, sabe-se, é um excelente imunizador contra uma infinidade de maleitas, inclusive as originadas por excessivo tempo de audição dos comentadores políticos e dos próprios agentes políticos. Já no século XVIII, em época de peste, era habitual ver-se o cirurgião trazendo «na boca, entalado, um dente de alho», gesto que por incúria não foi ainda adotado pelos nossos governantes e demais personalidades de topo dos órgãos de soberania (uma exceção que nos é grato realçar: o presidente da Assembleia da República).



                                 Já no século XVIII, como pode ver-se nesta imagem, algumas
                         cabeças de alho eram indispensáveis nos "kit's" anti-vampíricos.


Uma propriedade da planta, menos conhecida, é o sulfureto de alilo, usado na confeção de cataplasmas em estados críticos de oxiuríase. Ora, nenhum vampiro, mesmo os que incarnaram em criaturas humanas, consegue suportar o odor do sulfureto de alilo. Esta vulnerabilidade, comum a todos os quirópteros, é especialmente notória no género vampyrus. A glândula parótida destes mamíferos voadores é bastante serosa e sensível, reagindo de imediato a determinados sulfuretos enérgicos, como é o caso do dito alilo. Observou-se em experiências laboratoriais que o vampiro começa por sentir uma enorme irritação no órgão glandular, seguindo-se forte sensação de náusea idêntica à detetada em telespetadores portugueses depois de assistirem às intervenções do presidente da República. Por fim, o vampiro agita-se, como que enlouquecido, tentando a todo o custo bater em retirada. Um conseguiu-o, certo dia, ocorrendo então o funesto episódio de esse quiróptero ter mordido o pescoço da líder da Oposição, acontecimento mantido desde então em blindado secretismo. Todavia, por mais que a vítima tente, a dissimulação não resulta.

Um processo muito simples de aplicar o alho em redor de uma habitação consiste em introduzi-lo num almofariz e migá-lo com um cavaco bem escanhoado. Depois, espalhe-se a pasta um pouco por todo o lado, estrategicamente na proximidade de portas e janelas. Renove-se o preparado de três em três semanas. Os povos eslavos e balcânicos, com maior singeleza limitam-se a fazer um bom feixe de cabeças rechonchudas que pregam atrás da porta de entrada. Procedimento, aliás, praticado durante muito tempo, também em Lisboa, nos palácios de Belém e de São Bento. Estranhamente, há alguns anos, os novos inquilinos, logo no primeiro dia quebraram a tradição, berrando de longe, apopléticos, que removessem sem demora os molhos de alhos.

As autoridades draculistas historiam um número imenso de tipos de armadilha para vampiros. Trata-se, em geral, de engenhos muito antigos cuja origem se perde na noite dos tempos. Este Receituário Doméstico aconselha, pela simplicidade, uma artimanha tributada a especialistas da Bulgária. Assim:

Arranje-se um pote grande e com boca larga. Por volta da meia-noite, encha-se o recipiente com sangue fresco e coloque-se o mesmo no local suspeito da presença de vampiros. Não tardará o momento em que o primeiro, sedento e guloso, se aproxime e não resista a entrar no frasco. Tão logo isso suceda, tape-se a boca (do pote) e, num movimento lesto, arremesse-se a encomenda para uma fogueira ateada previamente. O autor do Receituário Doméstico testemunhou a eficácia do sistema, com resultados espetaculares, durante uma experiência realizada numa noite de luar, perto da sede da Associação Sindical dos Corruptores Oprimidos (ASCO).

Há quem, na falta de sangue, tenha tentado ludibriar o vampiro, enchendo o pote com sumo de tomate, mas o truque não resulta.

3. O GRANDE EQUÍVOCO DO CRUCIFIXO DE FERRO

Uma prática cujos efeitos são idênticos aos do sulfureto aqui descrito tem por objeto a produção doméstica de hidróxido de ferro – um elemento muito simples mas que nenhum vampiro (seja quiróptero ou incarnado em criatura humana) consegue tolerar. O hidróxido de ferro nada mais é do que a contrariante substância que todos conhecemos pelo nome de ferrugem. Mas, ao contrário do que parece, a criação deliberada de uma boa quantidade de ferrugem não é tarefa fácil, sobretudo devido à extrema morosidade do processo. Contudo, nunca são demasiadas as diligências que se empreendam para repelir os vampiros. Valerá a pena, portanto, o esforço dos passos que enunciamos a seguir.

Representação de um quiróptero da espécie "Vampyrus" no imaginário popular
inglês do século XVIII.

(Coleção Particular do Autor)


Antes do mais, o leitor deverá dirigir-se a uma serralharia e pedir que lhe forneçam uma porção de limalha de ferro, ou seja, o desperdício resultante dos materiais trabalhados no chamado serrote mecânico. Esta limalha está humedecida, em geral, por um produto oleoso (precisamente uma solução antiferrugem), pelo que se torna necessário, ao chegarmos a casa, lavá-la ou queimá-la, por forma a eliminar completamente os resíduos do óleo. Depois, é indispensável acelerar o processo de oxidação. Se nos limitássemos a colocar a limalha ao ar livre, à espera do surgimento da ferrugem, teríamos de esperar meses. Existe um processo bastante expedito para abreviar a operação. Comece-se por misturar a limalha com uma quantidade de terra vegetal (a vulgar turfa que podemos adquirir nos centros de jardinagem). Deposite-se a mistura num vaso de, aproximadamente, dez litros. Certifiquemo-nos de que o recipiente tem os orifícios de escoamento bem abertos no fundo – detalhe importante para o estádio sequente: a rega. Esta deverá fazer-se todos os dias, copiosamente. Ao cabo de poucas semanas é possível desfrutar de uma estupenda dose de ferrugem que arrepiará os dentes do mais pertinaz vampiro. Aumentar o número de vasos e porções de limalha consoante as necessidades.



Em alternativa à limalha da serralharia poderão ser usados pregos comuns, de tamanho superior a oito centímetros. Os pregos constituem um ótimo material para a produção rápida de hidróxido de ferro. Com apenas três vasos e dez quilos de turfa obtém-se um quilo de excelente ferrugem.

Aqui chegados, os leitores argutos já terão captado a génese da intrigante decisão de um presidente da Câmara Municipal de Lisboa ao ordenar, crispado, logo que se estreou no cargo, a substituição do mobiliário metálico existente no seu gabinete, pretextando que o mesmo se encontrava caduco e impróprio do espaço presidencial da mais importante autarquia do País. O que nunca chegou ao conhecimento público é que esses móveis apresentavam sinais inconfundíveis de ferrugem. À época, os especialistas da questão vampírica receberam a notícia com sorrisos de bom entendimento. Sabiam que cena idêntica acontecera anos antes, com a mesma pessoa, então exercendo a presidência da Câmara Municipal da Figueira da Foz, cujo mobiliário metálico se mostrava vulnerável ao ar hipersalino do Atlântico vizinho.

Está banido o costume dos camponeses da Roménia (antiga Transilvânia, terra natal de Drácula) de introduzir a matéria ferruginosa em pequenos sacos de serapilheira que eram colocados nas ombreiras das portas. É certo que podemos proceder com a ferrugem do mesmo modo que descrevemos para o alho, espalhando-a em locais estratégicos como sejam os frequentados pela elite da alta finança (os "gatos gordos" – segundo a amorosa definição de Barack Obama). Modernamente, porém, aconselha-se depositá-la nos vasos com plantas que tenhamos em casa, em varandas ou alpendres. O hidróxido de ferro é completamente inofensivo para as plantas: impede até o aparecimento da clorose e estimula a clorofila. São óbvias as vantagens deste processo. Por um lado arredamos a vampirada e por outro teremos o gosto de contemplar as plantas pujantes e cada vez mais belas.


A rosa "Black Baccara" torna-se uma eficaz flor vampiricida quando
cultivada em turfa vitalizada com hidróxido de ferro


Deixámos para o fim o muito discutido tema do crucifixo de ferro.
Do recurso ao hidróxido deste metal, importante agente vampiricida, derivaram imensos relatos fantasiosos, segundo os quais deverá impelir-se um crucifixo de ferro na direção do vampiro atacante. Ora, esclareça-se em definitivo que tal não passa de uma crença desprovida por completo de fundamento científico. O que na realidade causa aversão ao vampiro é o ferro, idealmente oxidado, nunca a configuração estética do mesmo.

É lamentável que em pleno século XXI, escritores, realizadores cinematográficos e autores de séries televisivas persistam na exploração de tão primitiva crendice. Agiriam decerto de modo diferente se se inteirassem do ocorrido há tempos com o camarada secretário-geral do Partido Comunista Português. Temendo um ataque de vampiros, trazia de hábito, num bolso do casaco, um crucifixo de ferro. Ora, uma noite, finda uma manifestação contra o Governo, regressava ele a casa, com a bandeira do partido meio desfraldada. De súbito viu-se perante um vampiro ávido e não-alinhado, atraído decerto pelo tom rubro da flâmula comunista. O pobre do secretário-geral, que havia adquirido o crucifixo numa loja de Fátima, bem o brandiu freneticamente. Mas o da dentuça afiada acometeu, sem mostrar o mínimo temor. Que se passou? Simples: o crucifixo, embora de ferro, era novíssimo, virgíneo, rebrilhava de frescura, e se acaso algum odor exalava daquele artefacto do comércio retalhista seria o da cera dos círios, jamais o de um metal bem nutrido de ferrugem.

Fácil adivinhar o resultado. Mais um caso de impossível dissimulação.


4. O PROBLEMA DA INCARNAÇÃO EM CRIATURAS HUMANAS

Sabe-se que os vampiros não-humanos (cientificamente denominados hematófagos, dotados de termoperceção, uma das mil espécies de quirópteros) corrompem com facilidade o sangue de criaturas humanas vivas, bastando para tanto filarem-lhes o pescoço, de tal modo apossando-se da natureza das mesmas (v. os casos citados). A propagação desenvolve-se depois de humano para humano, sempre mediante degustação nos vasos sanguíneos da região do pescoço. Até aqui, tudo normal. O grande berbicacho é que um vampiro humano continua ativo mesmo depois de morrer. Sobremaneira ávidos revelam-se os indivíduos que morreram prematuramente e que em vida se caracterizaram pelos seus maus instintos. Ao invés da tese defendida por Stephanie Meyer, não existem vampiros bons. Só uma pessoa ignorante por completo do fenómeno vampírico pode afirmar tal coisa, mas não surpreende: Meyer já ludibriou milhões de leitores impingindo-lhes o mais destrambelhado dos conceitos, o de um lobisomem bonzinho.

Em síntese, um humano nunca nasce vampiro. Converte-se em vampiro após a tradicional mordedura no pescoço por um vampiro humano ou por um quiróptero da espécie, como se exemplificou com o caso de uma líder política portuguesa quando, a uma hora já crepuscular, abandonou a sede do partido. Diz-se, então, que se corrompeu o sangue do humano não-vampiro. Apenas uma radical transfusão de sangue solucionaria a situação. Sucede, porém, que nessa fase o recém-convertido já não se denuncia, «sentindo-se bem na nova condição» (cf. Redav, 1945).

A incarnação consuma-se nas 24 horas sequentes à mordida.

Permanece em estado vampírico mesmo depois de morrer, como elucidámos. Reanimado pelo espírito demoníaco, o ente volta ao nosso mundo com eterna sofreguidão. Alimenta-se tão-só de sangue – o supremo veículo da vida. Não um sangue qualquer. Terá de ser, quase decisivamente, da própria espécie, ou seja, humana.

Sempre à noite (em consequência do horror à luz do dia), insaciáveis, os vampiros humanos saem dos seus túmulos, em busca do rubro nutriente. Alguns figuram a estranha obstinação de pretender relações sexuais com humanos ainda não corrompidos. O vampirólogo inglês V. Krad relatou que durante as suas investigações em Portugal, no ano findo, foi ele próprio assediado com embaraçosa pertinência por uma jovem e pestanuda vampira oriunda de um partido da extrema-esquerda. Já anteriormente outros investigadores haviam notado que a vampirização se encontra muito generalizada na sociedade portuguesa, a começar pelos governantes políticos e a acabar nos magnates da alta finança. Mesmo os políticos oposicionistas não estão imunes. Relembramos por curiosidade o caso (aqui descrito) do líder atacado por um vampiro, do qual julgou poder defender-se brandindo um crucifixo comprado em Fátima. Depois... bem... (v. Redav, 1945, cit. linhas atrás).

Que fazer para pôr cobro ao desígnio de eternidade de um vampiro humano? É neste ponto que o Receituário Doméstico poderá avançar com os esclarecidos conselhos que muitos cidadãos aguardam, ansiosos, desde o princípio desta dissertação.

Antes do mais torna-se imperioso comprovar se o suspeito é, realmente, um vampiro. Enganos desses (já os houve, também em Portugal) serão irreparáveis.

Como proceder: a uma hora noturna, abra-se de mansinho o caixão da pessoa suspeita de praticar vampirismo. Examine-se com atenção o corpo. Apresentando-se, este, incorrupto, flexível, com um aspeto saudável e boas cores, então não restam dúvidas de que estaremos perante um refinado vampiro.

A metodologia de aniquilamento resume-se a um instrumento em forma de estilete perfurante. Com tal instrumento se golpeará, de estocada fulminante, o coração do vampiro, assim ficando para sempre desarreigado o demónio que se apossou daquele corpo.




Aconselhamos a estaca, secularmente o utensílio mais comum.

Existem à venda kit’s anti-vampiro que incluem uma estaca sofisticada, contudo sairá mais económico adquirir numa estância de madeiras um daqueles paus cilíndricos destinados a armar vedações. Serve na perfeição. Deverá averiguar-se da resistência da madeira (preferir, sempre, a que estiver mais verde), e, sobretudo, verificar se uma das extremidades se encontra convenientemente aguçada, à semelhança dos próprios incisivos do quiróptero humano.

© PEDRO FOYOS


(Escrito em 1992, reescrito em 2009)