MEMÓRIAS VIVAS DO JORNALISMO
PEDRO FOYOS ENTREVISTADO POR FERNANDO CORREIA E CARLA BAPTISTA




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A sua ligação aos jornais começou excecionalmente cedo...

Entrei no diário República em 1960, tive de conciliar durante muito tempo o jornalismo com a vida académica. Tão novo que fui obrigado a esperar pela idade sindicalmente estatuída para o ingresso “oficial” na profissão. De qualquer dos modos, na época era inevitável cumprir a costumada “via-sacra”: começava-se como “colaborador”, marcava-se passo durante um a dois anos. Comprovando-se que o bisnau tinha queda para o ofício e, mais do que isso, capacidade de sobrevivência, passava a efetivo, primeiro como repórter, depois, muito depois, redator.

Como era o estatuto de colaborador-jornalista?

Uma razoável liberalidade do regime laboral favorecia quem, como eu, pretendia congraçar nas 24 horas do dia as atividades jornalística e académica. Ainda sobravam cinco ou seis horas para dormir. Nos dias de folga fazia uma hibernação reptiliana, conseguia dormir vinte horas consecutivas.

Mas os colaboradores faziam também reportagem, entrevista ?

Faziam tudo. Trabalhava-se tal como os repórteres, só que a remuneração rondava a invisibilidade. E não era possível o registo como beneficiário da Caixa. O primeiro ano, ou dois, não contavam. Em relação às categorias profissionais, verdade seja dita, num período inicial o neófito confinava a atividade ao atendimento de telefones, redigia a secção necrológica e outras tarefas entusiasmantes. Sindicalmente, essa categoria, que poderia denominar-se "pré-primária", ostentava um título mais dignificante: repórter- informador.

Categoria que entretanto desapareceu.

Lamentavelmente. O repórter-informador era no jornal um elemento fantástico, de uma utilidade enorme. Eu já era redator quando me juntei a um grupo de profissionais de Lisboa que contestou com veemência essa decisão sindical.

Porquê?

Porque os bons repórteres-informadores poderiam não saber escrever, mas tinham um talento impressionante para “caçar” a notícia, para ir apurar coisas, para ir ao sítio e saber tudo, até pelo telefone. Há um colega cujo nome não cito, até porque ainda é vivo, que embora não seja, nem nunca tenha sido redator (ou jornalista numa aceção corporativa), pegava no telefone, ligava para a Guarda Republicana de qualquer cidade e punha em sentido o oficial que estava a atender, sacando tudo o que havia a sacar. Conheci alguns que possuíam esse grande talento, a par de uma “voz de autoridade”, particularidade essencial. É certo que escreviam deficientemente, o indispensável para registarem os factos deslindados, contudo, no meu conceito, eram jornalistas. Desapareceram em Portugal mas continuam a existir noutros países. Algumas publicações destacam o nome do "grande repórter" e no final da reportagem desfilam os "pesquisadores", por vezes meia dezena ou mais.

Recorda-se das suas primeiras peças jornalisticas ?

No início dos anos 60 foram em geral entrevistas. O meu primeiro entrevistado, o ator Fernando Gusmão, tinha nesse tempo uma interpretação portentosa, elogiada por toda a crítica, na peça O Tinteiro, de Carlos Muñiz, encenada pelo Teatro Moderno de Lisboa, um grupo memorável, com Armando Cortez, Carmen Dolores e outros que também entrevistei. Do ator Rogério Paulo é que não saiu uma única linha, estava no Index Prohibitorum, a Censura cortou de alto a baixo. Nessa época fartei-me de fazer entrevistas. Era a modalidade que mais me facilitava a conciliação com a vida académica. A minha agenda estava repleta de nomes de escritores, atores, pintores, figuras da intelectualidade que aguardavam pacientemente que eu pudesse dedicar- lhes algum do meu tempo... Apenas uma nega no currículo, a minha vontade nesse dia era esganar o patife.

Quem, pode saber-se?

Miguel Torga. Quinze anos mais tarde, no chamado Verão Quente, almocei com ele próximo de Coimbra, na companhia de Vítor Direito e do padre Valentim Marques, e recordei-lhe o episódio. Respondeu gravemente que um homem que passava os dias a escrever sobre si, como era o seu caso, não precisava de dar entrevistas. Fazia sentido, rendi-me ao argumento. Um encontro emocionante. Torga receava que a sua desesperança nos tivesse contagiado. Disse que, possivelmente, «teria sido preferível que não nos tivéssemos encontrado.» Ficou muito consternado ao saber que eu e o Vítor Direito corríamos perigo se nos aventurássemos na cidade, por isso o padre Valentim Marques levou-nos para os arredores. Tempos inquietantes, andávamos armados. Com o seu humor característico, o Vítor dizia que éramos pioneiros na modalidade do "jornalismo armado". Mas as palavras de Torga, por ele julgadas desesperançosas, reanimaram-nos como nenhumas outras. Reencontrei Torga, dois anos depois, tal e qual o conheci naquele dia, no volume XII do seu Diário. Está lá tudo. E cedo lhe perdoei não ter dado a entrevista ao jornalista imberbe que eu era no dealbar dos anos sessenta.

Nessa fase, os entrevistados não receavam falar para um “jornalista” tão... "verde"?

Já teria 17, ou quase, e não sei como fui admitido no Sindicato dos Jornalistas. Um parêntesis para evocar a Dona Vanda, do Sindicato. Fui durante dois ou três anos o mais jovem jornalista do País, então ela chamava-me carinhosamente «o pimpolho do Sindicato». Vêm-me as lágrimas aos olhos ao recordá-la, sempre bem-disposta, um sorriso tão bonito, dizendo-me aquelas palavras.

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Na Redação do diário “República” (1962)


Respondendo à pergunta: os entrevistados confiavam em mim, só tenho a agradecer-lhes. Uma única reclamação, de Almeida Faria. Ou melhor, um bom ensinamento: ele não gostou que depois de um «não só...» eu tivesse escrito «...como...» em vez de «...mas também...», como deve ser. Nada de muito grave. É certo que alguns dos entrevistados não escondiam a surpresa ao aparecer-lhes pela frente o tal “pimpolho”. Os escritores Antunes da Silva, Alexandre Cabral, Manuel do Nascimento e Romeu Correia (com este estreitaria uma relação de muita amizade) chegaram a alvitrar respostas por escrito às perguntas que também por escrito lhes apresentasse.
Inchei de repulsa e logo reconsideraram. Exceto estes casos raros, a maioria aceitava de bom grado, até achava graça.

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Uma entrevista tem de ser documentada fotograficamente!»
E o insigne mestre Calvet de Magalhães mandou chamar um fotógrafo…


O Prof. Calvet de Magalhães, que entrevistei no âmbito de uma grande reportagem sobre a Escola Francisco de Arruda, de que era diretor, mandou chamar um fotógrafo, queria reproduzir a entrevista no Jornal da Escola comigo a entrevistá-lo. A pouca idade era uma vantagem que eu explorava com alguma estratégia. Nos contactos preambulares pelo telefone não escondia – nem podia esconder – que era um jornalista muito jovem dando os primeiros passos e tal... Seria preciso ter uma pedra no lugar do coração para ficar insensível a uma conversa destas. Depois, logo nos primeiros minutos da entrevista apercebiam-se de que não estava ali a armar-me em bom, ficavam descansados.

Como era isso feito? Aos novos jornalistas de hoje poderá interessar saber...

Nada posso ensinar aos colegas modernos. Dispõem de assombrosas tecnologias, as quais nós nem de longe imaginávamos. A nossa tecnologia era de ponta esférica, já deixara de ser de aparo. Chamava-se “Bic”. Estamos no início da década de 60 – a era da esferográfica!

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Ainda não existiam gravadores...

Existiam, mas eram uns monstros importáteis. Impossível andar com eles de um lado para o outro. Os mais ou menos portáteis surgiram pelo meio da década, funcionavam com duas bobinas. Comprei um a pilhas, artigo americano, último grito. Levava-o numa pasta, como fazemos hoje com os computadores portáteis. No Inverno e em certos contactos "delicados" dava para esconder no forro falso do sobretudo, puxando o microfone para debaixo da lapela. Complicado, mas funcionava. Deixava de ser praticável quando a temperatura subia. Desconfiariam do sobretudo...

Fazia gravações por esse "método"?

Às vezes tinha de ser e numa ocasião foi a minha sorte. Pretenderam encarniçadamente desmentir-me, afirmando que eram falsas as declarações que atribuía a duas pessoas. Fui obrigado a publicar uma nota (“relíquia” que guardo), de início censurada e depois autorizada, na qual informava em sucintas linhas que todas as declarações incluídas na reportagem se encontravam gravadas em fita magnética e à disposição das autoridades judiciárias. O assunto morreu ali.

Antes disso, falava do progresso obtido com o advento da esferográfica...


Uma tecnologia genuinamente digital, ou seja, assente nos cinco dedos da mão, que depressa ia destronando o anterior hardware CTP (caneta de tinta permanente). Já para não falar na pena e no tinteiro, também não sou assim tão velhusco. A esferográfica foi uma invenção espantosa, só comparável ao clipe e ao moderno post-it. Estivesse o jornalista na rua ou na sala de redação, o equipamento acompanhava-o no bolso ou na orelha.

Porque a máquina de escrever não estava ainda implantada nas redações...

Que fique para a História, sob juramento: o primeiro jornalista que desalmadamente, truculentamente, numa certa manhã profanou o silêncio da redação do República e atordoou os inocentes colegas com o atroz matraquear do teclado de uma máquina de escrever – foi Baptista-Bastos. Ficaram-lhe as orelhas a arder, nesse dia, com o coro de protestos. Até o tolerante chefe de redação, Artur Inêz, saiu do gabinete e veio espreitar. Fez um esgar de contrariedade, como quem diz: «Esta gente nova, com a mania das modernices!» Tivemos de aguardar décadas para ver de volta às redações um relativo silêncio com a chegada dos computadores. Uma coisa que não deixarei de contar a quem me peça uma história extraordinária é esta: no breve tempo de uma vida profissional como jornalista – cinquenta anos no meu caso – couberam três idades de comunicação escrita, a começar no manuscrito, passando pela máquina de escrever, finalmente (por enquanto) o computador.

Derivámos a propósito das entrevistas escritas à mão. Disse que os entrevistados se sentiam mais descansados tendo à sua frente um jornalista muito jovem.

Havia um certo pudor por parte dos mais velhos em interromper consecutivamente o entrevistado para clarificar uma palavra, uma frase, ou para repetir algo que não ficara registado a tempo no papel. Um entrevistador maduro de idade não dava parte de fraco e às vezes, chegado à redação, a memória já um tanto esvaída, cometia uma ou outra imprecisão, involuntária, compreensível. Ora, com o desaforo dos meus verdes anos, o entrevistado ficava logo instruído: Peço-lhe o favor de falar devagarinho para ficar tudo certo. Eram uns santos. Não esqueço o historiador Joel Serrão que chegava a repetir uma frase três vezes. Aquilo saía-lhes do pêlo...

Entrevistas que não andariam longe dos ditados escolares...

E quem ditava tinha de munir-se de uma paciência de Job. Um ou outro abusava, como o dramaturgo brasileiro Joracy Camargo (Deus lhe Pague») que entrevistei numa visita que fez a Portugal: teve o desplante de passar todo o tempo a deitar um olho desconfiado para o papel, não fosse o entrevistador desvirtuar-lhe o verbo. Difícil e acidentada foi a entrevista que fiz a Ferreira de Castro, na lisboeta pastelaria Veneza, na Avenida da Liberdade, onde ele participava quase todas as noites numa tertúlia de escritores. Entrevista escaldante. A vozearia dificultava a audição, via-me obrigado a empenar-me todo na sua direção e foi assim que, a meio de uma resposta, lhe despejei nas calças uma chávena cheia de café – acontecimento devidamente registado no final da entrevista publicada. Não é todos os dias que um entrevistador tem a oportunidade de estragar as calças a um escritor famoso. O acidente ascendeu à categoria de notícia e certamente que Ferreira de Castro tardou a esquecer-se de mim. Noutra ocasião e num sentido contrário foi Aquilino Ribeiro quem expressou o desejo de eu não o esquecer. No final de uma longa entrevista que lhe fiz na sua casa em Lisboa ofereceu-me um dos seus livros (que guardo como raridade de joalheiro) com uma extremosa dedicatória na qual me augurava um «futuro de homem de letras» que se lembraria, por meio daquele livro, «do velho autor que visitou na sua tebaida.» Agradeci desvanecido, mas... aquela última palavra – “tebaida” – ficou-me atravessada. “Tebaida”?
Que raio quereria aquilo dizer? É evidente que não iria expor perante o mestre a minha ignorância, nada perguntei. Chegado ao jornal corri para o dicionário. Lá estava, sim senhor: «Tebaida: lugar solitário; retiro.» Desde esse dia, admito que seja dos poucos portugueses que está em condições de dizer, tranquila e prontamente, o que significa “tebaida”...

É conhecida a perseguição censória feita à obra literária de Aquilino Ribeiro. Passava-se o mesmo na Imprensa? Aquilino era cortado?

Cortadíssimo. Há no meu Arquivo Histórico de Imprensa documentos que constrangem especialmente pelo facto de não se tratarem de declarações, de depoimentos, mas, pelo contrário, de criações próprias. Tentei algumas vezes fazer o que se chama hoje “pré-publicação”, reproduzir excertos de um livro seu na ocasião do respetivo lançamento. Sempre e sempre o resultado foi o mesmo: cortado, com impiedade. A entrevista que lhe fiz (apesar de tudo preencheu duas páginas do jornal, era extensíssima, mais de duas horas de conversa) foi cruelmente golpeada, amputada de frases tão lúcidas, tão luminosas... os censores não suportavam tanta luz.

Referiu um Arquivo Histórico de Imprensa. É uma iniciativa pessoal?

Organizo há décadas um Arquivo que abrange todo o período da Ditadura, integrando milhares de documentos relacionados em grande parte com a Censura. Tenciono doar o acervo a uma determinada instituição. Mas não sei se terei tempo para concluir a tarefa. Tenho andado disperso pela ficção e pela crónica.

Além do jornalismo e da vida académica, ainda outras frentes o mobilizavam...

O tempo é infinito quando se tem 17 anos. Estava às portas da Universidade, precisava de conciliar a atividade jornalística e o fim do meu curso liceal. A piorar as coisas, integrava estrenuamente uma rebelde pró-Associação dos Estudantes do Liceu. A Associação foi proibida, encontrámos alternativa denominando-a Comissão pró-Associação.

Um grupo que à época dava muito trabalho à polícia política…

Modéstia à parte, conseguíamos ser mais ativos e lestos que os universitários - o Sampaio, o Cardia, o Medeiros Ferreira e outros “velhotes” que já iam nos "vintes". E éramos dotados de uma imbatível capacidade conspirativa. Havia um colega, mais tarde deputado, especializado em boicotes. Eu era singularmente exímio em esvaziar os pneus dos ”cremes níveas”. Na peleja urbana, então... era só verem-nos quando tínhamos de correr os dez metros livres com a polícia de choque a morder-nos as canelas.

Mais tarde abandona o República e passa a trabalhar no Século. O que originou essa mudança?

Não foi um abandono, apenas uma contingência temporária. Pertenço à geração de mancebos que apanhavam no lombo com um tempo infindo de vida militar. O primeiro ano de tropa foi péssimo, os outros ótimos. A declaração parecerá estranha, mas a verdade é que nessa época estava longe de imaginar que a "especialidade militar" que me foi atribuída iria influenciar a minha vida por um período de mais de vinte anos. Os jovens incorporados que na vida civil exerciam profissões relacionadas com a comunicação social (imprensa, rádio e televisão) eram remetidos, chegada a fase da “especialidade”, para os Serviços Cartográficos do Exército onde se aprendia não só cartografia mas também fotografia, cinema e técnicas audiovisuais. O nosso epíteto jocoso era o de “atiradores foto cine”, um desempenho arriscado na guerra colonial, à semelhança dos repórteres de guerra. (As fotos e filmes que vemos hoje, reportando terríveis cenas, foram realizadas, em grande parte, pelos militares com esta especialidade). Apaixonei-me então pela fotografia, fui o melhor aluno do curso, circunstância que permitia ficar-se na chamada metrópole. Os militares nessas condições permaneciam nos Serviços como monitores dos cursos sequentes. Regressado à vida civil, prossegui, em simultaneidade com o jornalismo, a atividade fotográfica. Fiz exposições, publiquei livros, fundei publicações, participei em congressos internacionais, empenhei-me na defesa dos direitos dos repórteres fotográficos. Por doze anos fui presidente da Associação Portuguesa de Arte Fotográfica.

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Voltando ao tempo dos Serviços Cartográficos, o meu ingresso no Século deveu-se ao facto de ter uma boa parte das tardes livre. Não sendo possível trabalhar num vespertino, como era o caso do República, a alternativa seria um matutino.

E abriram-se-lhe então as portas de O Século.

Sim, graças aos muitos amigos que tinha na redação deste jornal. Mas era faltoso. Os imponderáveis da tropa impediam-me de manter a assiduidade desejável, pelo que transitei para as revistas da casa – o magnífico Século Ilustrado e a modelar Vida Mundial – que me proporcionaram o primeiro contacto com o “jornalismo de revista”.

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Nos anos 60 consolidou-se a dinâmica jornalística de “O Século Ilustrado”, a revista de atualidades mais popular do País. Num tempo em que 66% da população com mais de 15 anos não tinha qualquer grau de escolaridade, “O Século Ilustrado” averbava tiragens que presentemente nenhum jornal diário consegue alcançar. O principal elemento de atratividade era a reportagem fotográfica.

A paixão de Pedro Foyos pela fotografia levava-o a assinar não só as reportagens escritas mas também as imagens que as ilustravam.

Uma experiência que se me revelaria valiosíssima quando, anos mais tarde, integrando a chefia de redação do Diário de Notícias, fui responsável pela revista dominical. Mas a minha "casa-mãe" era decididamente o República.

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Regressei dois dias depois de terminar a tropa. Guardo com desvelo a foto de uma pequena festa de “boas-revindas” que me fez um grupo de tipógrafos. (Aqui estou eu, de óculos escuros, à direita, muito aperaltado).

Pode falar um pouco do seu dia-a-dia no jornal, nesses anos?

Melhor seria dizer “noite-a-noite”... Entrava no jornal às sete da manhã, no Inverno estavam ainda acesos os candeeiros e saía ao princípio da noite com as luzes da cidade reacendidas. De permeio lá arranjava um tempinho para "marcar o ponto" na Faculdade. Quando chegávamos ao jornal já o Artur Alpedrinha, o homem da “Agenda”, tinha a “papa” feita, ou seja, os recortes dos matutinos a partir dos quais começávamos a trabalhar, ponderando a possibilidade de entrevistas, reportagens ou uma atualização dos assuntos. Às sete e trinta, pontualmente, o contínuo Serafim Vitó fazia a primeira de muitas viagens à Flor do Mundo, trazendo o primeiro de muitos tabuleiros repletos de chávenas com café. Entretanto, os elementos da chefia começavam a distribuir os serviços exteriores pelos repórteres, segundo um critério de experiência, cabendo aos mais batidos as tarefas de maior responsabilidade. Mas em geral qualquer um de nós, fosse repórter ou redator, fazia o que era preciso fazer, um dia poderíamos estar numa grande reportagem e no seguinte a despachar sínteses de dez linhas. As exceções reduziam-se aos elementos da chefia e das secções "Agenda" e "Internacional". O "Desporto" era todo feito por colaboradores avençados.

Não havia mulheres jornalistas?

Assisti à entrada da primeira mulher na redação do República (após a pioneira Manuela de Azevedo, com quem já não trabalhei). Uma rapariga gira, a Virgínia Aguiar. Aquilo na redação causava um certo frisson, o pessoal não estava habituado. Tinha de pôr um lenço descaído nos joelhos porque o João Corregedor da Fonseca, volta e meia, começava a entortar-se na secretária, a entortar-se... num espreitanço despudorado. É justo reconhecer que ela até tinha umas pernas muito jeitosas. Também eram as únicas que lá haviam!

Na rotina do funcionamento da redação, íamos no princípio da manhã...

A partir das oito horas o principal noticiário nacional estava delineado e distribuído. Pelo início de 1963 começou a ser-me atribuído tudo quanto tinha que ver com crimes. Com uma antecipação de quatro décadas em relação à moda da “investigação forense”, descobri em mim uma vocação detetivesca... O Laboratório de Polícia Científica iniciara a atividade a meio da década de 50, em condições naturalmente incipientes, mas em poucos anos alcançou o nível da melhor investigação europeia. Realizou-se uma visita de Imprensa na qual participei e o que assisti deixou-me entusiasmadíssimo.

Viu-se como um novo Repórter X da investigação criminal...

Mas longe do mero influxo sensacionalista do Repórter X. A cientificidade da investigação era o que mais me seduzia. Estudei o tema em profundidade, ia à livraria Férin encomendar livros de França porque em Portugal não havia nada. Foi um período da minha vida profissional que me encantou, fiz grandes reportagens policiais, cheguei a ser convidado pela Judiciária para ingressar na instituição!

Como aconteceu essa história?

Nas minhas reportagens avançava com cenários que poderiam conduzir à solução dos crimes, desenvolvia as hipóteses mais prováveis, afastava aquelas que decididamente, na minha opinião, não o eram, elaborava teses, tudo muito científico...

Um dia tive de ir à PJ recolher o depoimento de um inspetor- chefe, devidamente autorizado pela direção para comentar um caso já encerrado com êxito e que eu acompanhara de perto, semanas a fio. No fim do encontro, comunicando-me que continuava a seguir as minhas reportagens com o maior interesse, fez à queima-roupa o convite. Que era apenas uma questão de falar com a direção, o assunto resolver-se-ia em duas penadas. Outro inspetor, Alfredo Allen Gomes (desempenhava ao tempo as funções de porta-voz para os órgãos de informação, era uma pessoa muito estimada pelos jornalistas e chegou a ser diretor da PJ logo após o 25 de Abril), quando me via lá nas reuniões com a Imprensa tratava-me por «nosso futuro colega».
Continuamos muito amigos, é uma personalidade fascinante. Mas antes disso tive grandes problemas com a Judiciária, um bico-de-obra, passei longas horas meio detido...

Passou de “meio detido” a potencial membro da Judiciária?

Um caso muito falado no final de 1963 foi o de um esqueleto humano, do sexo masculino, descoberto por uns rapazes que andavam na brincadeira a pular de rocha em rocha, atrás de um pássaro, nas falésias do Guincho. Um deles, para assustar os outros, escondeu-se numa das grutas e deu de caras, passe a expressão, com o esqueleto. Passados dias, a PJ arrumou a questão com a tese de suicídio, o que acontecia por vezes em relação a casos ocorridos há anos. A verdade é que os investigadores estavam excessivamente enredados em crimes intrincados da atualidade, o tempo não dava para tudo e factos antiquíssimos estariam longe de merecer prioridade. Entretanto, logo no dia seguinte ao do achado iniciei uma investigação que se prolongou por uma semana. Falei com os rapazes, pesquisei a gruta, recolhi elementos valiosíssimos que tinham escapado aos agentes. E publiquei uma reportagem que contrariava completamente a versão da polícia. A “verdade dos factos” divulgada dias antes por intermédio dos órgãos de informação era por mim desmentida, com provas entregues nesse meio tempo à Polícia Científica. Indicava com objetividade ter ocorrido homicídio e não suicídio. Um caso tétrico, apurei depois, de maridos conluiados para "lavarem" as respetivas honras enodoadas contumazmente... Tive o cuidado de não mencionar a versão oficial, a Censura terá considerado que as informações provinham da própria Judiciária e a reportagem saiu sem um único corte.
Bem, foi uma bomba! Nesse mesmo dia a Censura transmitiu aos jornais que o caso do esqueleto do Guincho «está morto, morto e enterrado, acabaram as notícias.» Fui chamado à Judiciária e fiquei mais ou menos detido. Foi assim uma prisão de: «... não pode sair, mas também não está preso, fica aqui.» Mantiveram- me sob um longuíssimo interrogatório, por mil vezes repeti as mesmas coisas. Estavam convencidos de que tinha forjado aquilo tudo, de que era um golpe sensacionalista. Passei de investigador a investigado. Fui levado à “cena do crime”, foram reconstituídos todos os meus passos de pesquisa, com instantes terríveis dado que vacilei muito tempo sobre a localização da gruta.

Porquê?

Toda a paisagem de rochedos me parecia igual! Não havia fixado pontos de referência, um procedimento policial dos mais elementares, que tardiamente aprendi. A minha situação era complicada. Um malogro naquele minuto descredibilizar-me-ia, arruinaria para sempre uma carreira jornalística recém- iniciada e sem dúvida seria incriminado por, de certo modo, difamar publicamente uma instituição como a Polícia Judiciária.

Para começo de carreira, não estava mal...

Na verdade, uma encruzilhada dificílima, mas tinha a meu favor o número elevado de indícios de homicídio. Descrevia-os com rigor na reportagem.

Mais do que convicção, pesavam os indícios concretos. Era isso?

Sobretudo o facto de eu provar que o corpo havia sido transportado para a gruta por duas pessoas, uma das quais, na precipitação do ato, cometera a incúria de perder um objeto pessoal que não era relacionável com a vítima. Um detalhe importante, entre outros. E confiava na proficiência do Laboratório Científico da PJ, para onde havia sido encaminhado o material por mim coletado na areia, mas não excluía a hipótese de alguém, naqueles tempos e para salvar a face da corporação, poder escamotear os resultados. Para minha fortuna tudo foi rigoroso e isento, concluindo-se que a areia solidificada no esqueleto era geológica e temporalmente coincidente com as provas por mim recolhidas.

Os demais indícios avançados – numerosos, fundamentados – confluíam também com verosimilhança para o cenário de um homicídio. A Judiciária acabou por reconhecer particularmente a natureza escrupulosa das minhas investigações. Meses depois, quando voltei para recolher o depoimento que referi, o inspetor-chefe fez-me o tal convite. Mas o jornalismo já me havia capturado inelutavelmente.

Encerrado este episódio, quer prosseguir o relato do dia-a-dia no jornal?

A redação ganhava um decisivo dinamismo a partir das dez horas: regressavam os repórteres dos serviços exteriores, começava o calvário da Censura, afluíam as notícias dos hospitais, das polícias, dos bombeiros, aeroporto... Num ápice tinha início a contagem decrescente do fecho da edição que, por norma, não deveria exceder o meio-dia. Era imperioso que às duas da tarde uma boa parte da tiragem estivesse a caminho de Santa Apolónia para apanhar os comboios. Uma correria louca, com os sinaleiros a abrir o trânsito quando avistavam o carro de um jornal (regra sagrada: oferecia-se sempre um exemplar do dia e pelo Natal uma garrafa de espumante). Fechada a edição, almoçava-se. Antes, a meio da manhã, circulava entre os jornalistas o menu de um restaurantezinho das Escadinhas do Duque, cada um fazia as suas escolhas. A maioria almoçava na redação, nas respetivas mesas de trabalho. Eu, vegetariano desde os dez anos, ia em passo acelerado ao refeitório da Sociedade Portuguesa de Naturalogia, ali perto, na Rua do Alecrim. Acompanhava-me a partir de certo dia o colega Afonso Cautela, "por mera curiosidade", dizia ele, mas tornar-se-ia um “radical” (foi a mais miraculosa conversão que realizei na vida!). Os cafés e “digestivos” eram tomados nos balcões da Rua da Misericórdia, onde não raro apareciam por essa hora os colegas do Lisboa e do Popular. De volta à redação, começava o ciclo de preparação do jornal do dia seguinte, dedicando-nos em especial ao arranjo da prosa, invariavelmente caótica, dos correspondentes. Tinha a meu cargo os suplementos, que eu próprio paginava, uma tarefa que me ocupava entre quatro a cinco horas por dia. A meio da tarde fazia-se uma pausa de descompressão na cervejaria da Trindade, a dois passos, nas traseiras do jornal (numa época sequente e na expressão de Fernando Assis Pacheco íamos «fazer a auto lavagem do espírito»). Apareciam também colegas dos restantes vespertinos sedeados no Bairro Alto.


A feroz concorrência entre jornais não contagiava os profissionais?

Entre jornalistas a desempenhar um mesmo serviço existia com frequência essa ferocidade. Os chefes de redação escrutinavam o trabalho jornalístico com imensa severidade. Se o jornal falhava uma informação importante que um concorrente havia dado, então era o bom e o bonito, dava direito a uns valentes gritos. O meu chefe Artur Inêz não gritava mas lançava-nos um certo olhar que ensurdecia mais que mil gritos. Depois de as edições fechadas, a camaradagem era admirável. Também é importante reconhecer que, mesmo em serviço, os grandes jornalistas – aqueles que eram de facto grandes – auxiliavam por norma os novatos.

Nem existiam escolas de jornalismo...

Em Portugal, nesse tempo, a escola de jornalismo era a própria redação e a sensibilidade de os mais velhos darem a mão aos mais novos. Eram mestres no ofício e na capacidade de ensinarem.

Teve também alguns desses mestres?

Foi para mim uma felicidade trabalhar e aprender com jornalistas como Miguel Serrano, Alfredo Noales, Manuel Alpedrinha, Baptista-Bastos, mais tarde Vítor Direito, Fernando Assis Pacheco... Ah!, e o Augusto Ricardo, que ao tempo já era muito velhinho. O neófito estava aflito com um texto trôpego, sem saber o que fazer, ele adivinhava, pressentia a aflição do jovem e, assim como quem não quer a coisa, punha-se atrás, olhava para o original manuscrito, pegava na caneta e, muito discretamente, riscava uma palavra e punha outra. Um minuto depois, sempre no maior silêncio, repetia-se a cena: mais uma ou duas palavras riscadas, outras em substituição. A obra ia aprimorando-se: os vocábulos certos, à maneira. Era o suficiente para o escriba bisonho fazer boa figura junto do chefe de redação.

Que nessa época era Artur Inêz. Cita-o com frequência...

Comovo-me na memória de Artur Inêz. Ele e Raul Rêgo ocupam um lugar de relevo no novo livro que estou a escrever. Dois jornalistas silenciados pela Censura durante quatro décadas. Quarenta anos sob a mordaça da Ditadura. No caso de Inêz, uma vida profissional por inteiro. E não esqueço que foi Artur Inêz o principal responsável pelo meu ingresso "oficial" na profissão

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Aos sábados, grandes reportagens e entrevistas que muito interessavam
à população estudantil faziam duplicar a tiragem do jornal


Eu já publicava umas reportagens no suplemento “Juvenil” do República que muito interessavam aos estudantes, sobretudo universitários. Pode falar-se sem exagero de êxitos jornalísticos porque o jornal vendia-se mais ao sábado, dia da publicação do suplemento, aumentando sucessivas vezes as tiragens. Então o Artur Inêz foi bichanar ao diretor Carvalhão Duarte: «Aquele bisnau... hem?... e tal e tal...» Logo no dia seguinte o diretor chama-me ao gabinete e diz: «Ó Pedro Foyos, eu ando aqui há semanas com uma ideia, você não vai dizer que não, eu ficava muito sentido se me dissesse que não, a ideia era mesmo entrar aqui para a redação. Sabe que isto é uma miséria, quase que não dá para viver, é para passar fome, mas...». Eu fiz aquela parte de “ ir pensar para casa”. A verdade é que estava a completar o liceu, tinha o projeto de seguir a carreira do meu pai, que era advogado. Mas houve uma transformação radical na minha vida. Aceitei a proposta, ingressei no jornal e seria proclamado o mais jovem jornalista em Portugal. Agora faltará pouco para me proclamarem o mais idoso...